Uma pedra que era doce

— Bom, vamos lá ver o que vai sair. Não sei por onde começar. Aliás, até sei! Estou agora mesmo a lembrar-me de um episódio giríssimo. Ora deixem-me ver aqui na minha agenda. Cá está o registo. Foi no dia vinte e três do mês que ontem deixámos. Fez na sexta-feira uma semana. Se eu fosse contista, daria uma história excelente. Até lhe punha este título: «Uma pedra que era doce!»

— Uma pedra que era doce? Há pedras doces, Ulisses?

— Ó Capitão, não interrompa o Ulisses. Limite-se a ouvi-lo. Vá lá, continua.

— Pois, como eu estava a dizer, o episódio ocorreu na sexta-feira de manhã. Foi o que se chama um dia de descanso e de convívio com o pessoal da sanzala.

Pela manhã, depois do pequeno-almoço dos soldados e de nós termos feito o mesmo, o Joaquim aproveitou para fazer uma limpeza à minha tenda. Para ser mais rápido, aproveitou a ajuda de umas miuditas da sanzala. Pô-las a varrer as esteiras que colocámos à volta das camas, para nos protegermos da poeira barrenta do chão. Antes de eu próprio ter colocado a minha mesa de trabalho e a cadeira fora da tenda, quando o calor não aperta demasiado, aproveitei para ver a encomenda que os meus pais me tinham mandado. Além de um queijo da serra, os meus velhotes mandaram-me também dois pacotes com amêndoas brancas, para me lembrarem que a Páscoa está próxima.

— É verdade! A Páscoa já está próxima. É no dia vinte e dois deste mês.

— Já estamos tão perto, capitão?

— Ouçam lá, não querem continuar a ouvir a história do Ulisses? Por este andar, nunca mais a ouvimos.

— Não tem importância, Graça Marques. O capitão e o Valério têm razão. A Páscoa está próxima. Se tal assim não fosse, nunca este episódio poderia ter ocorrido.

— Já estou a perceber o porquê da pedra, Ulisses. Continua lá.

— Bom! Como ia dizendo, além de um queijo da serra, vinham dois pacotes de amêndoas brancas. Como já não via tal coisa desde o ano passado, comecei a abrir um pacote. A miudita, que andava a varrer as esteiras, mesmo ao meu lado, assim que comecei a desembrulhar o pacote, olhou para mim, cheia de curiosidade. Certamente que o barulho do celofane chamou-lhe a atenção. Interrompeu o trabalho. Ficou especada, de vassoura parada, a olhar muito séria para mim e com uma enorme atenção centrada nas minhas mãos. Deu para perceber que nunca tinha visto um pacote de amêndoas. Muito lentamente, para prolongar a cena, enfiei dois dedos. Com todo o vagar, remexi as amêndoas com o indicador. Escolhi uma das maiores. Segurei-a entre o indicador e o polegar e coloquei-a na palma da mão direita, que estendi para a miúda. Olhou muito seriamente para mim e deu um passo para trás. Insisti. Estiquei mais a mão na direcção da miúda. Fiz-lhe o gesto de pegar na amêndoa e de a levar à boca. Nada! Ficou como que paralisada, intrigada, com um olhar de espanto, como quem diz: «queres obrigar-me a meter uma pedra na boca!». Abanou-me a cabeça, que não. Para a convencer, peguei na amêndoa e meti-a na boca. Arregalou-me os olhos: o alferes estava a meter uma pedra na boca! Retirei outra amêndoa do pacote e voltei a estender-lha, fazendo-lhe o gesto para que pegasse nela e a metesse também na boca. E reforcei o gesto com as palavras: Anda. Pega na amêndoa. Mete-a na boca. É bom.

O Joaquim, que estava também a seguir a cena, cheio de curiosidade, porque certamente também nunca tinha visto nenhuma amêndoa, apoiou-me. Apoiado pelo Joaquim, mexi exageradamente a minha amêndoa na boca e fiz umas exclamações de agrado. A curiosidade acabou por vencer a surpresa e a resistência. A miudita pegou na amêndoa e, ainda com algum receio, acabou por a meter na boca. Passados uns segundos, tinha-lhe tomado o gosto. O ar de espanto era notório. A pedra branca do alferes era doce. E quase no mesmo instante, retirou a amêndoa da boca e saiu da tenda a correr. E o espantado fui eu, que não contava com aquela fuga repentina da miúda, ao mesmo tempo que o Joaquim mostrava a fiada branca dos dentes. Ria de satisfação com a reacção da garota e a cara de surpresa do alferes.

Passados uns minutos, quando a cena da amêndoa parecia já estar esquecida, gera-se um certo burburinho à minha volta. Tenho junto à tenda não só os pais da miúda e outros adultos, mas todos os miúdos da sanzala. Olham para o alferes, cheios de curiosidade. Pelo Joaquim, fico a saber que pela sanzala corria a voz que o alferes tinha umas pedras brancas que eram doces. Estavam ali todos para verem as pedras doces que o alferes tinha recebido do puto.

— Do puto? Qual puto, Ulisses? As amêndoas não eram tuas?

— Claro que eram. Qual é a surpresa?

— Estás a dizer que as recebeste do puto?

— O quê?! Não sabes o que é o puto, Graça Marques? Nunca ouviste, no hospital, falar do puto? O puto é uma expressão muito usada pelos nativos e corrente, penso eu, em Angola. Além de designar um miúdo bastante pequeno, emprega-se também em relação às coisas pequenas, tal como eu agora acabei de fazer. Temos de nos adaptar à linguagem local. Por isso é que eu disse que recebi as amêndoas do puto, que é como quem diz de Portugal metropolitano. Não te esqueças que Angola é quarenta e tal vezes maior que Portugal. Por isso, Portugal é coisa minúscula. E o mais curioso é que, além de designar Portugal metropolitano, os nativos utilizam também a expressão «falar puto», que é como quem diz «falar português».

— Ouve lá, Ulisses, estás agora a querer dar-nos uma lição?

— Não, capitão. Como aqui o nosso médico reagiu, pareceu não me ter percebido, procurei esclarecê-lo.

— Deixa-te disso. Já estamos fartos de saber isso. E depois, o que é que aconteceu?

— O que aconteceu, capitão, é que tive de satisfazer a curiosidade dos nativos, especialmente dos miúdos. Foi uma limpeza nas amêndoas. Nem uma me ficou para a Páscoa. Fui à tenda buscar um pacote de amêndoas e uma cadeira, sentei-me à entrada e espalhei-as na palma da mão, para eles poderem observar. Depois, peguei numa e dei-a ao miúdo que estava quase em cima de mim. Enfiou-a na boca, deu-lhe duas ou três voltas, para lhe tomar o gosto, e voltou a tirá-la. Pensei que não tivesse gostado. Mas não! Não era nada disso! Gostou e mostrou-se entusiasmado. E aconteceu uma coisa curiosíssima, que eu nunca imaginei que pudesse acontecer. Tirou a amêndoa da boca e passou-a a outro miúdo, que a meteu na boca e lhe deu também umas chupadelas. Em poucos segundos, para minha surpresa, a amêndoa foi passando de boca em boca. As pedras brancas do alferes eram o espanto destas gentes. Mas o facto de isto ser uma surpresa completa não foi o que mais me admirou. O que verdadeiramente me surpreendeu foi o gesto, foi a atitude destas pessoas, foi o partilhar de uma experiência nova. Algum miúdo na metrópole teria um gesto destes, um gesto de partilha?

— Uma atitude bem pouco higiénica! Um nojo!

— Não diria isso, Valério. Uma atitude excepcional! Isso sim! Uma atitude de tal modo nobre, que resolvi distribuir as amêndoas por todos os miúdos. Foi uma limpeza geral nos pacotes. Nem uma só sobrou para festejarmos a Páscoa. Mas ficou-me o prazer de ver a alegria estampada na cara destas pessoas, que descobriram uma coisa nova graças à tropa que se instalou na terra deles durante algum tempo.

— Acabou a história, Ulisses?

— Acabou este episódio, que não foi o único, mas serviu para despoletar uma série de observações e de factos ao longo do dia. Foi uma sexta-feira de descanso cheia de surpresas e de descobertas, não só para os nativos, mas sobretudo para mim relativamente a eles.

— Que descobertas? Conta lá isso. Estás a espicaçar-nos a curiosidade. Por isso, não te queixes.

— Ouçam lá, já não dá para continuarmos a ouvir o Ulisses.

— Não dá porquê, capitão?

— Olhem para o relógio. Já viram as horas que são? Temos de ir para cima. Logo à tarde, a seguir ao almoço, durante a bica, o Ulisses acaba os relatos.

— Acho melhor não, capitão.

— Não porquê, Valério?

— Porque temos de discutir quem paga as bicas. Não fazemos a nossa partida de póquer? E o capitão não disse que íamos ao Futa tomar uma banhoca? Aproveitamos os momentos no rio para ouvirmos as histórias do Ulisses.

— É boa ideia, sim senhor! Até porque hoje temos uma sardinhada ao almoço, capitão. Com a barriga atestada e a moleza que isso dá, não é o momento para estarem a ouvir as minhas peripécias. Acho que o Valério está a dar uma boa ideia. Tomamos a bica, discutimos aos dados quem paga a despesa e depois... E depois de eu conhecer o rio quê?

— O Futa, Ulisses.

— Obrigado, Graça Marques. Depois de conhecer o Futa e de nos termos refrescado, retomo o relato no sítio em que ficámos. Até porque tenho outros episódios engraçados. Episódio ocorridos não só na sexta-feira, mas nos dias seguintes. Por exemplo, a minha despedida da Quimabaca, que me deixou profundamente sensibilizado.

— Vamos lá, pessoal. Vou pagar as bebidas. Hoje pago eu. E vamos ao almoço.

— O capitão está hoje muito generoso!

— Eu sou assim, Graça Marques.  

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