Concerto de grilos

Acabo de interromper por momentos o meu relato. O fluxo das ideias foi bruscamente cortado ou importunado por dois turras alados. Entraram-me na messe e começaram a fazer uma barulheira insuportável, que me fez sair de Quimbele, onde estava em imaginação, a rever os factos. Fizeram-me voltar à realidade do destacamento. De turras destes creio que já uma vez vos falei. Lembram-se de me ter referido, há tempos, ao conselheiro do Pinóquio, aquele animalzinho simpático que usava óculos e andava sempre equipado com um guarda-chuva?

Dois grilos tiveram a ousadia de entrar no meu edifício. E tão bem se devem aqui sentir na nossa companhia, que desataram os dois numa cantoria pegada, ao desafio um com o outro. É um concerto em perfeita estereofonia, cada um do seu lado. Um dos grilos lança um cri-cri metálico e agudo, que me faz lembrar um trompete; o outro é mais grave e menos incomodativo. Deve ser, certamente, o acompanhamento ou o contrabaixo. Na falta de banda militar cá por estes sítios, os dois devem ter vindo alistar-se no exército português. E escolheram o meu grupo. Infelizmente, chegaram um pouco tarde. Como estou de abalada, já não vou ter tempo de lhes mandar fazer uma farda, para se alistarem como animadores musicais da Companhia. Quem vai ficar a perder é o alfaiate da sanzala próxima, que fica sem estes dois clientes!

Olha, calaram-se. Que silêncio! Devem ter-se apercebido que estava a falar deles. Depois de uma cantilena ao desafio, fizeram silêncio. Resolveram dar um pouco de descanso aos meus ouvidos. Até já se ouve melhor a conversa ao lado do meu pessoal. Não! Lá estão eles outra vez a recomeçar! Pensei que se iam calar e deixar-me trabalhar em paz... Mas não, retomaram a sinfonia. Deve ter sido o intervalo. Precisaram de descansar e retomaram agora a actuação.

Vou ter de me abstrair deste concerto, antes que fique sem conserto! Ou, então, resolvo o problema doutra maneira... Já descobri! Vou à enfermaria. Vou buscar um pouco de algodão. Com uns tampões nos ouvidos, abafo seguramente este concerto imprevisto.

Estou aqui a barafustar com o ruído dos grilos; mas, no fundo, até estou a gostar de os ouvir. Fazem-me lembrar o Verão aí em Portugal. Fazem-me lembrar aqueles fins de tarde em que me deliciava a ouvir o grilo da minha gaiola. Em Portugal, temos de os ir apanhar ao campo. Arranjamos uma palhinha, descobrimos a toca e, depois, é enfiá-la no buraco, onde os ouvimos cantar, até serem obrigados a sair. Aqui, nem precisamos de nada disso. Suas excelências dão-se por convidados. Entram-nos pela porta dentro, sem pedirem licença. Pelo menos, estes dois, aqui dentro, enquanto cá estiverem, não farão parte da ementa dos nativos.

Já repararam que estou a discorrer perfeitamente acerca dos grilos sem ser incomodado pelo barulho que eles fazem? O algodão nos ouvidos resultou. Abafou a sinfonia e reduziu-a a um nível aceitável. Até melhorou o ambiente, inspirando-me melhor para a escrita.

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