Marchas nocturnas em Mafra

Acabo de terminar uma breve pausa na escrita. Já me doíam as costas e as pontas dos dedos. Também não é de admirar! Consegui escrever um total de dezassete aerogramas praticamente ao correr da pena, perdão, da esferográfica. Tudo numa letra miudinha e compacta. Tudo em alta velocidade, para não perder as palavras dos diálogos, que me surgiam na mente como se os tivesse acabado de ouvir. Parece que a minha mente se transformou no gravador que o furriel comprou em Quimbele. É como um gravador de cassetes. Rebobinei a fita da memória e fui obrigado a escrever em alta velocidade, para não perder os diálogos. Ao fim dos dezassete aerogramas, que tenho empilhados na mesa tosca de madeira, as pontas dos dedos estavam marcadas com as faces do prisma hexagonal da esferográfica. Durante estes dezassete aerogramas, nem as brincadeiras dos miúdos da sanzala conseguiram distrair-me, de tal modo estava concentrado na escrita. Por tudo isto fiz uma pausa e dei uma volta pela sanzala, aproveitando a magnífica tarde deste dia 22 de Março, um dia de céu profundamente azul, com nuvens brancas aqui e ali, que se recortam nitidamente como fofos maços de algodão.

Em pouco tempo, em cerca de duas horas de escrita, quase consegui pôr-me em dia. Mas falta ainda dar-vos a conhecer os três últimos dias, melhor dizendo, os dois dias e meio em que tive aqui a companhia do Capelão. Na companhia dele, andámos todos felizes como gaios a saltitar descontraidamente nos ramos das árvores. O único problema, tirando aqui o nosso Capelão, é que não há gaios nas redondezas. Isso será válido aí por essas paragens, aí em terras metropolitanas. E mesmo aí, certamente só nos campos, em algumas regiões do nosso Portugal tão pequenino, mas que, nem por isso, não nos deixa de fazer sentir tão grandes saudades.

Após uma noite de copiosa chuva, que nos obrigou a algum trabalho imprevisto para que a água não entrasse no interior das tendas, o domingo amanheceu radioso. Um céu de um azul intenso, sem nuvens, com tudo quanto nos rodeia mais brilhante e lavado pela tinta corredia que desabou do alto. O chão argiloso, empapado pela chuva nocturna, estava agora a endurecer ao calor do sol, oferecendo-nos um piso mais escuro e brilhante, sem vestígios daquela poeira fina que tinge de vermelho o espaço envolvente. Até as árvores e as cubatas se recortam melhor, lavadas e brilhantes, contra um azul puríssimo.

Após as primeiras formalidades da manhã, com o serviço todo distribuído e sem mensagens para decifrar, aproveitei os momentos do pequeno almoço para conversar com o capelão.

Não vamos agora aqui ouvir aquelas habituais palavras, com que costumamos encetar uma conversa e durante as quais, logo pela manhã, nos perguntamos se a noite foi bem dormida, se não estranhámos o colchão e a mudança de ambiente. Estas são perguntas desnecessárias. Depois de um dia de peripécias, não há noites mal dormidas. A tropa tem que estar habituada a tudo. Quando o cansaço aperta, qualquer coisa serve de colchão. Até em pé e a andar se consegue dormir, como nos aconteceu várias vezes em Mafra, durante as marchas nocturnas. Estou agora a lembrar-me da valente queda que dei, certa noite, num dos percursos de turismo forçado pelas estradas do concelho de Mafra.

Não sei se alguma vez vos falei disto. Talvez já tenha abordado o assunto em algum aerograma anterior. Mas não estou minimamente recordado. Se já o fiz, paciência! Será uma nova dose. Mas é uma evocação rápida, que agora me veio à memória e não posso deixar de a referir. Até para poder estar em sintonia com a promessa que vos fiz: «...de tudo quanto pensar e sentir...».

Vamos lá, depressinha, à evocação, que o capelão está à espera de ser evocado na nossa memória.

Durante a especialidade em Mafra (e também durante a recruta!), fomos frequentemente brindados com um treino intensivo de resistência a longas marchas. E quase todas elas, para nosso azar, eram treinos nocturnos, de longos quilómetros, sempre às horas menos convenientes, em que todo o mundo dormia. E sempre carregados com mochila e armas.

Ao fim de vários quilómetros de marcha sobre o asfalto da cor da noite, o cansaço e o sono começava a vencer-nos a resistência física. Mesmo em andamento, os olhos teimavam em fechar-se. O corpo mantinha-se em marcha, ao mesmo tempo que procurava recuperar do cansaço. E como a marcha passava a fazer-se às cegas, o mais normal era perdermos a linha recta, desviarmo-nos da rota e enfiarmos em direcção ao meio da estrada ou da valeta da berma, mesmo ao nosso lado. Para evitarmos uma saída acidental da rota, o militar que vai atrás era o responsável pelo camarada da frente. Deste modo, se detectávamos que o camarada da frente se desviava para o centro ou para a berma, isso significava que tinha adormecido. A nossa obrigação, sem sequer o acordarmos, era encaminhá-lo, de modo a manter-se na fila. Assim, era-lhe dada a possibilidade de dormir durante uns breves minutos, recuperando um pouco sem necessidade de pararmos a progressão. O problema era quando dois ou três elementos seguidos adormeciam ao mesmo tempo. Foi precisamente isto que me aconteceu certa noite. Embora consiga ter uma certa resistência ao sono e ao cansaço, tendo safado muitos camaradas da valeta, certa noite o cansaço foi demasiado. E se, algumas raras vezes, tive a sorte de ser reposto na trajectória pelo camarada que vinha atrás de mim, desta vez tive o azar dele ter também adormecido. E o resultado foi o menos agradável. Em vez de ir para o centro da estrada, desviei-me para a valeta. Foi uma queda valente. Felizmente, uma queda sem graves consequências. Costuma dizer-se que, ao menino e ao borracho, põe-lhe Deus a mão por baixo. O provérbio bateu certo! Não é que eu seja um miúdo e muito menos um borracho, apesar de algumas miúdas, em Coimbra, me terem algumas vezes considerado como tal. Mas como ia borracho de sono, isto deve ter sido o bastante para que o provérbio tivesse batido certo. Levantei-me. Apalpei-me. Estava tudo no lugar. Não havia nada partido. Com a ajuda de uma lanterna e de outro camarada, encontrámos a canhota caída na valeta, isto é, a espingarda G3. Não tinha sofrido qualquer mossa com a queda. De novo na companhia da moça, que trazia sempre comigo agarrada ao peito, bem limpa e com o carregador no sítio, retomei a marcha e cheguei a Mafra sem mais nenhum incidente deste tipo.

Chega de evocações! Por este andar acaba o dia, aumenta a pilha de aerogramas e continuo com a escrita atrasada. Retomemos os relatos. Voltemos à companhia do capelão, apesar de ele já ter regressado a Quimbele na terça-feira à tarde. Rebobinemos a fita da memória, porque estávamos na manhã do dia dezoito, na manhã de um domingo de céu brilhante e com um azul puríssimo. E com isto, é já a segunda vez que falo na manhã de sol. Não querem lá ver que tenho as pilhas gastas e não consigo rebobinar a fita da memória?! Estou para aqui a carregar na tecla do «play» e o raio do diálogo matinal com o capelão não há maneira de sair. Se calhar, vou ter de ir buscar uma bebida com uísque, para ver se refresco a memória... E é isso mesmo que vou fazer. A minha conversa convosco, isto é, o meu relato recomeça dentro de minutos. Até já!

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