BTT da Quimabaca

Os dois dias anteriores à partida foram de azáfama permanente. O furriel Rodrigues deu-me uma grande ajuda. Entregou-me ontem a relação de todo o pessoal que vai connosco. Contando comigo e com os dois furriéis, estamos, ao todo, vinte e seis elementos. É quase um grupo de combate. Mas falta-lhe o quase, porque neste total estão também contabilizados aqueles elementos que nunca saem do quartel ou do destacamento, como é o caso, por exemplo, dos cozinheiros.

Além da relação com todos os nomes, tenho também outros registos: vinte e seis colchões de espuma, cinco tendas quadradas de grande capacidade, cem caixas de rações de combate, etc.

Quando o furriel me veio trazer a relação e vi a indicação das cinco tendas, lembrei-me imediatamente da reacção dele, no dia em que as mandei desmontar, limpar e arrumar devidamente na arrecadação:

— Está a ver, Rodrigues, como eu tinha razão?

— Estou a ver o quê, alferes?

— Lembra-se quando lhe pedi o favor de proceder à desmontagem, limpeza e arrumo das tendas de campanha? Disse-me que eram material da tropa, que o Estado era rico...

— É verdade, alferes. Não diga mais. Já sei onde quer chegar. Também me lembrei disso quando as fui requisitar à arrecadação. Com elas estragadas, agora estávamos lixados!

Vou agora falar-vos um pouco da actividade que me espera nos próximos dias. Tenho aqui na frente as folhas dactilografadas, com os números das acções, os números de código, os objectivos, as regiões e as datas previstas. Ao todo, tenho dezanove povoações para controlar, divididas em quatro conjuntos ou grupos, cada um com a data e o tempo previsto. Praticamente, vou ter todo o mês de Março altamente ocupado com estas operações de controlo, estando previstos cinco dias para cada grupo. Apenas vamos ter para descanso, se não houver situações imprevistas, os fins de semana.

 

Plano de acção que serviu de base à elaboração do presente romance em género epistolar.

 

Além da folha assinalada com as palavras «SECRETO», a vermelho e em letras maiúsculas, onde consta a assinatura do comandante da Companhia, tenho comigo um exemplo dactilografado do processo de aldeia. Além dos elementos referentes ao recenseamento das povoações, a parte restante, bastante extensa, faz-me lembrar, em certa medida, o I.L.B., ou seja, os Inquéritos Linguísticos organizados pelo meu antigo professor, o Doutor Paiva Boléo. Dá-me a nítida sensação de ter recuado e voltado ao meu terceiro ano da Universidade.

Ainda se lembram daquele célebre Verão, em que passei a maior parte das férias na Gafanha do Carmo, na companhia do Ti Manel Melro, o velhote simpático e sabedor, que me ajudou a descobrir uma multiplicidade de aspectos linguísticos e etnográficos das Gafanhas? Só não fiz a investigação abrangendo toda esta interessante região de Aveiro, porque se me alargaram os horizontes, acabando por explorar toda a metade Norte do nosso Portugal pequenino.

Pois é verdade! Quem diria que, em África, em plena guerra, me ia ser entregue uma actividade tão interessante! Olho para este exemplar e parece-me, salvaguardadas as distâncias, que tenho um modelo reformulado do I.L.B.

Não vou copiar-vos aqui todo o documento. Ocupa três folhas dactilografadas. Não há tempo nem disposição para isso! Sem contar que era capaz de se tornar um frete para vós. Para ficarem com uma ideia do conteúdo, basta dizer-vos que aborda todos os aspectos de carácter social e etnográfico: relação dos homens e ocupações sociais (milícias, suspeitos, feiticeiros, etc.), aspectos económicos e sanitários, ensino e línguas faladas, aspectos da vida diária (casamento, óbitos, etc.), religiões, ocupação dos tempos livres, meios de comunicação, etc. Em suma, uma actividade deste género assenta-me como uma luva. Vem precisamente ao encontro dos meus gostos! Agora percebo por que razão o Comandante de Batalhão me escolheu a mim. E também o interesse dele em saber, através do capelão, como é que eu me estava a relacionar com as populações envolventes. O tenente-coronel Soares Coelho acaba de subir vários pontos na minha avaliação e na minha consideração. E estou, ao mesmo tempo, curioso por saber que mais quer de mim. Recebi directamente da sede do batalhão uma longa mensagem cifrada, que me fez perder algum tempo. Entre outras coisas, manda-me estar, às seis da manhã, a meio percurso entre o Quimbele e o Alto Zaza, na parte da picada, próximo de uma fazenda, onde temos de cortar para rumar para Norte, em direcção à Quimabaca. Segundo deduzo, o comandante aproveita a coluna de engenharia, que irá comigo para cima, até ao cruzamento, e depois vem efectuar a primeira visita ao Alto Zaza. Quer encontrar-se comigo neste local. O que irá dizer-me? Amanhã, isto é, daqui a poucas horas, fico a saber o que me quer transmitir.

Página anterior Home Página seguinte