Tarde desportiva e primeiro recenseamento

Vou agora procurar ignorar os diálogos, que me surgem frequentemente quando evoco os momentos passados durante a semana, e procurar ser mais sintético, ainda que isso por vezes me seja um pouco difícil.

Estou neste momento a reflectir sobre se devo dar-vos a conhecer os resultados do meu trabalho nestas remotas paragens ou ignorá-los. Se escolher a primeira hipótese, corro o risco do pai começar a dizer que sou demasiado miudinho e maçador, apesar da mãe lhe começar a dizer que não e a defender-me. Se omito os factos, não só deixarei de ter assunto para estas gostosas conversas como, para piorar a situação, me arrisco a perder para a posteridade as recordações destes sítios e as recolhas etnográficas que os recenseamentos me têm permitido.

Entre duas hipóteses, uma cómoda e de fácil solução, a outra trabalhosa e maçadora para quem lê, mas simultaneamente culturalmente enriquecedora, escolho a que me parece apresentar um balanço positivo, ou seja, opto pela segunda hipótese. Se não gostarem de aumentar a vossa cultura, avancem as folhas e passem às partes dialogadas, seguramente mais agradáveis.

Passemos, então, ao registo, o mais sintético possível e em forma de balanço da minha actividade, dos dados recolhidos e à apresentação de alguns elementos de carácter etnográfico, que tenho aqui comigo, graças aos registos duplicados a químico das folhas dos recenseamentos.

Graças à ajuda do soba e do professor e do pouco pessoal militar que me acompanhou, incluindo o furriel Rodrigues, a tarde de domingo na Quimabaca foi altamente frutuosa. Em pouco tempo, fiz mais do que esperava conseguir.

A primeira pessoa da sanzala a ser recenseada, como nem podia deixar de ser, foi o meu anfitrião local, o soba, o simpático velhote que me tem acompanhado nos recenseamentos às sanzalas mais próximas. Foi prontamente buscar-me à cubata o certificado de residência, passado no ano passado, em 17 de Outubro de 1972, que me forneceu de imediato vários dados acerca dele. De acordo com o registo dactilografado e devidamente autenticado pelo posto administrativo, fiquei a saber que o soba nasceu em Quiembariu, em 8 de Maio de 1918, e que se chama Caxula Bula. O certificado só não indica que o meu anfitrião é uma pessoa comunicativa e simpática. Há todavia nele uma certa discrepância relativamente ao nome, na medida em que, de acordo com o que os meus ouvidos me permitiram inicialmente registar, me pareceu que o verdadeiro nome é Cachela Bula e não Cachula Bula. Este simpático velhote, se é que se pode chamar velhote a uma pessoa apenas com cinquenta e cinco anos, declarou-me ter um amigo da mesma idade, no acampamento de Quicoco, que é o seu grande conselheiro, na resolução das situações mais difíceis da vida da aldeia. Mas deixemos os elementos relativos ao soba, e passemos a outros, relacionados com a Quimabaca.

Ao todo, não contando com as crianças, registámos uma população de trinta e dois homens e trinta quatro mulheres, cuja listagem elaborámos, fazendo corresponder a cada elemento masculino os números de polícia que fomos atribuindo às cubatas. O trabalho de numeração foi entregue a dois soldados e ao condutor do unimogue. Enquanto ia recolhendo os elementos junto das pessoas, os três, em cima da viatura, aproximavam-se da cubata respectiva e pintavam, no lado superior direito das entradas, em letras grandes, bem visíveis à distância, os diferentes números. Por há pouco ter indicado o número de homens e mulheres, excluindo a miudagem, não pensem que deixei ficar por registar a população jovem. Não senhor! Não pensem que iria cometer esta inexactidão no censo da população local. Fiz tudo como deve ser feito. Não omiti absolutamente nada! Para uma melhor avaliação pelas entidades competentes do número de elementos das populações locais, tenho tido o cuidado de ser o mais rigoroso possível em cada povoação. Criei uma pauta em formato A4 com diferentes colunas, onde indico, respectivamente, os números de polícia das cubatas, os nomes dos respectivos habitantes com a idade e a profissão desempenhada, o número de mulheres que cada homem possui, e as respectivas crias, tendo distribuído as crianças por três categorias, de acordo com as idades: com menos de sete anos, entre os sete e os doze, e o escalão etário mais elevado, entre os doze e os dezasseis anos.

Como os homens que possuem mais do que uma mulher as têm instaladas cada uma na sua cubata, atribuí o mesmo número de polícia às cubatas pertencentes ao mesmo homem, mas distinguindo-as por meio de uma letra maiúscula, por exemplo: 28, 28A, 28B, 28C, etc. Olhando agora para as cópias da listagem relativa à Quimabaca, acabo de me lembrar de um facto pitoresco resultante da reflexão que fiz na altura. Notei, em certa altura, que um homem me afirmou possuir quatro mulheres e seis filhos pequenos. Ao olhar para o número das cubatas que lhe pertenciam, fui lendo, em voz alta, 23, 23A, 23B, 23C, 23D e 23E. Fiz mentalmente a soma e apercebi-me que eram seis cubatas e quatro mulheres apenas. Intrigado, perguntei-lhe se estava a pensar arranjar mais duas mulheres e como é que conseguia distribuir-se por todas elas, satisfazendo-as durante a noite.

A minha pergunta, quando o Joaquim a traduziu para aqueles que percebiam mal o português, suscitou uma grande risada de todo o pessoal nativo à minha volta. E acabámos todos em francas gargalhadas. Claro está que a pergunta, além de cómica, nunca deveria ter sido feita, tanto mais que já sabia a resposta. Estou farto de saber que o homem angolano, que vive no interior, no meio da mata, não tem problemas de procriação, mesmo quando a idade é avançada. E vocês aí na metrópole também já sabem porquê. Já devem saber que, nestas paragens, há soluções naturais e eficazes para resolver os problemas das relações sexuais. O homem nativo não tem problemas durante a noite, ainda que a idade vá avançada. Não se recordam do que vos relatei, há tempos, naquela carta em que referi uma planta afrodisíaca que os nativos me ofereceram e que eu, devido à estúpida ignorância, deixei estragar?

Estão a dizer-me que já não se lembram? Pois não pensem que volto a repetir o diálogo que vos transcrevi da minha conversa com o comerciante de Quimbele acerca disto. Se a curiosidade é muita e já não se lembram, folheiem as cartas anteriores. Procurem o relato correspondente aos momentos passados em Quimbele e recordem o episódio. Mal era se me pusesse agora a repetir factos já evocados.

Estou aqui a alongar-me demasiado em considerações e a ser tudo menos sintético. Deve ser também defeito desta nova colecção de esferográficas que trouxe da secretaria da nossa Companhia. A esfera desliza facilmente e as palavras fluem mais abundantemente que as linfas do riacho onde vamos à água e tomamos banho.

Uma vez que me estou a alongar demasiado, não vou dizer-vos que as principais produções agrícolas da região são o café, o tabaco, a ginguba, a punga, o feijão, o milho, o gergelim, a fuba e as frutas variadas, com que aqui me delicio, como as bananas, os ananases, as laranjas, os maracujás, os abacates, as mangas, o dendém e os mamões, para não vos maçar com intermináveis enumerações. Pela mesma razão, também não vos digo que a fauna local é constituída por gibóias, jacarés, gazelas, javalis e pacaças, entre outra bicharada, e grande variedade de espécies vegetais. Vou também omitir a fauna doméstica mais abundante nas sanzalas, constituída por galinhas, cabras, porcos, patos, pombas, gatos e cães, tudo em perfeita harmonia, entre outra bicharada que coabita pacificamente com o bicho-homem.

Seguindo o mesmo princípio do parágrafo anterior, vou omitir a maior parte dos factos relativos à população. Assim, não vos direi que o primeiro soba da Quimabaca, que se chamava Majnga e era irmão do actual, foi morto em 1961, por altura de uma fase de maior terrorismo, em virtude de não ter querido aceitar na região a seita quibangista e ter denunciado os seus elementos na Administração, tendo sido provavelmente assassinado pelos familiares dos que foram presos.

Vou por agora omitir os dados obtidos nos recenseamentos efectuados na segunda e na quarta-feira, para não vos maçar com isto, mas não vou deixar de vos fornecer alguns dos elementos de carácter etnográfico que considero interessantes, tais como os objectos de uso doméstico e alguns dados relativos à habitação, baseando-me nos poucos desenhos que elaborei. Um dia, mais tarde, quando a máquina estiver reparada, completarei os elementos recolhidos com fotografias pormenorizadas. 

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