Campismo

Como já vos disse, estamos instalados em várias tendas de campanha, com o formato de pirâmides quadrangulares com quatro metros de lado, tendo ao centro um mastro de madeira, que suporta o tecto de lona, com quatro aberturas de respiração junto ao vértice superior, uma de cada lado. As abas laterais, com cerca de um metro de altura, são fixadas ao chão por meio de espias metálicas. Durante o dia, encontram-se levantadas, para permitir uma fácil circulação do ar; à noite, ou quando chove, são descidas e presas ao solo, junto da pequena vala lateral, cavada junto à base e em todo o perímetro, o que permite o escoamento da água, impedindo-lhe a entrada na área coberta.

Tenho pena de continuar sem a máquina fotográfica. Seria interessante fotografar o acampamento e mandar-vos as fotografias. Como a máquina continua em reparação, terão de contentar-se com as minhas descrições.

Na minha tenda estão os furriéis e também o Joaquim. Tenho ainda, durante algum tempo, a companhia do alferes de engenharia, cuja cama está próxima da minha. A área da minha tenda está dividida por sectores: alferes, furriéis, mesa de trabalho e canto do Joaquim. Pela primeira vez, o Joaquim ficou connosco, na mesma tenda dos graduados. No Alto Zaza, vai dormir à sanzala e regressa ao destacamento ao alvorecer. Aqui, como o considero o meu braço direito e um companheiro e amigo, contrariei os furriéis, que o queriam mandar para a tenda dos soldados, e arranjei-lhe um canto onde ficar. É o responsável pela limpeza da tenda. Logo pela manhã, com a ajuda das pequenitas da sanzala, que nos acordam à espera do leite do pequeno-almoço, faz as camas e varre o pó acumulado sobre as esteiras. Quando tiver de sair, irá comigo para todo o lado. Será o meu intérprete.

Acampamento na Quimabaca, no nordeste de Angola (sector de Uíge), em 14 de Março de 1973.

Não pensem que estamos pior que no Alto Zaza. Pelo contrário! Estamos instalados com todas as comodidades. É como se estivéssemos a fazer campismo. E podem crer que o facto de termos acampado no meio da sanzala já me fez evocar outros tempos. Curiosamente, estou agora a lembrar-me vagamente do sonho da primeira noite na Quimabaca. Estão a regressar-me à memória as mesmas imagens do sonho. Vi-me recuar no tempo. Voltei aos meus anos passados em Espinho. Andava no Liceu e estava em período de férias, a trabalhar como intérprete no parque de campismo, ao lado do jardim, em frente à nossa casa. Estava também acampado, não com os meus soldados, mas com um grupo de franceses, com quem tinha ido às caves do vinho do Porto. Como depois da visita fui levantar a minha comissão, estávamos numa patuscada, bebendo o vinho das amostras e comendo marisco, que comprei com o dinheiro recebido.

É verdade! Estou a recordar-me desses bons tempos de miúdo! Recebia como pagamento do trabalho de intérprete a correcção dos erros cometidos. Por isso, quando entravam campistas e lhes preenchia a ficha de registo, tinha a preocupação de ver qual a profissão. Quando encontrava médicos, professores, ou grupos cujo nível cultural me agradava, oferecia-me para os acompanhar como intérprete. Punha-lhes imediatamente as cartas na mesa. Enquanto andasse com eles, exigia-lhes como pagamento não dinheiro, mas que me corrigissem os erros cometidos. E acrescentava-lhes que, enquanto andassem comigo, economizariam tempo e dinheiro, porque conhecia bem todo o norte de Portugal e impedia que pudessem ser enganados. Achavam graça terem um miúdo como intérprete, a quem corrigiam os erros e, sobretudo, ficavam espantados por um miúdo de doze anos falar bem o francês. Arranjava deste modo amigos, com quem me correspondia durante o ano, acontecendo muitas vezes que regressavam no ano seguinte, para terem a minha companhia. Tinha entrada livre em diferentes caves do vinho do Porto. Era o guia e explicava-lhes pormenorizadamente todas as etapas da produção deste vinho, desde a chegada às caves até à saída para comercialização. Indicava-lhes qual o melhor para adquirirem. No final da visita, antes de sairmos, pedia-lhes para esperarem uns minutos. Ia levantar os vinte por cento da comissão. Chegava a fazer, frequentemente, em cada manhã, dois a três mil escudos, dinheiro que era gasto na companhia deles. Foi, em suma, um sonho agradável. Fez-me recordar bons momentos passados.

Voltemos à realidade e ao assunto que estava a abordar. Como dizia há pouco, estamos instalados com todas as comodidades. É como se estivéssemos a fazer campismo pelo norte de Angola. Até a minha cama é excelente, melhor que a do Alto Zaza. Descobri na arrecadação umas camas de madeira, que ninguém quis trazer, por darem trabalho a carregar. A grande maioria preferiu trazer colchões pneumáticos, que esvaziam e podem levar facilmente para qualquer lado. Contrariei a tendência comodista e mandei carregar na Berliet quatro destas camas desmontáveis, para a tenda dos graduados. A zona central é constituída por várias réguas flexíveis, de uma madeira fina e diferente, colocadas a dez centímetros umas das outras. Moldam-se ao peso do corpo e dão a sensação de estarmos em colchões de molas. Por isso, a primeira noite foi uma maravilha. Até o sonho foi agradável, tirando-me daqui para lugares remotos no espaço e no tempo.

Pode a mãe estar perfeitamente tranquila, que o seu filho só poderia estar melhor se estivesse aí, junto de vós!

Deixemos os pormenores relativos às instalações e passemos ao relato dos factos mais importantes, retomando o fio dos acontecimentos, na altura em que ficámos na carta anterior.

 

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