Enxovais militares

Com duas esferográficas cor de laranja no bolso da camisa, saí da secretaria em direcção à loja do comerciante, onde adquiri a máquina fotográfica. E não foi esta que me moveu. O objectivo foi outro.

— Bom dia, alferes. Então o que é que o traz por aqui? Está a gostar da sua permanência em Quimbele?

— Não desgosto, embora isto aqui seja um pouco monótono.

— Monótono? Mas porquê, alferes? Não me diga que não está a gostar! Olhe que sempre deve ser melhor que estar enfiado no mato.

— Tem as suas vantagens. No mato não há cinemas nem cafés onde passar o tempo. Nem civis como aqui, com lojas onde arejar o dinheiro. Mas, mesmo assim, tem algumas vantagens.

— Não me diga que o alferes prefere andar no mato.

— Claro que não! Aqui está-se muito bem!

— Sabe que mais? Não o estou a entender.

— Já vai entender. Aqui são as rotinas diárias. Levantar sempre às mesmas horas. O serviço de oficial de dia. As formaturas. Andar sempre às ordens do capitão...

— Hum! Creio que já o começo a entender. No mato o alferes anda por conta própria. É o alferes quem manda.

— Não é só isso! Olhe, por exemplo, no mês passado. No mês passado, passei-o praticamente todo instalado numa sanzala, entre Quimbele e o Cuango. Todos os dias tinha coisas novas para fazer. Eram os recenseamentos com as deslocações às sanzalas da região. Eram os miúdos que não nos largavam. Eram as conversas com os mais velhos. Era uma série de coisas. Nunca tínhamos tempo para nos aborrecermos. Aqui é sempre a mesma monotonia.

— Estou a percebê-lo. O alferes gostou de conviver com o nativos. Arranjou por lá alguma miúda...

— Que disparate! Acha que o comandante de um grupo, responsável por vários homens, ia dar um mau exemplo como esse?

— Não vejo porquê, alferes. Andar com uma mulher, mesmo sendo nativa, não é um mau exemplo. Um homem não é de pau. E de mais a mais, só, isolado no meio de homens, sempre deve ser mais agradável ter a companhia duma mulher.

— Não digo que não! Mas tem de concordar que seria um mau exemplo para o meu pessoal. Mesmo assim, se não andarmos com olho neles, arranjam-nos problemas de se lhe tirar o chapéu! Mas não vim cá para falar destas coisas.

— O alferes veio por causa da sua máquina fotográfica, não é verdade?

— Também! Mas não foi isso que me cá trouxe.

— Então? É outra coisa?

— É. Hoje, quando me levantei, andei a mexer na tralha que trouxe da metrópole. Tenho dois sacos enormes cheios de roupa. Parece quase um enxoval de casamento!

— Um enxoval de casamento, alferes?

— Sem dúvida! Imagine que, antes de virmos para Angola, é costume irmos ao Casão Militar adquirir as fardas e toda a roupa necessária para uma comissão completa. E eu creio que é um autêntico exagero. Pelo menos no que me toca. E não pense que estou a exagerar! Se não acredita, olhe para aqui, para esta folha de papel de trinta e cinco linhas, onde tenho toda a relação do material adquirido. Veja só isto. E diga-me se não é um autêntico enxoval de casamento.

— Ora deixe cá ver. De facto, alferes, tem aqui uma relação e pêras! Vejo que o alferes é dos metódicos. Gosta de tudo rigorosamente registado: uma caixa com utensílios para costura e pensos de vários tamanhos; seis toalhas de rosto; três de cu... de cu? Que raio quer o alferes dizer com isto: três toalhas de cu? Esta está com piada!

— São aquelas toalhas pequenas, que se colocam ao lado dos bidés.

— Esta está boa! Nunca lhe tinha ouvido chamar tal coisa! Mas está certo! É isso mesmo. Isto é uma relação comprida que se farta! Uma toalha de banho, seis lenços de assoar, seis pares de meias, três finas e três grossas, uns calções de banho... O alferes veio a contar com a praia? Está-se mesmo a ver!

— Claro. E espero virem a ser-me úteis, quando for a Luanda!

— Camisolas interiores, duas de manga comprida. Camisolas interiores de manga comprida? Para aqui, alferes? Com o calor que cá faz?! Seis interiores sem mangas, seis trusses, dois pijamas, três camisas de manga curta e três de manga comprida, duas gravatas, calças de terylene, três camisolas de lã, uma faca de mato... Ó alferes, isto nunca mais acaba?

— Continue. Vá até ao fim. E já fica a perceber por que razão considero tudo isto um exagero.

— Quatro sabonetes, um cachecol, um ponche, uma camisa camuflada, dois camuflados, duas fardas número três completas, três pares de sapatos e dois pares de botas, de lona e de coiro. E é tudo. Sim senhor, o alferes tem aqui uma lista e pêras! Tenho de concordar consigo: um exagero!

— Sem dúvida que sim! Bastava ter trazido três cuecas, duas camisas, dois pares de calças e pouco mais. Mas que quer? Na metrópole, não fazemos a mínima ideia do sítio para onde vamos. E não pense que sou o único. Quase toda a malta vem munida com enxovais deste tipo. Um autêntico exagero!

— E então, agora, o que é que o alferes quer fazer?

— Não quero fazer nada. O que quero é arranjar uma mala onde guardar tudo isto.

— Creio que tenho precisamente aquilo de que o alferes precisa. Quer uma mala tipo arca, em madeira trabalhada, que lhe poderá ficar para levar para a metrópole no final da comissão. Não é verdade? Olhe, tenho aqui umas trabalhadas, em madeira preciosa que são uma raridade.

— São bonitas! Mas não me parecem práticas e seguras. Quero uma mala resistente e com fechadura de segurança.

— Estou a ver. Temos aqui estas arcas em madeira, revestidas de chapa e com dois fechos. E, se quiser mais segurança, aplica-lhe uma ferragem destas, ao centro. Com parafusos que ficam tapados pela dobradiça de metal e um aloquete, ninguém lhe consegue abrir a mala. A não ser que a arrombem com um pé de cabra.

— É isso mesmo que preciso. Mas não será grande demais?

— Não é, alferes. É o ideal para a quantidade de roupa que o alferes trouxe.

— Mesmo assim, parece-me muito grande.

— Não é, alferes. Dá-lhe para toda a comissão. O seu enxoval só lhe vai encher a metade inferior. O resto vai sendo cheio aos poucos. Por exemplo, pode também guardar aqui os livros que tem adquirido. Isto é uma autêntica arrumação, alferes.

— De facto, com tanto espaço, vai dar para a comissão inteira. Vai-me servir para guardar tudo: as garrafas de uísque que estou a coleccionar, as ofertas em madeira que os nativos me têm obrigado a aceitar, em suma, vai ser o meu cofre forte militar. Até fica bem ao canto do meu quarto, aqui em Quimbele. Com umas almofadas em cima, serve perfeitamente para a malta se sentar. Se aguentar, claro!

— Aguenta perfeitamente, alferes. Acho que faz uma boa compra. Não é tão bonita e valiosa como aquela, em pau preto, mas é seguramente mais resistente. E porque não leva também uma destas trabalhadas? Olhe que é um bom empate de capital. Daqui por uns anos vale umas notas!

— Acredito que sim. São muito bonitas, essas arcas. E cheiram bem! Isto não é pau preto, como diz. Não será sândalo? Mas uma já vai dar trabalho a transportar.

— Olhe que o alferes, mais tarde, vai-se arrepender. Mas o alferes é que sabe! Mais alguma coisa, alferes?

— Gostaria de levar a minha máquina. Mas já sei que não está. Se estivesse, de certeza que era a primeira coisa que me teria dito. Não é verdade?

— A máquina do alferes está difícil. Aquilo foi uma avaria séria.

— E então? E se não tem conserto?

— Tem, alferes. Mas se não tiver, recebe uma nova.

— Entretanto, vou ficando sem máquina. E estou a perder imagens magníficas. Já lá vão uns cinco meses que estou sem ela. Deveriam arranjar uma de substituição, porque eu não tenho culpa que a máquina tenha avariado ao fim do primeiro rolo. A máquina tem garantia de um ano, não é verdade? Logo, não me parece correcto estar tanto tempo sem ela.

— Vou proximamente a Luanda, alferes. Garanto-lhe que, se a máquina não estiver consertada, eu próprio vou exigir uma nova em substituição.

— Acho bem. Até porque a marca Olimpus não é uma marca qualquer. Se a máquina tem garantia, deveria ter sido imediatamente substituída por outra igual.

— Deixando agora a máquina, alferes, gostaria de lhe colocar um problema, se me permite.

— Claro que sim. Diga lá.

— O alferes já deve ter reparado que as férias da Páscoa estão à porta.

— Claro que sim.

— A minha filha deve estar a vir de férias. O alferes ainda se lembra do pedido que lhe fiz há tempos? Estaria disposto a dar umas explicações durante o período das férias?

— Em que ano é que a sua filha está?

— Está no último, alferes.

— No sétimo ano?

— Exactamente, alferes.

— E vai continuar os estudos?

— Se ela quiser. Gostaria que ela continuasse os estudos e que fosse para a universidade, em Luanda.

— Depois se vê. Se continuar cá por Quimbele e não me trocarem as voltas, alguma coisa se há de arranjar.

— E quanto é que o alferes leva?

— Isso não é problema. Não estou preocupado com o preço. Terei todo o gosto em dar explicações à sua filha. Até será útil para mim! Vai-me servir para quebrar a rotina e não esquecer o que sei.

Chega de conversa. Já se vê que ainda demorei um bom bocado na loja, porque a conversa estava pegada. Mas já transcrevi até demais! Claro está que depois dos momentos de conversa com o comerciante não vim logo a correr agarrar-me à caneta. Quando cheguei à messe de oficiais, a primeira tarefa foi aplicar na arca as ferragens de segurança para colocação do aloquete. Depois, tive ainda que despejar os sacos de roupa e acamá-la no fundo da arca, que ficou a menos de metade da altura. Como interiormente existe um tabuleiro com um palmo de altura que se coloca na parte superior, vou passar a utilizá-lo para colocação dos livros e das revistas que ando a ler, bem como outros objectos pequenos, tais como as cassetes com música. E, por falar em música, faz-me aqui falta o gravador do furriel Rodrigues. Tenho cassetes com boa música gravadas em casa de um civil, mas não tenho onde as ouvir.

— Então o furriel não está contigo? Certamente que não o deixaste na sanzala.

— Claro que não. Não sabem que os furriéis e os sargentos não podem ficar com os oficiais? Não se lembram que, até no Alto Zaza, o meu quarto era separado dos furriéis? Aqui, em Quimbele, os sargentos têm a messe deles. À semelhança da nossa, está instalada numa moradia, a cem ou duzentos metros daqui, mais ou menos a meio da principal e única avenida que aqui existe.

Com todo este «arrazoado», estou a lembrar-me que vos estou a pôr ao corrente do presente dia e a esquecer-me do relato dos acontecimentos. E tenho de me despachar. Estamos de prevenção rigorosa. Vou amanhã para o Alto Zaza, não sei por quanto tempo. Como está na hora do almoço, aproveito a parte da tarde. Refugio-me aqui, na frescura do meu quarto. E prometo seguir fielmente as folhas da minha agenda. Do dia seis até hoje, são só dez dias. Como, tirando uma operação na região do Quitari, os acontecimentos não são muitos, devo despachar-me com relativa rapidez.

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