Descrições etnográficas

Registei um razoável número de objectos domésticos. São característicos desta região e, talvez, de todo o território angolano. O mais típico, que julgo ser comum a toda a África equatorial, é o enorme almofariz de madeira, com o respectivo pilão. Tiveram já oportunidade de o observar em fotografias que vos mandei.

O almofariz é construído a partir de uma secção de um tronco de árvore, com uns cinquenta centímetros ou mais de altura, pacientemente trabalhado pelo homem, até obter a forma tradicional de uma grande taça de madeira, no fundo da qual a mandioca é transformada num pó fino, com o qual se fazem as fubadas.

A mandioca é previamente seca em plataformas de madeira, com cerca de um metro de altura, colocadas na orla da sanzala e nunca dentro desta. O forte odor, que se liberta durante a secagem desta tuberculada planta, obriga a que a secagem se faça na periferia da povoação. É este odor fortíssimo que nos permite, quando andamos no meio da selva, detectar a grande distância a existência das sanzalas, desde que tenhamos, como é evidente, o vento a soprar na direcção certa.

Além dos enormes almofarizes e pilões para a fuba, há objectos idênticos em tamanho reduzido, destinados a moer a ginguba e o gindungo. Cada almofariz para o seu fim, para que os produtos obtidos não fiquem alterados no paladar! É moendo a ginguba num almofariz mais pequeno de madeira que se obtém o óleo de amendoim utilizado na culinária local. Para o gindungo, que nos permite dar aquele toque de picante apaladado aos nossos petiscos de carne assada, que ninguém ousa recusar, utiliza-se um almofariz ainda mais pequeno, também com o pilão de madeira à escala do recipiente de moagem ou trituração. O almofariz utilizado pelos nossos cozinheiros é precisamente um dos exemplares que me foi oferecido pelos nativos e que tem prestado relevantes serviços ao grupo.

Outro objecto dos mais utilizados nas lides domésticas é feito a partir de cabaças, depois de secas e devidamente tratadas. Com as maiores, os indígenas fabricam óptimos recipientes para água e, sobretudo, para uma bebida que muito apreciamos, obtida a partir da seiva das palmeiras. Recebo frequentemente ofertas destas. Quase todas as semanas me trazem cabaças cheias de malavi, que mando colocar na arca frigorífica.

Como é que se explicam estas ofertas frequentes? Será pelos meus bonitos olhos felinos? Claro que não! Bem sei que sinto da parte dos nativos uma grande amizade e até um certo carinho, mas não deve ser esta a única razão! Sempre que eles me trazem ofertas, lucram alguma coisa com isso. Quando tenho esta bebida, é partilhada por todos. A meio da tarde, depois de bem fresca, transforma-se no pretexto para uns momentos de confraternização. Há sempre qualquer coisa para a acompanhar: umas bolachas, umas latas de conservas, umas fatias de queijo, enfim, aquilo que cada um tem e traz para partilhar. E, como nem poderia deixar de ser, quem oferece a bebida participa também nos momentos de convívio!

Estou para aqui a falar de uma bebida vulgar para nós, mas certamente exótica para vocês aí, que me estão a ler a correspondência. Será que já vos falei anteriormente do malavi? Creio que sim! Mas não tenho a certeza! Na dúvida, o melhor é explicar o que é. E se por acaso me estiver a repetir, a solução é fácil: passem à frente. Não leiam os próximos parágrafos.

O malavi é uma bebida deliciosa, depois de nos habituarmos ao seu exótico sabor. É uma bebida levemente alcoólica e com gás, provocado pela fermentação do açúcar natural existente na seiva. Serve-nos para acompanhar os mais variados petiscos, como já atrás disse. E mesmo que petiscos não haja, não deixa de ser bebida, porque o seu paladar é agradável e tira a sede. Mas, com um bom acompanhamento, sabe tão bem ou melhor do que cerveja. Por exemplo, com ginguba ou com caju, com umas sardinhas de conserva, com pão fresco saído do forno e bem recheado com uns nacos de queijo, com umas bolachas de baunilha, ninguém lhe resiste.

Quando os nativos que nos trazem esta bebida não podem estar presentes no convívio, não ficam sem que lhes retribua o gesto simpático. Eles oferecem-me o malavi, que é para eles uma bebida habitual, diria mesmo corriqueira; eu ofereço-lhes umas cervejas geladas, um cartucho feito com uma folha A4 cheio de sal, uma latas de conservas, aquilo de que disponho e me lembro no momento da oferta. Curiosamente, aquilo que eles mais apreciam, e que para nós é o mais insignificante, é um punhado de sal! Esta pequena oferta é para eles tão importante que, quando me desloco às sanzalas para efectuar os recenseamentos, levo-a sempre comigo. É, entre outras coisas, a oferta mais apreciada que entrego ao soba, a quem sou inicialmente apresentado pelo Joaquim e pelo velhote da Quimabaca, que me acompanha nos recenseamentos às povoações menos distantes. Em troca, além da ajuda na elaboração do recenseamento, levo galinhas e frangos para o destacamento. São-me oferecidos. Não os posso recusar.

Deixemos o malavi e voltemos às cabaças. Nas maiores, com capacidade para uns cinco litros ou mais, é recolhida a seiva directamente dos cortes feitos nos troncos das palmeiras, que os nativos retiram e substituem periodicamente, ao fim de algumas horas ou dias. Com as mais pequenas, fazem-se tigelas muito úteis, por exemplo, para os molhos que irão tornar as fubadas mais gostosas.

De todos os objectos que tenho encontrado, o que mais me agrada, pela grande habilidade que revela e pela elegância das formas, é a cesta ou peneira para a farinha da mandioca.

Como hei de descrever-vos este objecto, que prima pela elegância e leveza?

Peneira encontrada em Angola, na região da Quimabaca, Sector de Uíje, em 1973

Não tenho aqui nenhum exemplar, mas conservo a imagem que me surge na memória e o desenho a esferográfica azul, que elaborei no exemplar do recenseamento de um povo próximo daqui. Esta pequena povoação, constituída por dez homens, dezassete mulheres e vinte e três crianças, pertence à regedoria de Suaicomba. E esta não é mais do que uma vastíssima região plana, entre a Quimabaca e o rio Cuango, cuja extensão deve ser idêntica à do nosso Alentejo e onde abundam várias espécies animais. E como tenho aqui o exemplar do inquérito de recenseamento, não me vai ser difícil efectuar uma descrição que anule o inconveniente da falta da máquina fotográfica, que continua em Luanda, à espera de ser reparada. Deixemo-nos de preâmbulos. Passemos à descrição do objecto.

Com uma altura de cerca de 80 centímetros e uns duzentos gramas de peso, esta elegante peneira é feita com uma fibra entrelaçada, a partir de uma base quadrada com cerca de vinte centímetros de lado. As paredes laterais de fibras, colocadas lado a lado, com pequenos intervalos obtidos com fibras idênticas com que entrelaçam a estrutura, a alturas regulares, constituem um prisma quadrangular, que começa a afunilar a cerca de cinquenta centímetros da base, encurvando-se elegantemente como a cintura de uma mulher jovem, para voltar a alargar na parte superior, em forma de círculo perfeito. É neste topo circular que as mulheres seguram na peneira. Imprimem-lhe um movimento igualmente circular, num vaivém brusco e rápido. A fuba, colocada no interior através do colo da largura de uma mão fechada, é saracoteada para um e outro lado. A força centrífuga originada por este movimento rotativo faz com que a farinha passe por entre os intervalos das hastes verticais de fibra, ficando no interior os pedaços mal triturados da mandioca. E a fuba, a farinha de mandioca, vai-se acumulando nos recipientes circulares de lata, dentro dos quais é colocada a peneira durante o trabalho.

Além dos objectos já referidos, encontram-se com frequência no interior das cubatas grandes garrafões esféricos de vidro branco e esverdeado, com capacidades que devem ser muito superiores aos tradicionais garrafões de vinho de cinco litros.

Outros objectos se encontram nas cubatas, mas mais importante do que eles é a referência a algumas das edificações que aqui tenho encontrado. De todas, a mais importante é a habitação, a cubata em que os nativos dormem. Todavia, não é desta que agora me vou ocupar. Deixo isto para outra ocasião, se ela se proporcionar. Por agora, vou-me limitar a dizer que, relativamente às grandes edificações, encontrei três tipos de cubatas com idêntica estrutura: cubatas para habitação, mais propriamente para dormir, cubatas que servem de cozinha e cubatas para secagem de produtos agrícolas. O sistema de construção é idêntico para todas elas, inclusive para os pequenos pombais disseminados pelas povoações. Os materiais de construção são rigorosamente os mesmos: estacas de pau a pique, fibras entrelaçadas e telhados inclinados cobertos com folhas de palmeira cobertas de capim.

Vejamos pormenorizadamente as duas construções que pretendo, neste momento, dar-vos a conhecer: os pombais e as cubatas de secagem.

Pombal encontrado em 1973 no norte de Angola, sector de Uíje.

Os pombais são pequenas construções de secção rectangular, feitas do mesmo material das cubatas. Apoiados sobre estacas, ficam geralmente a cerca de um metro de altura do solo. Lateralmente, apresentam pequenas ranhuras rectangulares, que permitem a entrada e a saída das aves. Enquanto as moradias humanas apresentam em regra apenas uma entrada, os pombais possuem várias entradas, geralmente duas ou três, com a dimensão suficiente para que os pombos possam entrar e sair sem dificuldade, mantendo-se protegidos do frio e da chuva durante a noite.

Cubata para secagem de ginguba e cereais, na região da Quimabaca, em Agola (Quimbele, Sector de Uíje), em 1973.

O edifício para secagem da ginguba ou dos cereais é uma construção parecida com as cubatas, quer no formato, quer nos materiais de construção. Mas tem a particularidade de apresentar frestas verticais ao longo das paredes e de estar assente sobre estacas, a cerca de cinquenta centímetros do chão. O piso desta cubata de secagem é constituído por esteiras com frestas, aumentando deste modo a ventilação, que se efectua lateralmente e também de baixo para cima, passando o ar através das frestas do chão, das paredes laterais e do telhado. Este é constituído por folhas largas e espalmadas de bananeira que, depois de secas, conferem um aspecto que me faz lembrar os telhados de ardósia, que se encontram em algumas regiões do norte de Portugal, mais precisamente na região de Valongo, no distrito do Porto. 

Página anterior Home Página seguinte