Um convite

Na terça-feira, ao fim da manhã, chegou ao Alto Zaza uma secção com as instruções secretas para o alferes Ulisses. Trouxeram as instruções e o saco do correio para o grupo. Além da correspondência dos pais, recebi também um aerograma da Guiné, com cerca de trinta linhas espaçadas, carregadas de um certo humor, revelando-me que os meus antigos camaradas de Tomar continuam com o moral elevado. Na mesma altura em que recebi e li as palavras deles, escrevi-lhes um aerograma breve e no mesmo tom, que seguiu após o almoço, levado pela secção de Quimbele.

Na mesma tarde, antes da análise da documentação recebida, aproveitei o momento em que o Joaquim arrumava a messe para lhe fazer um convite:

— Joaquim, ainda esta semana, vou ter de abandonar a região do Alto Zaza pelo espaço de cerca de um mês. Vamos descobrir e conhecer outras terras do teu país. Vamos ficar a conhecer muitas sanzalas e as pessoas que lá vivem. É uma oportunidade que tu também tens de conhecer outras terras e outras gentes. Gostavas de ir comigo? Se me disseres que não, vou ficar triste, porque gosto da tua companhia. E continuamos a manter as nossas explicações. Levas os teus livros e a tua mochila.

— E quando é, alféris?

— Partimos ainda esta semana. Ainda não sei o dia. Pedes autorização aos teus pais e prepararas a tua mochila. É como se fosses um dos meus soldados. Tens as mesmas coisas que nós.

— Vou. Vou com o meu alféris.

— Se for preciso, eu vou à sanzala falar com os teus pais. E aproveito para me despedir de todos.

Estão certamente espantados com esta minha preocupação em ir à sanzala pedir autorização para levar comigo o moço que trabalha na messe? Não se espantem! O Joaquim, além de ser um jovem inteligentíssimo e afável, é um rapaz importante: é o filho do soba de uma sanzala da área do Alto Zaza. Não é um miúdo qualquer! Os sobas são as pessoas mais importantes de cada povoação. Embora eu seja a autoridade militar mais importante aqui, depois do capitão da Companhia, trato os sobas com toda a deferência. São para mim as autoridades civis mais importantes, depois do administrador. Se aí o presidente da câmara é uma figura importante, aqui, os sobas têm para mim a mesma importância. Talvez esteja a exagerar na correspondência. Ao presidente da câmara deverá corresponder o administrador. Será talvez mais correcto fazê-los corresponder aos presidentes das juntas de freguesia. E se a correspondência não bater rigorosamente certo, também não é isso que me vai abalar. Não passam, por isso, a merecer-me menos deferência e amizade. Os sobas são quase sempre as pessoas mais idosas e respeitadas na região. E é conversando com elas (e não só!) que os nossos conhecimentos aumentam.

Não é por acaso que o povo criou, há muitos séculos, o ditado: «Em Roma, sê romano.» Tive a prova da eficácia deste ditado quando andei, aqui há anos, pelas várias regiões do meu País. Ao fim de alguns minutos, começava a falar exactamente da mesma maneira que as pessoas que me recebiam e respondiam às minhas perguntas. Cometia precisamente os mesmos desvios à norma linguística vigente e colocava-me no mesmo plano que eles. Este simples facto era o bastante para anular as barreiras entre nós. Como viam que falava da mesma maneira que eles, perdiam imediatamente o acanhamento e tornavam-se mais espontâneos. E nunca encontrei a mais pequena falta de respeito e civilidade, tendo aprendido muita coisa nova e interessante com as pessoas simples do nosso povo.

Quando somos jovens e estudamos, ao fim de algum tempo, começamos a pensar que só nós é que sabemos tudo, e que os outros são uns ignorantes. Esta é a pior e a mais mesquinha atitude de qualquer ser humano! É a atitude frequente de muitos jovens, que se julgam mais sabedores que os outros. E esquecem-se que todas as pessoas são detentoras de um saber maior ou menor, diferente do nosso, todo ele, na maioria dos casos, de experiências feito. É um saber que cada um aprende na sua própria escola da vida, e ao qual não devemos ficar alheios. Se soubermos abrir os nossos sentidos a essas diferentes formas de saber, reduzindo-nos à nossa insignificância, teremos muito que aprender com os outros. É precisamente isto que tenho procurado aqui fazer, apesar de já ter ouvido alguns comentários depreciativos de furriéis, que deveriam prestar mais atenção ao saber dos nativos. Estou agora a lembrar-me do comentário pouco elegante de um dos meus furriéis, há tempos, quando me viu tratar os indígenas quase como se fossem meus familiares. Como quem não queria a coisa, foi comentando para outro, de modo a eu ouvir: «O alferes pensa, se calhar, que vai ganhar a guerra!» Na altura em que isto ocorreu, tive de fazer de conta que não ouvi. Deveria ter dado uma lição de moral a este meu elemento... Mas a verdade é que nunca mais me lembrei de tal, a não ser agora, que vos estou a escrever. E também já não vai ser, a poucas horas de partir daqui, que vou abordar o assunto.

O pai que me desculpe, estar para aqui com estas reflexões! Surgem-me a propósito daquilo que vos estou a relatar e acabam por me desviar do essencial. Mas eu, no seu lugar, não me zangava por isto. Significa que fui um bom aluno; e o pai um bom professor! E as minhas reflexões são já o resultado dos meus vinte e poucos anos de vida. E, nestes três últimos meses no Alto Zaza, já aprendi muita coisa nova! No próximo mês, espero estar um pouco mais enriquecido com os novos conhecimentos que vou adquirir.

Para a minha aprendizagem e permuta de conhecimentos, o Joaquim tem-se também revelado uma figura importante. Se ele tem lucrado com as explicações que lhe dou (com todo o prazer!), também eu tenho recebido um bom pagamento. Neste momento, o meu vocabulário de Quicongo aumentou consideravelmente. E, na região da Quimabaca, o Joaquim vai ser um dos meus auxiliares mais preciosos. Vai ser ele o meu cartão de visita e intérprete, sempre que os nativos não compreendam a minha língua.

Para o meu relato ficar completo, não posso deixar de reproduzir o diálogo entre mim e o outro alferes, quando este me viu convidar o rapaz:

— Tu levas contigo o Joaquim, Ulisses? Ele não é militar.

— Que mal tem que não seja militar?

— Como é que vais justificar as despesas com ele e, sobretudo, se acontecer alguma coisa de grave?

— O Joaquim tem trabalhado comigo, aqui no Alto Zaza. Recebe um salário mensal. Temos verbas disponíveis para isto. Nunca ninguém me levantou problemas por causa disto. E se o comandante de companhia ou de batalhão me levantar problemas, tenho justificação mais do que suficiente. Para a realização de um recenseamento, é preciso contactar as populações. Para as contactar, é preciso comunicar com as pessoas, falando a mesma língua. Na região, a língua predominante é o Quicongo. Como é que queres que eu cumpra a missão, se não nos entendermos? Como ainda não falo Quicongo, a solução é recorrer a um intérprete. Queres melhor intérprete que o Joaquim, filho do soba de uma sanzala da região, e de quem sou amigo? Só com a ajuda dele poderei dar cumprimento satisfatório às ordens do comandante. Tens melhor justificação do que esta?

— Tens toda a razão. Não tinha visto o problema dessa maneira!

— E digo-te mais. Se houver algum azar, que espero não haja, o Joaquim estará exactamente na mesma situação que nós. Enquadrado no nosso grupo, em cumprimento do serviço, creio que se aplicam os mesmos procedimentos que para qualquer um de nós.

— Talvez tenhas razão!

— Deve ser, Vieira. Se os GEs e milícias estão subordinados ao mesmo regulamento militar que nós, será lógico que qualquer elemento civil contratado e integrado no nosso grupo fique automaticamente sob a alçada desses mesmos regulamentos.

— Mas tu não elaboraste nenhum contrato formal com ele.

— Nem é preciso! A palavra é tão importante, para mim, como qualquer documento assinado. Além disso, numa eventualidade qualquer, creio que apenas precisamos de efectuar a participação escrita da ocorrência, para que ela seja imediatamente oficializada.

— Talvez!

— Penso que será assim. Nunca tirei nenhum curso de direito ou de justiça militar, mas penso que deverá ser isto.

Interrompamos o diálogo. Começo a ficar com pouco tempo. Vamos abreviar.

 

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