Carta para a Guiné |
Para já, vou acabar este relato. Já passa da meia-noite. Às três da manhã, tenho de ter todo o pessoal na picada. Antes de procurar dormir um pouco, se é que vou conseguir fechar os olhos por duas ou três horas, passo à correspondência propriamente dita. Vou começar pelo aerograma para a Guiné, antes de responder à vossa carta. O que é que escrevi aos meus camaradas? Muito pouco. Vinte e três linhas apenas, o que não é nada, se compararmos com a minha correspondência habitual. Foram vinte e três linhas de letra gorda e bem espaçada, mas com as suficientes palavras e ideias para dar aos meus camaradas o mesmo prazer que me deu receber o aerograma deles. Depois de me ter congratulado por verificar que mantêm a «psico» elevada, desejei-lhes felicidades para os 609 dias que ainda têm de comissão e de comichão, por causa das picadas dos mosquitos e de outra bicharada. Também não deixei de referir a próxima actividade turística que vou iniciar dentro de poucas horas pelo Norte de Angola. Utilizando o mesmo sentido de humor da correspondência deles, antes da conclusão, mostrei a minha satisfação por verificar que ainda não estão apanhados pelo clima. E esta última frase foi grafada começando com uma letra quase microscópica, que foi aumentando gradualmente, até acabar com letras gigantescas, de uns dois centímetros de corpo, culminando num enorme ponto de exclamação! No parágrafo final, de despedida, aproveitei a parte do aerograma deles, em que me dizem que estão frequentemente a ver crocodilos a atravessar a picada. Como em Angola, atendendo às dimensões, haverá seguramente muitos mais crocodilos que na Guiné, terminei deste modo o aerograma: «Para evitar serdes apanhados pelos crocodilos, utilizem o repelente para insectos fornecido pelo Laboratório Militar. Pode ser que resulte! Nós aqui, à falta de melhor, costumamos matar o tempo a fazer corridas com crocodilos. Colocamo-los no campo de futebol, em frente ao comando, e fazemos apostas, à semelhança das corridas de cavalos em Inglaterra.» Na vossa carta, toda com letra feminina, recebida juntamente com as instruções para a BTT da Quimabaca, a mãe pede-me para escrever aos primos de Águeda e faz-me uma pergunta acerca do paludismo. Devem receber em breve um duplicado a químico desse aerograma mandado para Águeda. O conteúdo é tão banal, que não vale apenas alongar-me muito. A única coisa que vale a pena aqui transcrever-vos é um curto excerto do parágrafo em que falo do comprimento das noites: «A única coisa que nos custa suportar é a noite. É excessivamente longa! Às 18:45 já é escuro. Como jantamos às seis da tarde, ficam todas as restantes horas desocupadas, sem nada para fazer. Consequentemente, o tempo parece não mais correr!» Está evidente que não lhes disse que os longos serões são sempre bastante ocupados com diversas actividades, além das rondas. É graças à longa duração das noites, que acabam por ser curtas, que consigo a maior disponibilidade para estas longas conversas convosco. Enquanto tiver aerogramas e esferográficas, tenho a possibilidade de estar convosco. Não vou responder detalhadamente à vossa carta. Deixo a pergunta que me fazem acerca do paludismo para outra altura. Não sei o que sucedeu aos ponteiros do relógio. Devem estar malucos! Giraram com tamanha velocidade, que já é uma da madrugada. Daqui a pouco estou de abalada e ainda tenho uma pilha de quase quarenta aerogramas para dobrar e colar. Vou-os deixar com o alferes Vieira, para seguirem talvez amanhã na coluna, após a visita do comandante de batalhão ao Alto Zaza. Amanhã, não! É já hoje, que o calendário também já avançou um dia! Assim que chegar ao local e tiver tudo arrumado, pessoal e bagagens, retomo a correspondência. Prometo consultar os meus verbetes sobre medicina, para vos dizer o que é o paludismo, e responder a todas as perguntas. Antes ou a seguir ao relato dos acontecimentos. Não ficarão sem as respostas. Um grande abraço de saudades para os meus «velhotes» queridos.
P.S. - O pai tem de pegar na caneta e escrever-me mais linhas, em vez de mandar os recados pela mãe. Que preguiça vem a ser essa? Ainda só consegui ler, nestes três meses, meia dúzia de linhas escritas por si. Não pode ser! Quero também ter o prazer de ler textos escritos com a sua letra. Um abraço!
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