Nota etnográfica e despedida

Pormenor de uma fotografia que mostra a estrutura de cubatas em construção, na sanzala de Macuma, (Angola, região do Cuango, em 15 de Março de 1973)

Na quinta-feira, dia doze, tive a surpresa de encontrar em Quimbele o alferes que está no Cuango.

— Tu por aqui, Raul? Deixaste o Cuango sem ninguém?

— Estão lá os furriéis.

— E o que é que vieste fazer a Quimbele? Matar saudades da civilização?

— Não. Fui chamado pelo capitão. Como estamos em alerta máximo, por causa da Páscoa, o capitão quer que eu vá com uma secção para Quibula Calonge.

— Isso é na zona do Alto Zaza.

— Creio que sim. Não conheço.

— Eu também não. Nunca lá estive. Mas sei onde fica. E sei também que é uma zona com bastantes povoações. E, que eu saiba, nunca lá esteve a tropa instalada.

— Nunca esteve. Mas, pelos vistos, vai passar a estar.

— Deve ser só por agora. Deve ser temporário, porque estamos de prevenção. Temos a Páscoa à porta e os turras aproveitam geralmente estas épocas para nos chatearem.

— É capaz de ser isso. Mas não devo lá ficar por muito tempo. Estou quase a ir de férias para a metrópole.

No dia treze, uma sexta-feira, fui de manhã a Sanza Pombo. Aproveitei uma ida do nosso pessoal a buscar o «reab» para ir à sede do batalhão. E aproveitei porque necessitei de depositar dinheiro. Foi esta a principal razão que me fez sair do descanso de Quimbele. Começava a ficar com demasiado dinheiro em meu poder. Depositei no Banco de Crédito Comercial e Industrial a módica quantia de doze mil e quinhentos escudos. Creio até que já deve chegar para as passagens de avião, dentro de algum tempo, quando for de férias à metrópole. No regresso, aproveitei para parar em Macocola, entre Sanza Pombo e Quimbele. Serviu-me não só para tomar uma bebida fresca, mas sobretudo para rever camaradas de outra companhia do nosso batalhão, que já não via desde Santa Margarida.

 

Neste momento, estou praticamente em dia. Tirando os filmes em Quimbele, que não vou aqui referir, pouco mais há de importante para vos dar a conhecer.

É verdade! Estava a esquecer-me de uma coisa importante, que merece ser mencionada. Acabo de receber várias fotografias a cores, oferecidas pelo furriel Rodrigues e pelo médico. São imagens tiradas na Quimabaca e também aqui, na zona de Quimbele. Vão recebê-las num envelope selado, juntamente com uma carta em que vos explicarei minuciosamente aquilo que foi registado pela objectiva.

Antes que me esqueça, chamo-vos a atenção especialmente para a foto de Macuma. Tem para mim um certo interesse do ponto de vista etnográfico. É um documento elucidativo da maneira como as cubatas são construídas. A matéria-prima é constituída por troncos de árvores, colmo e bambu cortado em tiras. Em certos locais, os nativos utilizam argila amassada, que colocam entre os troncos horizontais, presos aos verticais por meio de tiras de fibras vegetais. Deste modo, depois do barro seco, obtêm uma parede estanque e resistente. O telhado, com armação de troncos, é depois aparado nos bordos e coberto de capim. Quando tiver a máquina reparada, procurarei documentar-me mais rigorosamente acerca dos costumes indígenas.

Antes de me despedir dos pais, tenho apenas a registar um aerograma escrito para um camarada que está na Guiné. A particularidade desse aerograma é que o meu amigo pratica o culturismo. Para brincar com ele, um quarto do aerograma foi ocupado com um desenho, do qual guardei um duplicado a químico, que vos envio. É um desenho engraçado, com um casal todo nu a saltar à corda em cima de um colchão de molas. E, no meio do salto, diz a miúda: «Vês porque só podíamos casar um com o outro? Se não fôssemos ambos ginastas e apaixonados pelo culturismo (e CULTURISMO foi grafado com letras maiúsculas!), como é que nos arranjaríamos na nossa intimidade?»

Pelo desenho humorístico que vos mando, podem verificar como continuo em boa forma! Ainda não perdi a boa disposição e o sentido de humor.

Vou deixar-vos. Está na hora da janta. Se me atraso, arrisco-me a ficar em jejum, porque ninguém fica na sala de jantar à minha espera.

Ainda não! Só um pouco mais. Antes de terminar, mesmo correndo o risco de ficar sem jantar, tenho mais algumas palavras. Têm de seguir nesta colecção de aerogramas.

Amanhã, como estamos de prevenção rigorosa, vou ter de regressar ao Alto Zaza, para reforçar o grupo do alferes Vieira. Parece que os turras anunciaram pela rádio que até ao dia cinco de Maio conquistariam todo o norte de Angola. É mais uma daquelas conversas a que já estamos habituados e que se ouvem frequentemente em ondas curtas. De qualquer modo, é o bastante para nos lixarem a vida. Fazem-nos entrar de prevenção. E lá se vai o descanso em Quimbele!

Não digo mais nada! Certamente ainda volto a escrever-vos antes da Páscoa. Mas como essas palavras só aí chegarão muito depois, aproveito para deixar aqui os meus votos de uma Páscoa Feliz, mesmo sem a minha presença. E não se esqueçam de estender estes meus votos às pessoas amigas e familiares.

 

Até breve.

 

                    Vosso filho que muito vos quer,

 

Ulisses de Almeida Ribeiro

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