A Máquina nova do médico

Quimabaca, 22 de Março de 1973

 

 

Neste momento deverão já ter recebido a colecção de aerogramas que vos escrevi de Quimbele. Se já os leram, devem ter ficado espantados com a forma abrupta, com a forma pouco prosaica com que encerrei a colecção. A verdade verdadinha, para ser sincero, é que não cheguei a acabar a carta. A falta da habitual despedida não foi uma falta minha.

Na manhã do dia dezassete, consegui reproduzir-vos os momentos de convívio, na esplanada do café. Lembram-se que os momentos de recolhimento na vossa companhia foram bruscamente interrompidos pela chegada dos meus companheiros de desterro? Ao contrário do que pensava, só voltei a pegar na caneta na manhã do dia seguinte, precisamente no mesmo lugar em que interrompi a correspondência. E dei-vos a conhecer a animada conversa durante a qual eles quiseram saber o que tenho andado a fazer na Quimabaca.

Em vez dos relatórios escritos, que têm sido frequentes, o comandante de Companhia, o capitão Alberto, prefere ouvir-nos a estar a ler a papelada que temos produzido. Não posso deixar de concordar com ele. É muito mais agradável ouvir os factos durante os momentos de convívio do que ficar encerrado no gabinete a mexer na papelada. E é também uma boa forma de ocuparmos o tempo. Ouvindo os relatos uns dos outros, as horas passam mais depressa e ficamos também com uma ideia das situações vividas por todos. Se não fosse a falta de tempo, relatava-vos aqui as peripécias dos outros. Se o fizesse, não deixaria de estar dentro dos parâmetros da promessa que vos fiz na noite da viagem para Angola. Ainda se lembram dela? Creio que tenho estado a segui-la rigorosamente. E se não estou mais amiudadas vezes na vossa companhia, é porque o dia só tem vinte e quatro horas e o tempo e a disposição não dão para mais.

Durante a manhã do dia dezassete, consegui reproduzir-vos o convívio da véspera. Por volta das onze e meia, regressei à messe de oficiais. Encontrei o capelão na conversa com o médico da Companhia.

— Tu por aqui na conversa com o capelão a uma hora destas?! Fazia-te no hospital, a tratar dos doentes...

— Olá, Ulisses. Não dás os bons dias à malta?

— Desculpem lá. Fiquei admirado com a tua presença aqui, a meio da manhã. Aliás, o capelão já o vi logo pela manhã, antes de ter saído. A ti é que já não te vi. Acordei mais tarde que o costume. Quando tomei o pequeno-almoço, já passava da hora normal. Cheguei atrasado e já todos tinham saído. O capelão, vi-o antes de ir até lá abaixo ao Briosa Bar.

— Estava lá alguém conhecido?

— Se estava, não reparei. Estive entretido a escrever. Só vim para cima mais cedo para falar com o capelão. Mas, afinal, o que é que estás aqui a fazer a esta hora da manhã? Parece que vim interromper-vos a conversa...

— O Graça Marques estava a falar-me da nova aquisição. Foi por isso que o encontras agora aqui.

— Que nova aquisição vem a ser essa?

— Acabo de comprar uma máquina fotográfica. Foi por isso que saí mais cedo do hospital. Além do mais, hoje é sábado. É fim de semana!

— Aqui o Ulisses é que é o especialista em máquinas fotográficas, segundo me consta.

— Ora, capelão... Especialista em quê? Sei tirar fotografias como quase toda a gente.

— Não é bem assim. Segundo consta, este é um dos teus maiores prazeres. Este e o de passares o tempo a escrever. É, pelo menos, o que dizem os soldados e os teus furriéis. Para onde quer que vás, vais sempre carregado com a máquina fotográfica. Ou não será verdade?

— Só em parte, capelão. Infelizmente, de há uns tempos para cá, não tenho podido fazer o que está a dizer. A máquina avariou-se. Está a reparar há já uma eternidade! Nunca mais está pronta!

— Compras aparelhos sofisticados, Ulisses. E depois avariam-se. Quanto mais complicados mais susceptíveis são de avariar.

— É uma questão de sorte, Graça Marques. Todas as máquinas se avariam. Até nós! Mas, afinal, onde é que está a tua aquisição? Estás a falar dela com o capelão e não a tens contigo?!

— Estávamos a falar de muitas coisas. Umas delas, claro está, da compra da máquina. Quando se tem um brinquedo novo, é dele que mais gostamos, até nos fartarmos...

— Isso é verdade. Mas onde tens o aparelhómetro?

— Tenho-a no quarto. Não ando com ela por todo o lado. Primeiro, tenho que lhe estudar as instruções, para saber como trabalha. É para isso que as máquinas vêm sempre com manual de instruções.

— Fazes bem. Aliás, é sempre por aí que se deve começar. Antes de se trabalhar com qualquer máquina, seja ela qual for, a primeira regra que devemos seguir é ler atentamente as instruções, para evitarmos fazer asneiras.

— É isso que vou fazer.

— Pois, mas a melhor maneira de estudar as instruções é tendo o material na frente e utilizando-o ao mesmo tempo. Como é que tratas os doentes? Não é vendo-os e apalpando-os, para descobrires onde dói? Vai lá buscar a máquina, para apreciarmos essa maravilha.

Enquanto o médico foi ao quarto buscar a nova aquisição, aproveitei para falar com o capelão:

— Como é? Sempre vai comigo para cima?

— Claro, Ulisses. A que horas saímos?

— Logo a seguir ao almoço, isto é, depois da bica, por volta das duas e meia. Já tem tudo preparado?

— Tenho sempre tudo preparado. Eu e o meu ajudante.

— O seu ajudante?

— Sim, o moço que anda comigo, que me ajuda. É o meu ajudante.

— Não sabia que o capelão, aqui na guerra, também precisava de sacristão. Quando esteve comigo no Alto Zaza, andava sozinho. Não trazia ajudante.

— Os oficiais não têm direito a um impedido? Não tens um soldado para te auxiliar na messe?

— Não! Dispensei essa ajuda. Tenho o Joaquim, o moço nativo que o capelão já conhece.

— Vocês estão numa conversa muito animada. Aproveitaste a minha ida ao quarto para te confessares ao capelão, Ulisses?

— Vamos hoje para cima, para a Quimabaca. O capelão vai comigo. Estávamos a combinar a saída depois do almoço.

— Esta é uma máquina semelhante à tua, embora não tão completa, segundo me disse o comerciante.

— Compraste-a na mesma casa que eu?

— Exactamente. Tu é que tiveste azar. Segundo o comerciante, a avaria da tua máquina é coisa rara. Parece que foi um problema qualquer com o sistema de disparo.

— Mostra cá isso. Tem rolo? Já a experimentaste?

— Tem um rolo a preto e branco. Ainda não tirei nenhuma fotografia.

— Olhem, vêm aí os nossos camaradas, o Vieira e o Valério. É uma boa altura de tirarmos uma fotografia em grupo. Vamos lá para trás da messe, para o parque auto.

— Olá, pessoal. Então já acabaram o serviço? E o capitão?

— O que é que vocês aqui estão a fazer, a uma hora destas? Ainda é muito cedo para o almoço.

— Já não falta muito, Vieira. Encontrei aqui o capelão na conversa com o Graça Marques. E tu, Vieira, deixaste o Alto Zaza?

— Vim cá passar o fim de semana.

— Hoje, o Graça Marques fez gazeta ao hospital. Andou nas compras.

— Não fiz gazeta nenhuma, Ulisses. Já estive toda a manhã a trabalhar. Saí foi mais cedo, para comprar a máquina. Além disso, é fim-de-semana.

— É verdade. O Graça Marques comprou uma máquina fotográfica. Estávamos a pensar ir experimentá-la. E vocês chegaram em boa altura para o retrato.

— E quem tira a foto?

— Isso não é problema. Se me disserem como é, tiro-a eu.

— Porquê? O capelão não quer ficar na fotografia connosco?

— Tenho tempo de ficar nas fotografias. Mas tiro-vos aos quatro. São todos da mesma Companhia. Por isso devem ficar juntos, sem mim, que sou um elemento estranho.

— O capelão não é nenhum elemento estranho. É o nosso capelão. Pertence a todos nós, à Terceira e às restantes Companhias. Por isso, ficará muito bem no grupo.

— Estou inteiramente de acordo contigo, Vieira. Mas prefiro ser eu a tirar-vos a fotografia. E onde vai ser? Qual o melhor sítio, Ulisses?

— Lá atrás, no parque auto, é um bom local.

Fotografia tirada em Quimbele - Angola - em Março de 1973. Da esquerda para a direita: O médico da Companhia, Dr. Graça Moura, e alferes Virgílio (em pé), Valle e Oliveira.

Fotografia tirada em Quimbele - Angola - em Março de 1973. Da esquerda para a direita: O médico da Companhia, Dr. Graça Moura, e alferes Virgílio (em pé), Valle e Oliveira.

Saímos da messe de oficiais, demos a volta ao edifício e fomos para as traseiras, onde se situa o parque de reparações e estacionamento das viaturas mais pequenas da Companhia.

— Onde é que achas que é o melhor sítio para a fotografia, Ulisses?

— Todos os sítios são bons, Graça Marques, desde que haja boas condições de luz. Só temos que escolher um local que nos agrade.

— Que tal sentados no jipe do capitão?

— É boa ideia, capelão.

— Como é que isto se regula?

— Deixa-me ver a tua máquina. Primeiro, tenho que a observar, para ver quais as características. E, já agora, dou-vos uma breve explicação, que o Vieira já deve conhecer. Ainda te lembras das explicações que te dei, quando vos emprestei a minha máquina antes de ser evacuado de helicóptero?

— Onde é que isso já vai, Ulisses! Isso foi antes do Natal. Muito antes do Natal! Já lá vão uns meses! E depois nunca mais voltei a pegar numa máquina fotográfica.

— Bom, então aqui vai uma breve explicação, especialmente para ti, Graça Marques. Antes de tirarmos a fotografia, se a máquina não é das que não têm regulação, temos de nos preocupar com alguns aspectos fundamentais: velocidade de obturação, abertura do diafragma e distância. Esta máquina, segundo vejo, é parecida com a minha. Tem um dispositivo que permite tirar sempre boas fotografias. Com ele, não há desculpas para imagens más .

— Qual, Ulisses?

— Tem uma célula fotoeléctrica, isto é, tem um dispositivo que permite medir a luz e regular a abertura do diafragma com precisão. Medida a luz, temos de seleccionar a velocidade de obturação e o diafragma. Uma coisa depende da outra.

— Calma aí, Ulisses. O que é isso de velocidade de obturação?

— Velocidade de obturação, Graça Marques, para usar uma linguagem fácil de entender, é a velocidade com que a máquina dispara, isto é, o diafragma pode abrir e fechar com maior ou menor rapidez. Quanto maior a velocidade, menos tempo dá para a sensibilização da película pela luz, e vice-versa. Velocidade de obturação e abertura do diafragma estão dependentes uma da outra. Como velocidade, especialmente para quem não percebe nada de fotografia, aconselho a ter a máquina sempre regulada em 1/125 avos de segundo. É uma velocidade não muito elevada, mas suficientemente rápida para evitar tremer as fotografias. Deste modo, só têm que se preocupar com a regulação da abertura do diafragma, em função da intensidade da luz medida pela célula fotoeléctrica. E têm também, como é lógico, de enquadrar a imagem e regular a distância. Como a máquina que o Graça Marques comprou tem telémetro, isto é, dispositivo para medir as distâncias, a sua regulação é de grande facilidade. Antes do capelão nos tirar a fotografia, só preciso de verificar se a máquina está devidamente regulada de acordo com a sensibilidade do rolo. Parece que está tudo em ordem! Coloquem-se na viatura e deixem a extremidade para mim. Eu regulo a máquina e, depois, o capelão só tem que enquadrar e carregar no botão. Só espero que não nos corte as cabeças.

— Está descansado, que vos deixo inteiros. Coloca-te lá no sítio. Vá lá, pessoal, um sorriso para o fotógrafo.

Com as fotografias e mais um pouco de conversa, passaram o tempo, o almoço e os momentos de convívio durante a bica e chegou a hora de arrancarmos para o destacamento temporário da Quimabaca.

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