Filosofias baratas e piquenique

Daqui por uns minutos deixa de ser domingo e entramos na segunda-feira. E ao entrarmos na segunda-feira, estaremos no último dia de mais um mês passado e menos um para passar. E as férias cada vez mais próximas para nos revermos, ao fim de meio ano de separação. Apesar do tempo passar com relativa velocidade, parece que começa a ficar mais lento. Ainda tenho todo o mês de Maio e vinte e oito dias de Junho. Esperemos que tudo corra bem e possa embarcar no taxi aéreo de Carmona para Luanda. E daqui para Lisboa, onde espero rever-vos.

Não falemos do futuro, que não passa de uma incógnita, e centremo-nos nos momentos presentes. Ou já passados? Talvez seja mais correcto dizer «já passados». Rigorosamente, futuro e passado são os dois pólos que existem. O futuro, uma incógnita ainda por viver, é por isso mesmo incomensurável, já que nada sabemos dele; o passado, porque já o vivemos e a memória fica preenchida com factos, é mensurável, na medida em que já o podemos avaliar, a menos que soframos de amnésia. E o presente é uma linha ténue. Não passa da transição entre o passado e o futuro. É aquela linha que espero esteja sempre bem esticada, para que possa ir-me equilibrando sobre ela, mesmo sem a longa vara para ajudar a manter o equilíbrio. Sem a longa vara? Antes com ela! Sempre com ela! Sempre com a longa vara da esperança! Com a esperança de irmos caminhando sempre em perfeito equilíbrio, suspensos sobre o abismo do nada e desafiando os anos, que espero sejam longos e em perfeita saúde e sem surpresas desagradáveis.

— Ouve lá, rapaz, agora deste em filosofias baratas?

Como sempre, está o pai a aparecer-me no momento exacto e a trazer-me à realidade. E isto apesar de me escrever tão pouco! Quem deveria estar a repreender-me era a mãe, que é quem mais conversa comigo, me dá notícias daí e me transmite as suas mensagens. Mas ela gosta certamente mais de ler o que escrevo, não se importando se a maço ou massacro com demasiadas palavras. Para ela, nunca são demais!

Está certo! Não vou maçar-vos com filosofias baratas. Vou rapidamente dizer-vos como passei o domingo e procurar dormir, até porque já não devo ter luz por muito tempo. Não tarda muito, estão a desligar o gerador. E fico às escuras, a menos que acenda um candeeiro.

Como é que passei o domingo? Foi um domingo cheio de surpresas. Tinha dito que iria estar convosco durante a manhã de domingo. Mas tive o bom senso de dizer que seria de manhã ou de tarde, conforme pudesse. Ora não pude nem de manhã, nem de tarde, porque nunca estive sozinho. Seria muito agradável a vossa companhia, se não surgissem outras ainda mais agradáveis. E é que surgiram mesmo! E muito mais agradáveis! Imaginem que eu, que não percebo nada de culinária nem tenho jeito nenhum para isto, acabei por passar a manhã ocupado com problemas de ordem culinária. Passei a manhã a ajudar a Isabel a preparar os petiscos para um piquenique no rio Futa.

— A Isabel? Quem é a Isabel? Não me digas que arranjaste aí alguma companhia feminina...

Lá estão vocês a imaginar, a pensar em coisas erradas! Se arranjasse uma companhia feminina, qual era o problema? Antes feminina que masculina. E até que nem seria nada desagradável! Mas não é o que estão para aí a imaginar. A Isabel é a esposa do Mário. E o Mário é um elemento civil. Aqui, em Quimbele, damo-nos bem com os civis. Aqui e em qualquer lugar, seja Quimbele ou uma sanzala, é isso que deveremos sempre fazer: dar-nos bem com todos os civis! Pelo menos é esta a minha maneira de ser e de pensar. Sempre me dei bem com todos e até os prefiro aos militares.

Entre os civis de Quimbele, há um casalito jovem, com quem costumamos estar frequentemente: o Mário e a Isabel. Ainda se lembram daquele episódio junto ao rio Futa, em que evoquei algumas das minhas peripécias na Quimabaca? Este foi um dos casais que estavam connosco naquele dia e interessados nas minhas histórias.

Pois é verdade! Passei a manhã de domingo em casa do Mário e da Isabel. Enquanto uns trataram de outras tarefas, a mim coube-me ajudar a Isabel na cozinha. Trouxe da loja uns pacotes de pudins instantâneos e foi esta a minha tarefa: preparar as sobremesas para o piquenique junto ao Futa. À noite, jantámos todos na messe de oficiais e acabámos o serão a jogar ao dominó em casa do Senhor Araújo, outro civil de Quimbele.

Hoje de tarde, porque já estou na madrugada do dia trinta, devo seguir com o capitão para o Alto Zaza. A operação de seis dias vai seguramente efectuar-se. Significa que vão estar outro longo período sem notícias minhas.

Já agora, antes de terminar, devo acrescentar que sempre escrevi aos tios. Foi um aerograma apenas, com um resumo do que têm sido estes meus últimos dias. Como nem podia deixar de ser, e atendendo a que o tio é um aficionado da pesca, falei-lhe da minha ida com o capitão ao rio e dos exemplares que pescámos. Não me esqueci de referir o magnífico e perigoso exemplar que pesquei, com cerca de um quilo e meio, e que tirou um enorme pedaço ao do capitão, cujos novecentos gramas ficaram ligeiramente reduzidos.

Por aqui me fico, antes que me desliguem a luz. Não se espantem com isto, que não é nenhuma desculpa improvisada para terminar a carta. É mesmo assim. Aqui em Quimbele a energia é fornecida por um gerador situado na extremidade da vila. Há períodos em que não temos energia eléctrica. O gerador, além da manutenção e reabastecimento de gasóleo, geralmente está desligado durante o dia. Só funciona à noite, desde o escurecer até cerca da meia-noite. Até estou espantado como ainda não o desligaram! Certamente os elementos responsáveis pela manutenção devem estar em alguma patuscada e ainda não o foram desligar. É por esta razão que os frigoríficos e arcas funcionam a petróleo, para que nunca tenham problemas de falta de energia. E para que este azar não aconteça, temos de lhes atestar periodicamente os depósitos de grande capacidade.

 

Um grande abraço de saudades do vosso filho,

 

                                                                                Ulisses.

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