Manhã em Quimbele |
Às seis e meia da manhã estávamos na picada. Entrámos em Quimbele por volta das nove horas, após uma viagem sem problemas com a viatura e o tempo. Demorámos um pouco mais que o previsto, porque a picada era para nós novidade e apresenta troços em que os nossos olhos se podem espraiar, de uma posição elevada, por extensos mares de vegetação, que se perdem na distância. Chegámos mesmo a parar em alguns sítios, para podermos desfrutar de um magnífico panorama, diferente do que estavámos já habituados na picada entre Quimbele e o Alta Zaza. Nos momentos de prazer perante o magnífico e assombroso espectáculo proporcionado pela natureza, senti simultaneamente uma sensação de pequenez e tristeza, por me faltarem os meios para captar um panorama tão grandioso, impedindo-me, mais tarde, de recordar esta zona do norte de Angola. Em frente à messe de oficiais, saltei da viatura e dei as instruções ao grupo: — Aproveitem bem a manhã em Quimbele. Regressamos a seguir ao almoço, por volta das duas horas. O Rodrigues espera por mim no Briosa Bar. Vou procurar ser breve com o capitão. Encontramo-nos no café e depois damos uma volta para compras. — Está certo, alferes. Vou também largar as minhas coisas na messe e espero pelo alferes. Vou bebendo um fino e apreciando as miúdas. — Ah, sim! Há de apreciar muitas! Só se for de cor de chocolate... — São miúdas à mesma, alferes. — Vão lá, então. E tenham juízo. Não arranjem problemas. Até logo. Antes de ir ao edifício do comando falar com o capitão, aproveitei para tomar um rápido chuveiro e mudar de roupa. Soube pelo impedido que o capitão tinha saído cedo. Deveria estar já no gabinete dele. Entrei no edifício de comando e passei pela secretaria, para cumprimentar o sargento. Deu-me uma notícia, que achei demasiado boa: — O alferes Ulisses está com sorte. — Com sorte porquê? — Parece que vamos ser aumentados quinze por cento. — Quinze por cento?! Não acha que é demasiado para ser verdade? — É a informação que tenho, alferes. — Acho fartura a mais! Só acredito quando vir o dinheiro nas mãos. Às tantas, aumentam-nos o vencimento e tiram-nos o décimo terceiro mês. — Não fazem isso, alferes. O décimo terceiro mês é uma regalia adquirida. Já não a podem tirar. Deram-na, está dada. — Nunca se sabe. Neste país tudo é possível. Tão possível que, em miúdo, até tínhamos uma frase pitoresca para dizer uns aos outros: «Quem dá e torna a tirar, ao Inferno vai parar!» Espero que os nossos governantes também tenham conhecido isto, em miúdos... — Esteja descansado que isso já está seguro. O décimo terceiro mês já ninguém o tira. E o que o traz por cá, alferes? — Venho falar com o nosso capitão. Estou metido numa acção trabalhosa e morosa. Não me dão tempo quase nenhum. Venho pôr os pontos nos is ao capitão. Preciso de saber como é que me vou desenvencilhar. Até já. Gostei de falar consigo. — Igualmente, alferes Ulisses. Dirigi-me para o gabinete do capitão. Bati à porta e pedi licença para entrar. — Tu aqui?! Fazia-te agora na Quimabaca, a apreciar as miúdas da sanzala. — Tive de vir cá abaixo, porque preciso de material. Preciso de latas de tinta branca e pincéis. E preciso de falar consigo. — Para que é que queres as latas de tinta e os pincéis? Vais-te dedicar à pintura? — Não posso fazer um recenseamento sem isto. As cubatas têm de ser todas numeradas, segundo uma ordenação lógica, com número de polícia... — Queres organizar um serviço postal de distribuição de cartas ao domicílio... — Não é possível efectuar um recenseamento eficaz sem a numeração das cubatas. E tenho outro problema. Olhe aqui para a papelada que me mandou. Veja o que está escrito no plano de acção. Peguei no plano e coloquei-o em cima da secretária, bem debaixo dos olhos do capitão. Coloquei o dedo sobre a coluna com a data do início da acção e prossegui: — Veja bem a data da primeira acção com o número seis. Deveria ter começado no dia em que fomos para a Quimabaca. Só posso começar o recenseamento e levantamento dos dados pedidos a partir de segunda feira, depois de tudo em ordem. E conte o número total de dias e de sanzalas. Para se efectuar um levantamento etnográfico com pés e cabeça, de acordo com a minha experiência antiga, precisávamos de vários dias em cada povoação, para ganharmos a confiança das pessoas e podermos recolher todos os elementos pedidos. Já viu a quantidade de aspectos pedidos no modelo dactilografado que me mandou? Até os feiticeiros nos pedem para indicarmos. Onde é que eles nos vão dar estas informações? Só ganhando a total confiança deles. — Isso é despachar de qualquer maneira, Ulisses. Vê lá se queres aqui fazer algum trabalho de investigação... Contas as cubatas e o número de habitantes e despachas de qualquer maneira. — Não é bem assim, capitão. Se nos mandam fazer um trabalho destes, que eu até considero interessante e de grande importância cultural, devemos procurar ser rigorosos e o mais completos possível. — Nada disso! Ninguém te paga para isso. É despachares. Se quiserem mais elementos, que os venham cá eles recolher. Se querem ter elementos e conhecer os costumes para escreverem livros, quem quiser que os venha cá recolher. Queres ser o criado dos outros? — Não é uma questão de sermos ou não criados. É uma questão de rigor. E quem estuda a etnografia não consegue uma recolha completa só com o seu trabalho. Também já fiz um trabalho deste género e fiquei a dever muito às pessoas desconhecidas, que fizeram o favor de responder aos inquéritos que lhes enviei. Temos de ser uns para os outros. — Deixa-te de tretas. Não estás em Portugal. Estás aqui para cumprir um serviço militar obrigado e já nos chega! Tens apenas o tempo que está no plano. Nada mais! — Se o capitão não me dá mais tempo, também não vou poder fazer coisas impossíveis. Mas, mesmo assim, garanto-lhe que vou procurar obter o máximo e duplicar os elementos, para os levar comigo para a metrópole. — Faz como quiseres, desde que não ultrapasses o tempo indicado. Mais alguma coisa? — Preciso da requisição para as latas e pincéis. E bastantes folhas brancas, para elaborar os inquéritos, porque só me forneceram quatro exemplares policopiados. Ah, é verdade, e uma caixa de esferográficas pretas ou azuis e vermelhas e papel quadriculado. Começo a ficar sem material de escritório. — Passa pela secretaria. Requisita tudo o que precisas. Antes de comprares as latas de tinta, passa pela arrecadação. Talvez lá encontres algumas. Mais alguma coisa? — De momento, não tenho mais nada. Se me surgir, ainda nos vemos à hora do almoço. A propósito, não viu o médico? — A esta hora deve estar no hospital. Porquê? — Preciso de lhe pedir alguns esclarecimentos acerca do paludismo. — Tens alguém doente? — Não. É para responder a uma pergunta que me fizeram. Até logo. Vou aproveitar para saber da minha máquina. — Até logo. Voltei a passar pela secretaria, para levantar o material, e saí do edifício. Desci a ampla avenida e só parei no café. Encontrei o furriel na esplanada, na conversa com alguns soldados e civis. — Passei já pela loja, alferes. Anda com azar. A sua máquina ainda não está arranjada. — O comerciante não lhe disse quando esperava recebê-la, Rodrigues? — Não, alferes. Mas vi lá na montra do balcão um gravador novo de cassetes da marca Hitachi. — Da marca Hitachi? — Sim. Um gravador pequeno, portátil, mas que parece robusto. — Essa marca é boa. Foi com um gravador dessa marca que, em sessenta e nove, fiz os meus inquéritos em várias regiões do norte de Portugal. Tem um som impecável, muito nítido, apesar de ser monofónico. Qual é o modelo? — O modelo não lhe sei dizer. — Às tantas é capaz de ser igual ao meu, que deixei na metrópole. — O que acha, alferes? Compro-o? Dava jeito para ouvirmos boa música gravada, sem os ruídos do rádio... — Não há nada como passarmos por lá. Vamos lá vê-lo e experimentá-lo. O Rodrigues trouxe dinheiro? — Tenho a carteira cheia. Quase não temos onde gastar o que recebemos... — Mesmo que não tivesse dinheiro, não havia problema. Emprestava-lho eu. Quer mesmo lá ir? — Vamos lá, alferes.
|