Latas e pincéis

Estudada a localização das sentinelas, decidi reunir-me, ainda antes do jantar, com o furriel Rodrigues, depois de ter mandado instalar a mesa e as cadeiras no local onde agora me encontro a escrever-vos. Retirei da pasta o plano secreto da «BTT em Quimabaca» e o exemplo de processo de aldeia a elaborar. Coloquei-os sobre a mesa.

— Rodrigues, temos aqui o plano de actividades para todo o mês e um exemplo do processo. Veja a data do início, o tempo para cada acção e a quantidade de povoações que temos de fazer. Folheie o exemplar do processo.

Depois de uns minutos a folhear e a observar as folhas:

— Alferes, vai ser muito difícil ou até impossível cumprir este plano de acção.

— Sem dúvida que sim. Era isso que eu esperava ouvir de si, para confirmar as minhas ideias. Só para o preenchimento do processo de cada sanzala, precisaríamos de um ou dois dias completos, permanecendo na própria povoação. Ao todo, dão-nos vinte dias para dezassete sanzalas. E, para começarmos a acção, já deveríamos ter vindo no início da semana. Isto é impossível de cumprir.

— O que é que o alferes pensa fazer?

— Para já, vamos amanhã de madrugada a Quimbele. Vamos pôr o problema ao capitão. Eles não têm a mínima ideia do que seja fazer um recenseamento e uma recolha etnográfica. Se calhar, pensam que é como ir a um supermercado... Vêem-se os produtos e metem-se no cesto! Isto é um disparate! Teríamos de ter o dobro do tempo, com tudo a correr bem, sem as avarias frequentes das viaturas. Vamos ter de ocupar o dia a obter os elementos, em equipa, e, à noite, esperam-nos longos serões.

— Longos serões, alferes? Como?

— Vamos ter de recolher os dados durante o dia e, à noite, elaborar os relatórios, preenchendo com cuidado os modelos do inquérito. Para cúmulo, só possuímos quatro exemplares policopiados. Os restantes, vamos ter de os passar em folhas brancas. Vão com as questões e respostas manuscritas. Na sede da Companhia ou do Batalhão, se quiserem, que os mandem passar à máquina de escrever.

— Mas eu nunca fiz inquéritos destes, alferes. Não percebo nada disto!

— Não custa nada! Vamos ter de estabelecer uma estratégia. Em vez de seguirmos a ordem do plano, começamos pelas sanzalas maiores. Trabalhamos em equipa. Vai ver que aprende depressa. As mais pequenas ficam para o fim. Quando chegarmos à vez delas, passamos a revezar-nos. Alternamos os dias. Enquanto um vai fazer os inquéritos, o outro fica no destacamento. Descansa e passa a limpo os dados recolhidos. Ah, é verdade, não nos podemos esquecer de requisitar umas latas de tinta branca e pincéis.

— Latas e pincéis para quê, alferes? Vamos ser pintores?

— Quase! Vamos ser pintores de tabuletas.

— Pintores de tabuletas? Que tabuletas?

— Não se assuste. As latas e os pincéis vão ser para numerarmos as cubatas. Vamos numerá-las, como se faz na nossa terra. Como é que o correio sabe onde fica a nossa casa? Pelo nome da rua e número da porta. Vamos ter de numerar ordenadamente todas as cubatas, para nos facilitar o trabalho. Sem isso, corremos o risco de repetir o trabalho e perdemos tempo.

— Está bem pensado! Nunca me passaria tal coisa pela cabeça. As ideias do alferes parecem-me uma boa estratégia. Mas como é que o alferes sabe quais as sanzalas maiores e as menores?

— Temos o Joaquim e o soba... E o professor. Pedimos-lhes ajuda. Não vai ser difícil.

— Claro. Não estava a pensar neles.

— E digo-lhe mais: vamos fazer os inquéritos sem nunca nos perdermos. Vamos ser sempre bem recebidos.

— Como, alferes?

— Levamos o velhote. Tenciono convidá-lo a ir connosco às sanzalas mais próximas.

— Ele não aguenta os balanços da picada, alferes. Ainda cai do banco e arranja-nos problemas.

— Não cai nada! Acha que alguma vez punha um velhote atrás? Vai no meu lugar, ao lado do condutor. Vou eu para trás. Vou com o Joaquim ao meu lado, para me ajudar nas conversas.

— Está bem pensado, alferes. No meio disto tudo, só há uma pessoa que vai ficar a perder.

— Quem, Rodrigues?

— O alferes.

— Eu?! Como é que vou ficar a perder? Não estou a perceber.

— Não lhe vai sobrar muito tempo para relatórios familiares.

— Não vai sobrar?!

— Claro que não! Se de dia temos que fazer os inquéritos e à noite passá-los a limpo, não lhe vai sobrar tempo nenhum para a família.

— Ah! Tem razão! Não estava a pensar nisso! Não há de ser nada. Em primeiro lugar, as obrigações... Cá me hei de arranjar. Mas o que acha do meu plano?

— Parece-me bom, alferes. Amanhã, saímos a que horas para Quimbele?

— Estou a ver que o Rodrigues também quer ir a Quimbele...

— Claro, alferes! Temos que aproveitar tudo para ir à civilização.

— Daqui a Quimbele é rápido. Temos a picada directa entre a regedoria de Marimba e a vila. Não conhecemos o caminho. Mas, segundo o mapa, a distância não é muita. Uma ou duas horas de viagem, talvez. Saímos daqui ao amanhecer.

— Às seis da manhã, alferes?

— Sim. Parece-me boa hora. Fazemos toda a viagem pela fresca e ficamos com a manhã para estar em Quimbele. Enquanto falo com o capitão, o Rodrigues aproveita para descansar e fazer compras. E eu também para ir ver se já tenho a máquina arranjada.

— E o que fazemos depois do jantar, alferes?

— Nada! Isto é, o Rodrigues vai escolher uma secção para ir amanhã connosco. Depois, aproveitamos para dar uma volta pela sanzala e, a seguir, poderemos fazer um serão de póquer, se acharem bem. Espero que o soba venha ter connosco, à hora do jantar. Aproveito para falar com ele e convidá-lo para sair connosco. Pode ser que também queira ir a Quimbele.

— Levamos o quê, alferes? A berliet ou o unimogue?

— Depende do número de pessoas e do Ramalho. Tem de lhe perguntar se é preciso trazer alguma coisa da cantina. Onde é que ele está, Rodrigues?

— Deve andar pela sanzala ou, então, a ver do jantar. Onde é que comemos, alferes? No refeitório com os soldados?

— Que disparate, Rodrigues! Se fizéssemos isso, arriscávamos a ter algum processo disciplinar. Esta mesa é grande. Somos quatro, contando com o alferes de engenharia. Cabemos aqui todos. Só é preciso arranjar onde um se sentar, porque só nos emprestaram três cadeiras. Não contaram com o outro alferes.

— O alferes está enganado.

— Enganado? Como?! Não estou a ver!

— Não somos quatro.

— Como é que não somos quatro?

— O alferes está-se a esquecer dos furriéis do grupo de engenharia. Ao todo, somos seis.

— Tem razão. Tem toda a razão. Está certíssimo! Não me lembrei dos dois moços... Esqueci-me completamente deles! E, se calhar, fiz mal em ter dito ao alferes para ficar aqui na nossa tenda. Os dois moços podem sentir-se discriminados...

— O quê, alferes... Descriminados?

— Discriminados, isto é, separados. Podem pensar que os estou a pôr à margem...

— É dizer-lhes para ficarem aqui connosco, alferes.

— Onde? Isso é impossível. A tenda não é nenhum salão.

— Tem esta zona central, ainda com bastante espaço.

— Não posso eliminar esta zona. Onde é que recebo as pessoas que vêm conhecer o alferes? E onde é que trabalhamos? Ficamos sem este espaço para as refeições... e para planificarmos as actividades e acabarmos de preencher os inquéritos. Não podemos eliminar a área de trabalho. Isto aqui é como o gabinete de trabalho, que tinha no Alto Zaza.

— Alferes, ponha o problema ao alferes... Ele vai compreender e passa para a tenda deles.

— Por outro lado, Rodrigues, é vantajoso termos aqui o alferes de engenharia na nossa tenda...

— Porquê, alferes? Por causa da companhia dele?

— Não... Bem, também isso! Mas não é isso, Rodrigues. Com ele aqui, mais facilmente podemos acompanhar as actividades deles. À noite sempre se trocam ideias. É mais fácil planificar a distribuição das tarefas. E eles também não vão cá ficar muito tempo. Não vão cá estar connosco o mês inteiro... Os quatro ou cinco primeiros dias da próxima semana... Penso eu!

— E agora para o jantar, alferes? Onde é que os instalamos?

— Vamos pedir ao soba. Vamos ver se ele nos arranja uma mesa pequena e mais três cadeiras. Põe-se ao lado desta. É por quatro ou cinco dias. E só ao jantar. De dia, almoçam no local onde estiverem a reparar a picada. Têm as actividades deles... Penso que não vão perder tempo a ir e vir para aqui, por causa do almoço. Têm o trabalho deles e devem querer despachá-lo o mais depressa possível... Têm o trabalho deles... e nós o nosso!

— Deixe por minha conta, alferes. Vou resolver a situação. Ao jantar, temos lugar para todos. E depois conversa-se com eles. Tudo se há-de resolver.

 

 

Tal como previra, à hora do jantar, tivemos a companhia do soba. Com a ajuda do Joaquim, tive com ele uma longa conversa. Expliquei-lhe que, todos os dias, depois das nossas refeições, os miúdos da sanzala devem vir à zona do refeitório e cozinha e trazer recipientes para comida. Expliquei-lhe que, de manhã, ao pequeno-almoço, a pequenada passa a ter uma dose de leite, pelo que devem trazer vasilhas adequadas. Ao almoço e jantar, depois de distribuídas as refeições aos militares, os miúdos devem trazer um tacho ou uma panela, para levarem comida para as cubatas. E acrescentei que, todas as manhãs, antes de sairmos para o recenseamento, a população da sanzala e dos arredores passa a ter assistência médica. Devem formar bicha em frente à tenda que serve de enfermaria. Podem contar com a ajuda do enfermeiro e a minha, se for preciso.

Prestando assistência médica aos nativos da Quimabaca, em 20 de Março de 1973.

Em relação ao convite para ir a Quimbele, o soba recusou a minha oferta, dizendo que era muito longe para ele...

— E não quer, a partir do próximo domingo ou segunda feira, sair connosco para visitar as sanzalas mais próximas? A distância é curta e pode visitar as pessoas e os sobas das redondezas. Almoça da nossa ração. Vai no lugar do alferes...

O Joaquim ajudou-me e apercebi-me imediatamente do ar feliz do velhote. Ir visitar as sanzalas mais próximas... Ir na viatura do alferes e, ainda por cima, no lugar dele, partilhando a comida que ele leva... Era uma proposta irrecusável! De modo que, nas próximas deslocações, terei de contar com a companhia agradável deste vetusto e simpático passageiro.

Depois do jantar, verifiquei a distribuição das sentinelas, dei uma volta pela sanzala, na companhia do outro alferes, conversei com vários nativos, acocorados junto à fogueira, à entrada da cubata, e recolhi-me, cerca das vinte e uma e trinta, ao aconchego da tenda. Passámos um serão agradável a jogar ao póquer a pares: os alferes contra os furriéis. Antes de recolher aos lençóis e apagarmos o petromax, peguei na lanterna eléctrica e fiz a minha primeira ronda na Quimabaca, na companhia do alferes e de um furriel.

 

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