A Quimabaca

Quimabaca, 3 de Março de 1973

 

 

Devem ter ficado surpreendidos com o final da carta anterior. Nem uma palavra de despedida para os «velhotes»?! Serão necessárias as fórmulas habituais de despedida, no final das cartas? Não terá sido bem mais importante terem acompanhado, através da magia das palavras escritas, as minhas vivências de ontem?

Porquê uma interrupção brusca, quando ainda havia tanto para dizer? Será que me esqueci das perguntas da mãe? Ter-se-á secado momentaneamente o caudal das ideias?

Nada disto! Esgotou-se-me o tempo de pausa para estar convosco. As obrigações não podem ficar esquecidas. O meu pessoal queria que eu visse o excelente trabalho desenvolvido no resto da tarde. Precisam não só da orientação dos superiores, mas, sobretudo, dos nossos elogios perante o trabalho feito, que são os melhores estímulos para que a vontade de trabalhar não esmoreça. E fizeram, sem dúvida, um excelente trabalho!

Quando fui obrigado a interromper a escrita, estava o pessoal a chegar com a água e a lenha para a cozinha. Mesmo que quisesse continuar agarrado à caneta, era impossível. O ruído das viaturas, as conversas do pessoal e a algaraviada incompreensível mas excitada dos miúdos não me deixavam concentrar.

Com a ajuda da juventude local, a descarga da lenha fez-se num instante. Em breve, estava a arder no fogão improvisado e o jantar a ser confeccionado. Além disto, ainda antes de escurecer, tinha a planificação das actividades, as escalas de serviço e as ordens a dar aos furriéis. São importantes os momentos de convívio convosco; mas mais importante é não descurar as minhas obrigações. Como diz às vezes um dos furriéis, é preciso pôr tudo nos trilhos!

 

Acabo de reler as cópias a químico dos últimos aerogramas, que deixei hoje de manhã em Quimbele. Já vão certamente a caminho daí. São agora vinte horas. Tenho a mesa colocada num local excelente, numa zona abundantemente banhada pela luz clara do petromax, com uma potência equivalente a trezentas e cinquenta velas. Um candeeiro destes, no centro da tenda quadrada, ilumina todo o vasto espaço habitável, com dezasseis metros quadrados de superfície. A zona mais abundantemente iluminada corresponde ao meu «gabinete de trabalho». É aqui que tenho a mesa e as três cadeiras em volta, uma para mim, as outras duas para os meus furriéis, quando tenho de lhes transmitir as ordens, ou para as visitas ao alferes.

Combinei com o furriel Rodrigues efectuar a primeira ronda à uma da manhã. Logo, tenho cinco horas disponíveis para conversar convosco, se não surgirem situações imprevistas. Como os furriéis andam entretidos, lá fora, a conversar com o furriel de engenharia, ou talvez a deambular pela sanzala, tenho uns momentos de recolhimento, que não devem ser interrompidos. Os meus furriéis sabem já das longas horas de prazer do alferes, quando está, como agora, agarrado à caneta e aos aerogramas. Como eles também não gostam de ser interrompidos, enquanto escrevem às miúdas ou aos familiares, procuram respeitar o mais possível o meu recolhimento. Só me interrompem quando surgem situações imprevistas ou têm necessidade urgente de fazer alguma pergunta ao alferes.

Quando ontem me interromperam a escrita, estava o pessoal ainda ocupado a construir o refeitório e a dar os últimos retoques no acampamento. Inspeccionei o trabalho na companhia do outro alferes e dos furriéis, não só para darmos algumas sugestões, mas sobretudo para estudarmos melhor a área envolvente e procurarmos os locais mais convenientes para disposição das sentinelas, durante a noite. De dia, o problema da segurança quase não se põe, graças às condições do local.

Acampamento militar na sanzala da Quimabaca, no nordeste de Angola (sector de Uíge) em 19 de Março de 1973.

A Quimabaca fica num planalto, desviado alguns metros da picada para o Cuango. Temos horizontes relativamente amplos. Toda a zona da povoação está limpa de vegetação, que só começa na base da colina. A norte e a oeste, ficam as lavras, trabalhadas exclusivamente pelas mulheres. Do lado nascente, entre a elevação da Quimabaca e o monte Quifuecha, corre um pequeno rio, o Cuanga, que contorna a sanzala e flecte para oeste. Deste lado, corre o rio Massaba, que deve ir dar ao rio Pemba, sobre o qual passamos quando circulamos na picada entre Quimbele e a Quimabaca. A sul, além da picada, que liga Quimbele ao Cuango, temos diversas sanzalas, que vou ter de recensear nos próximos dias. Qualquer elemento estranho que se aproxime, durante o dia, será facilmente detectado.

 

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