Linguística e Cabula Calonge

O povo de Cabula Calonge é a minha nova residência. Encontro-me de novo entre nativos. Estou aqui desde a tarde de quinta-feira. Como aqui vim parar é coisa que veremos em breve. Agora, quero falar-vos deste local, que creio ter referido nos aerogramas que já deverão ter recebido e lido.

Esta sanzala, com mais de duzentas cubatas, é o resultado da fusão de seis povos distintos. Para ser mais preciso, é constituída pelo reagrupamento de seis povos, outrora disseminados na região, e que agora constituem uma enorme povoação: Quissuca, Cabula Calonge (ou Quibula Calonge), Capitão, Quibula, Caculo e Quipangulo.

É curioso o elemento linguístico que antecede os nomes das povoações. Lembram-se, por exemplo, da Quimabaca? E do nome da língua falada aqui nesta região do nordeste angolano? Quicongo, o nome da língua, começa também pelo elemento «QUI». Será que a sílaba inicial de Quimbele tem alguma coisa a ver com este mesmo elemento? Estou a lembrar-me de outros povos que visitei e recenseei: Quissama, Quissassuma, Quitanda, Quipedro, Quilambiquiça, Quibula, Quipembe, Quimamba, etc. todos iniciados pelo mesmo elemento linguístico.

Acabo de consultar as minhas folhas, onde tenho vindo a registar as recolhas de Quicongo, graças às explicações que recebi do Joaquim e de outros nativos. Não encontro nada a este respeito. Infelizmente, só agora, ao enumerar-vos as povoações que se fundiram numa só, reflecti acerca deste problema. Para cúmulo, não tenho aqui a companhia do Joaquim, para me esclarecer. Trata-se de um prefixo com valor de determinante? Por exemplo, Quicongo corresponderá a «o Congo»? Eis uma questão para a qual não possuo, de momento, elementos suficientes para encontrar uma resposta plausível.

Deixemos as reflexões linguísticas e voltemos à descrição de Cabula Calonge.

O povo está neste momento em formação. As futuras e amplas casas, com vários quartos, apesar de construídas em madeira e revestidas de argila, à semelhança de muitas cubatas tradicionais, estão a ser ordenadas de acordo com um plano de urbanização moderno, perfeitamente geométrico, com os diferentes talhões dispostos de ambos o lados da picada que entronca em Quizacalele com a ligação entre o Alto Zaza e Quimbele.

Gostaria de ter aqui a máquina fotográfica, para vos poder mostrar alguns aspectos da nova povoação. Agora me lembro: não tenho a máquina, mas tenho papel e caneta e uma bússola e a minha capacidade de observação e registo.

Vou interromper a escrita. Vou dar uma volta pelo povo e elaborar a planta. Na falta de imagens fotográficas, vou enviar-vos um esquema da povoação, com todos os elementos que a constituem. Até pode ser que venha a ter utilidade. Manda-se, mais tarde, construir um hotel e, quem sabe, talvez a planta possa vir a ser incluída num roteiro turístico para as pessoas da metrópole virem até aqui tirar uns períodos de férias.

E olhem que, a brincar, a brincar, as instalações até nem são nada más. E falo por mim. As tropas que estão a reforçar a segurança do povo, ou seja, as nossas pessoas, estamos instalados em várias cubatas. Pode-se dizer que a nossa situação, não sendo de um hotel de cinco estrelas, até nem é má. As paredes cobertas de argila são um excelente isolante: nem barulho, nem frio, nem calor. O meu pessoal, espalhado por várias cubatas, trouxe tudo o que é indispensável para uma estadia agradável, com conforto: cobertores, porque de noite arrefece bastante, colchões pneumáticos, tachos e panelas, ou seja, tudo o que é necessário para uma boa permanência no local.

O vosso filho, por exemplo, está bem instalado. Em vez do pneumático que todos preferem, por ser facilmente transportado para onde lhes apetece, o vosso filho trouxe um colchão de espuma e a almofada a que já está habituado. Os nativos arranjaram-lhe uma cama impecável, feita de bambu. De modo que está bem instalado. Até o rádio está numa mesa, ao lado da cama, para audição das curtas durante as longas noites, quando a vontade de escrever não é nenhuma.

E por falar em curtas — e estas linhas vão especialmente destinadas ao pai, que é um fã das ondas curtas — devo dizer-vos que as capto com uma potência espantosa. O aparelho que comprei em Quimbele é excelente neste aspecto. Mas para melhorar a captação, o vosso filho instalou uma antena exterior. Trouxe fio em quantidade da sala de transmissões e montou uma antena exterior, fixa no topo de duas cubatas próximas. Logo, tenho todo o mundo, não aos meus pés, mas em cima da mesa que coloquei ao lado da cama.

Costumo ouvir a Emissora Nacional, que chega aqui com uma potência razoável. Para não me destreinar, ouço frequentemente a ORTF, a rádio Nanterre, que chega aqui distintamente nos treze metros. E quando pretendo rir um pouco, ouço as rádios turras, isto é, as rádios do terroristas, que falam frequentemente de nós e dizem coisas de nos fazer espantar. Até já fomos vítimas de emboscadas, das quais não escapámos e em que o barro das picadas ficou mais vermelho do nosso sangue. De modo que, a acreditar nestas emissões, quem vos está a escrever não devo ser eu mas, certamente, o meu fantasma.

Não haja dúvida que imaginação não lhes falta! E ainda bem! Tenho assunto para os meus aerogramas e argumentos para exigir o máximo de cuidado do meu pessoal. E tudo isto porque tenciono regressar à metrópole com todos os elementos com que vim para aqui.

Com a brincadeira do terrorismo, pus-me a divagar acerca das minhas instalações, das ondas curtas e esqueci-me da proposta. Por isso, vou interromper a escrita e registar a povoação numa planta de fundo amarelo, porque é esta a cor dos nossos aerogramas. Até daqui por uns minutos ou horas. A escrita prossegue dentro de momentos, para parafrasear aquelas interrupções imprevistas da televisão portuguesa.

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