Descrições interrompidas

— Ulisses, podes dar-me uns minutos de atenção?

Tenho a impressão que vou ter de interromper a minha escrita. Está o alferes, que comanda o destacamento do Cuango, a solicitar a minha atenção.

— Sim, todos os que forem precisos. Estou a escrever aos meus pais. Estou a pôr a escrita em dia e a reviver os últimos acontecimentos.

— Desculpa lá interromper-te a escrita, mas acabo de estar em ligação com os três tiras. Perguntou-me se ainda aqui estavas avariado e se era tão grave a avaria que não a conseguíssemos resolver.

— Claro que sim. O que é que lhe respondeste? Se não fosse grave, já nós teríamos resolvido a situação e nem te teríamos pedido socorro. O que é que lhe respondeste?

— Disse-lhe precisamente isso. Disse-lhe que os condutores já estiveram à volta da viatura e que nada conseguiram fazer, que a viatura continua avariada, que eles não são mecânicos e nem nós cá temos ninguém especializado na matéria.

— E voltaste a lembrar-lhe qual é o problema?

— Não! A causa da avaria não lha disse. Também não sei qual é! Não lhe disseste já tu na mensagem que enviámos no dia em que cá chegaste?

— Não sei se terá prestado atenção ao problema. Quem lhe decifra as mensagens costumam ser os alferes. Costuma deixar esse trabalho a cargo dos alferes. 

— É natural! Tem lá o Vieira. É o braço direito dele! E o substituto no comando da Companhia, na sua ausência.

— O Vieira, não! Agora deve ser o Valério.

— O Valério?!

—  Sim, o Valério. O Vieira foi-me substituir no Alto Zaza. Mas mesmo que lho tenham dito, pode ter esquecido.

— Mas, afinal, qual é o problema da viatura?

— Terei de lhe voltar a mandar, ainda hoje, nova mensagem cifrada a explicar-lhe pormenorizadamente o que aconteceu e aquilo de que necessitamos para resolução do problema.

— Mas, afinal, qual é o problema?

— O problema é que se partiu o diferencial. A viatura deixou de ter tracção nas rodas da frente. Só anda em plano e nas descidas. Se apanha uma subida, mesmo que ligeira, já não consegue vencer o declive. Engasga-se e não avança. O que nos valeu, para aqui chegarmos, foi a tua viatura. Puxou-nos nas subidas com o cabo do guincho. Por isso, é preciso que os mecânicos venham cá efectuar a reparação e que tragam as peças necessárias para substituir o que se partiu. E já que vou ter de mandar esta mensagem, aproveito também para pedir ao teu pessoal de transmissões que voltem a comunicar com a Quimabaca.

— Para quê? Estás preocupado?

— É para dizerem ao furriel Rodrigues que já descobri onde ficam os povos de Bumba e Macuma. Com a ajuda do Joaquim, na última passeata pela sanzala a seguir à pista, consegui descobrir onde ficam estes dois povos, que não figuram na cartas topográficas.

— Onde ficam?

— Aqui bem próximo do Cuango, mas desviados da picada. Pertencem à tua zona, ao Cuango. Estão sob a tua alçada e da administração do Cuango. Mas só com uma boa viatura lá conseguiremos chegar. Quando falaste com o capitão, que solução é que ele apresentou?

— Disse que de momento não podia fazer nada. Têm todo o pessoal ocupado numa operação na região do Alto Zaza e estão sem viaturas. Disse que amanhã ou depois mandava cá alguém com os mecânicos, para resolverem o problema da viatura.

— Quer isto dizer que ainda aqui vou ficar contigo por mais uns dias. Vais ter de continuar a aturar-me.

— Parece que sim. E quem dera que fosse por muito tempo. Ao menos, tenho o prazer da tua companhia. Passas aqui o fim de semana connosco, em descanso. Queres melhor do que isto?

— O problema são os recenseamentos. Temos ainda muito trabalho e pouco tempo...

— Estás ralado com isso?!

— Claro!

— A culpa não é tua! E a guerra é para se ir fazendo nas calmas! Aproveitas para descansar na nossa companhia. Pões a correspondência em dia. Convives connosco, com a tropa e com os civis. Queres melhor do que isto? Queres melhor maneira de passar o tempo?

— E o meu pessoal na Quimabaca?

— Está descansado, eles não se perdem!

— Bem, os furriéis não se devem atrapalhar. Pelo menos, o Rodrigues é da maior confiança. E, além disso, não estão sozinhos! Ainda lá deve continuar o alferes com o grupo de engenharia... E daí talvez não! Estamos já com uma semana passada. Estavam com pressa em despachar o arranjo das picadas e regressarem à sede da Companhia. À Companhia deles, claro está! Queriam regressar ainda antes do fim de semana. A esta hora já devem ter ido embora...

— E o que é que isso tem de especial? Rala-te com isso! Que culpa tens que as viaturas estejam sempre a avariar? Não podes fazer milagres. Não penses mais nisso. Nada podes fazer. Acaba mas é depressa a escrita para os teus velhotes e vem ter connosco. Estamos na loja do senhor Manuel da Punga.

— Queres dizer, do ti Manel da Punga? É assim que o pessoal trata este comerciante. E foi assim que já me habituei a tratá-lo, nos poucos momentos que lá tenho estado na conversa.

— Vá lá. Despacha-te. Vai lá ter. Bebemos umas cervejas e jogamos uma partida de king.

— Duvido! Onde é que isso já vai! Já nem sei o que isso é! Desde que saímos de Santa Margarida, nunca mais joguei isso. E mesmo lá, foram duas ou três vezes. Já não sei como é! Esqueci tudo!

— Não faz mal. Voltas a aprender.

— Está certo! Acabo a carta para os meus pais e vou lá ter convosco. Jogamos nós os dois contra os teus furriéis. Vamos levar uma tareia, mas não faz mal. Estamos entretidos a queimar o tempo!

— Então vê lá se te despachas. Não fiques o dia todo agarrado à caneta. 

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