Manhã de Domingo

— Alferes, acorde. Daqui a pouco são horas do pequeno-almoço.

— O que é que aconteceu, Rodrigues?

—Nada. Não aconteceu nada. O alferes não disse, ontem, depois da ronda, que ia tomar um sedativo para o ajudar a adormecer e a aliviar a dor do joelho? Não me disse para o acordar se ficasse a dormir mais do que o normal?

— É verdade! Só que estava bem ferrado no sono. E acordou-me na pior altura.

— Então porquê?

— Não sei se deva dizer na melhor ou na pior altura...

— Não o estou a perceber...

— É que estava tão bem acompanhado com uma miúda... E agora fico sem saber como o sonho ia acabar.

— Ah! Agora percebo por que razão o alferes estava com uma cara de felicidade... Estava agarrado a uma miúda, certamente no melhor da festa...

— Infelizmente, não cheguei ao fim. O Rodrigues não podia ter escolhido a pior altura... Estava a sonhar com a miúda que foi a minha primeira paixoneta, ainda em miúdo, durante vários anos, e que deixei de ver quando o meu avô morreu, tinha eu dez anos, e se me acabaram de vez as deliciosas férias grandes em Celorico da Beira.

— Temos de conversar sobre isso, alferes. Despertou-me a vontade de o confessar e de lhe ouvir as aventuras da juventude. E o seu joelho? Continua inchado?

— Parece que não. Pelo menos não me dói. O bálsamo militar com que o enfermeiro me esfregou o joelho parece que deu resultado. Mas deixemos o joelho em paz. Está tudo normal? O Joaquim já serviu o pequeno-almoço aos graduados?

— É daqui a pouco. O Ramalho anda a tratar do que é preciso. Diz que vai com o pessoal à água e pergunta se o alferes também quer ir com a malta.

— Aproveito a boleia. Levo as coisas da barba e tomo um banho no rio. Não me deve fazer mal logo em cima do pequeno-almoço...

— E como é que vamos passar o nosso primeiro domingo na Quimabaca, alferes?

— Depois do almoço, a meio da tarde, podemos fazer um desafio de futebol entre a juventude local e os nossos soldados. E, antes disso, logo a seguir ao almoço, podemos iniciar a nossa missão com o recenseamento da Quimabaca.

— A seguir ao almoço temos a bica, alferes.

— Claro que sim. Não me interrompa. Começamos pela casa onde estamos. Pedimos a ajuda do soba. É uma boa maneira do Rodrigues ver como faço, para aprender a preencher os recenseamentos. Teremos de ser auxiliados por dois ou três soldados. É preciso começar por numerar ordenadamente todas as cubatas com um número em tamanho que se veja perfeitamente à distância. Vai ver que é trabalho fácil e interessante. Será uma boa maneira de ocuparmos parte da tarde.

— Temos de falar com o pessoal de engenharia, alferes. Devem querer participar no jogo. É uma boa maneira de confraternizarmos todos com os nativos...

— Sem dúvida que sim, Rodrigues.

Tomado o pequeno-almoço e distribuída uma medida de café com leite a cada um dos miúdos que faziam bicha junto à nossa cozinha, chegou a altura de irmos à agua.

— Qual é a viatura que vai, alferes?

— Qual lhe parece melhor, Ramalho?

— Não sei! Quem manda é o alferes. É quem tem de decidir. Mas creio que o unimogue... É só tirar-lhe o banco de trás.

— A berliet é mais segura, Ramalho. Dá menos trabalho e tem maior capacidade. Os miúdos vão gostar de ir connosco à água.

— Vai levar os miúdos?! E se há problemas, alferes?

— Que problemas há de haver daqui até à linha de água? Nunca foi miúdo? Nunca gostou de andar pendurado atrás nas viaturas? Atam-se os bidões com cordas, para não caírem, e eles vão atrás com os soldados. É uma boa maneira de lhes proporcionarmos uma manhã diferente. Além disso, ajudam-nos a encher os bidões e tomam banho connosco no rio.

— O alferes é que sabe.

Depois de uns bons momentos de descontracção na linha de água e dos bidões descarregados na zona da cozinha, tive a visita do soba. Bebemos umas cervejas e aproveitei para lhe falar dos planos para a parte da tarde.

Antes do início do trabalho de recenseamento da sanzala onde estamos instalados, voltei a ser visitado pelo soba. Veio oferecer-me um frango, que tive de aceitar. Veio dizer-me que a equipa local estava disposta a jogar com a tropa. E veio comunicar-me que as pessoas da sanzala gostavam de ter a companhia da tropa, que agradeciam por partilharmos com eles a nossa comida. Com ele, veio também o professor primário, que acrescentou que a equipa estava já à espera para iniciar o jogo.

— O quê?! Querem começar já o jogo, logo a seguir ao almoço? Ainda nem o café tomámos...

Que sim, que o pessoal ficara entusiasmado com a ideia de uma tarde desportiva e achavam boas as ideias do alferes...

— Está certo! Fica o recenseamento para depois. Mas, antes disso, temos de tomar o nosso cafezinho. Almoço sem café não é almoço decente. E já que aqui estão, tomam também um café.

— Meu alferis, faço café também para os jogadores? — perguntou-me o Joaquim com ar aflito.

— Não é «alferis», Joaquim. Falas bem o português, mas trocas sempre a mesma palavra. Já te disse, há tempos, que é alferes e não «alferis». Está descansado. Não tens de fazer café para toda a gente. Com uma máquina tão pequena, amanhã ainda aqui estávamos à espera. Fazes para todos os graduados e para as nossas visitas: o soba e o professor. E claro, para ti também... Mas isso já sabes... Nem era preciso dizer. Tu é que trabalhas com a máquina e não costumas desperdiçar o que sobra.

Antes do início do jogo, dei as minhas instruções ao furriel:

— Ramalho, mande colocar duas ou três grades de cervejas num bidão cheio de água. Sempre ficam mais frescas e, no final do jogo, distribua-as pelos jogadores.

— E quem é que paga? O alferes?

— Não se preocupe com isso. Faça o que lhe digo, que o pagamento não é obstáculo. Se houver problemas, o prejuízo não será seu.

O jogo esteve animado. Devido ao calor, foi reduzido para cerca de uma hora. A equipa militar ganhou por duas bolas a uma. No final, foi distribuído o prémio a todos os jogadores, no meio de animada conversa, que se deverá ter mantido por algum tempo após a minha saída do grupo. As tardes passam depressa. O recenseamento não podia ficar adiado. Esperei que o soba e o professor acabassem de beber as cervejas e disse-lhes que tínhamos de iniciar o recenseamento e que contava com a ajuda deles.

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