Turismo em Angola

Chegámos cedo, muito antes da hora do almoço.

— Monteiro, passa pelo edifício do comando, para ir saber o que querem de nós. Espera por mim. Se nos despacharmos, ainda vamos ao Briosa beber um fino antes do almoço.

Entrei no gabinete do capitão e perguntei-lhe o que se passava:

— Recebi há pouco uma mensagem para vir urgentemente, para almoçar com o comandante. Temos cá o Comandante do Batalhão?

Depois de umas gargalhadas do capitão:

— Querias cá vir almoçar com o Comandante do Batalhão? Almoças comigo, que também sou o comandante.

— E foi preciso mandar-me vir cá abaixo com tanta urgência, só para almoçar consigo?

— Foi! Foi for causa do Comandante de Batalhão. Não almoças com ele, mas vens cá almoçar comigo por causa dele. Mais logo conversamos. Não queres aproveitar o resto da manhã em Quimbele? Aproveita agora, que vais ficar longe de Quimbele por uns tempos!

— Então e a minha rotação? Não é a minha vez de ficar cá?

Estava a fazer a pergunta, quando me lembrei subitamente de uma conversa antiga com o capelão. Como não queria desapontar o meu pessoal, que andava entusiasmado com a mudança para Quimbele por três meses, também eu acabei por me deixar contagiar e esqueci-me completamente da conversa com o capelão, no dia em que veio assistir ao jogo de futebol: «És a pessoa indicada para um recenseamento e recolha etnográfica.» Tinha de ser isto! Lá se ia a rotação pelo cano!

— A tua rotação está garantida. Vais rodar, e bastante! Mas não por Quimbele! Logo falamos. Aproveita agora o resto da manhã.

Esta resposta comprovou imediatamente a minha hipótese. Não perdi mais tempo na conversa. Estava o pessoal no unimogue à minha espera.

— Até já, capitão, à hora do almoço. Tenho a malta à minha espera. Vamos beber um fino. Não quer vir connosco?

— Não. Tenho que fazer. Vai lá. Obrigado, na mesma.

Saí e subi para a viatura:

— Vamos lá, pessoal. Vamos até ao Briosa Bar beber uns finos. Pago eu uma rodada a toda a malta.

— O que é que se passa, alferes? O alferes está muito generoso! Temos sarilhos?

— Não. Nada de especial! Tenho a ligeira impressão que, em vez de ficarmos três meses em Quimbele, vamos fazer turismo por terras de Angola.

— Turismo, alferes?

— Sim, turismo... Descobrir uma Angola desconhecida, que espera por nós!

— Como assim?

— Não tenho a certeza de nada. É apenas uma impressão minha. À hora do almoço, com o capitão, já devo ficar a saber ao certo o que nos espera. Vamos agora aproveitar para beber uns finos, que não sabemos o dia de amanhã. E podemos não voltar a ter esta oportunidade de confraternizar.

— O alferes parece que está pessimista!

— Não é pessimismo, Rodrigues, é realismo. Temos que colher o dia que corre, que o amanhã não sabemos como será. Por isso, vamos aproveitar para beber uns finos. E o Rodrigues aproveite também para comprar rolos para a sua máquina fotográfica. Pena é que eu não possa fazer o mesmo. Tenho a impressão que as suas fotografias ainda me vão ser úteis.

Durante o almoço, uma das primeiras perguntas foi acerca do meu aproveitamento do tempo:

— Então, gozaste bem o final da manhã? Fizeste muitas compras?

— Nenhuma. Fui ao Briosa Bar e limitei-me a beber uns finos com o meu pessoal.

— Estou a ver. Gozas os prazeres de Quimbele... E fazes bem! Durante uns tempos, não tens finos, não tens cinema, não tens a nossa companhia e as partidas animadas de póquer, não tens as conversas com o Graça Marques...

— É verdade! — acrescentou o médico. — Por uns tempos, não temos conversas. E tenho pena! Fico sem saber as tuas histórias. Já te esqueceste da promessa?

— Que promessa? Não fiz promessa nenhuma!

— Não fizeste, mas foi como se a tivesses feito. Falaste-me das tuas paixonetas de miúdo e deixaste-me com vontade de te ouvir. Deixa lá, que não perdes pela demora. Quando vieres para cá, não te largo sem que fales delas.

— Não é só falar das minhas paixonetas. E as tuas? Também tenho interesse em as conhecer...

— Chamaste a atenção do Comandante de Batalhão. Caíste-lhe no goto e agora tens de gramar as missões que ele te destina.

— O que é que vocês queriam que eu fizesse? Se me mandou o capelão lá para cima, para me caçar o hino do batalhão, o que é que queriam que eu fizesse? O homem engraçou comigo. E também já me pregou uns raspanetes. A mim e também aqui ao nosso capitão. Mas deixemos isto. Afinal, capitão, o que é que se passa para me ter mandado vir almoçar a Quimbele?

— Passa-se que tens uma missão do Comandante de Batalhão para desempenhar. Ontem, para surpresa nossa, veio cá almoçar um alferes da C.C.S., mandado pelo comandante. Trouxe toda a documentação, para te ser entregue juntamente com a folha das acções que irás desenvolver, quando estiveres instalado na BTT da Quimabaca.

— BTT da Quimabaca? Que raio vem a ser isso?

— Vais ficar durante um largo período de tempo instalado num acampamento temporário na Quimabaca, mais ou menos no centro de uma vasta região entre Quimbele e o Cuango. É uma área que deve ser quase tão vasta como um quarto de Portugal. Depois envio-te todo o processo organizado. No dia da partida, que saberás na altura, o próprio Comandante do Batalhão vai encontrar-se contigo entre Quimbele e o Alto Zaza. Na devida altura, receberás todas as instruções. Entretanto, vai pensando no grupo que irá contigo.

— Não é preciso pensar. Vai o meu grupo, que está no Alto Zaza.

— Não todo! Apenas parte. Talvez metade. Uns vinte e tal homens apenas.

— Só?!

— Só. Chega-te perfeitamente.

— E se sou atacado?

— Qual atacado. Só se for por mosquitos! É uma zona com muitas sanzalas. Se te deste bem e sem problemas numa zona importante e de responsabilidade, como é o Alto Zaza, não é agora ali que vais ter problemas.

— E a comida? Vamos passar um mês a rações de combate?

— Não. Terás tudo o que é preciso. Até uma cozinha móvel.

— E o forno do pão? Onde é que fazemos o pão? Não vamos ficar sem pão durante um mês...

— Terás reabastecimentos periódicos. Está descansado que não te há de faltar nada. Está tudo previsto.

— Também o médico?

— Desenrascas-te tu com o enfermeiro. Ligas pela rádio. O Graça Marques resolve-te as dificuldades pela rádio, se surgirem.

— Mesmo assim, há uma coisa que não estou a entender: como é que o pessoal do Ulisses vai cozinhar? Onde é que há cozinhas móveis, capitão? — perguntou o médico.

— Não sei se há ou não cozinhas móveis. O que sei, pelo que nos disseram, é que vai um grupo de Engenharia contigo, para reparação da picada entre Quimbele e o Cuango. Aliás, não tem que ir nenhuma cozinha. Como é que vocês se arranjam no Alto Zaza?

— Além de um fogão velho, improvisámos. Tijolos e travessas de ferro. A lenha, vamos buscá-la à mata. É parecido com o que se fazia, antigamente, nas nossas aldeias. Um tacho enorme sobre o lume e cozinha-se bem.

— Aí está. Estás a ver como tens uma cozinha móvel? Levas os tachos e as panelas necessárias do Alto Zaza. Levas cozinheiros. E depois, é a lei do desenrasca. Até já podes levar na Berliet uns tijolos. Tijolos uns sobre os outros e duas ou três vergas grossas de ferro. E tens o problema resolvido.

— Não há-de ser nada. À fome não havemos de morrer. Se se esquecerem de nos levar o reab., arranjo-me com os nativos. Vamos à caça e partilhamos o que apanharmos. Um antepassado meu homónimo, numa pior situação que a minha, com mulher e filhos, andou longos anos fora de casa e escapou a todos os problemas. Não hei-de ser eu que irei soçobrar nas ondas das picadas e no meio do vasto mar verde de capim das terras angolanas. Cá me hei de arranjar, com a ajuda do meu pessoal. E tenciono até levar todas as minhas comodidades! Se calhar, até o Joaquim, se ele quiser ir comigo, para me ajudar no Quicongo.

— Mas olha que o teu antepassado, de quem estás a falar, não me consta que tenha andado por Angola.

— Tens razão, Graça Marques. Por Angola nunca andou nem nunca poderia ter andado, que na altura ainda não existia. Que eu saiba, o sítio mais distante onde terá ido foi ao nosso país. Foi graças a ele que surgiu Olissipo, a nossa capital.

— O que é que Olissipo tem a ver com Lisboa?

— Está certo, capitão, o Ulisses tem razão. Não se lembra da lenda da fundação de Lisboa?

— Não se deve lembrar. Mas se pensar bem, não é difícil associar o meu nome ao da cidade de Lisboa. Ulisses fundou Olissipo, nome mais tarde mudado para Lisboa. E por esta razão a designação correcta dos alfacinhas é olissiponenses ou lisbonenses. Aliás, a forma mais correcta creio que até deverá ser olisiponense. E não é a única designação para os alfacinhas. Ou não será assim, capitão?

— Não digas mais. Já chega de te ouvir.

— Deixe-o falar, capitão. O Ulisses, quando engata a primeira, nunca mais pára de falar. E eu até gosto de o ouvir. É cheio de ideias e de imagens pitorescas. E prepara-te, que não ficas sem me contar as tuas paixonetas.

— Acho que o capitão está certo, Graça Marques. Estou a falar de mais. Quem me ouvir, há-de pensar que engoli agulhas de grafonola. Acabemos a sobremesa, para irmos disputar as bicas. O tempo não pára e ainda tenho de voltar hoje para cima, para começar a pensar na partida.

— Tem calma. Ainda tens três dias pela frente.

No café, já lá estava o furriel Rodrigues e alguns soldados. Dei-lhe umas breves palavras:

— Rodrigues, é mesmo o que eu pensava. Vamos andar em turismo, talvez por um mês ou mais. Aproveite, antes de irmos para cima, para comprar o que precisa.

— Para onde vamos?

— Lá em cima, conversamos. Diga aos soldados que encontrar para aproveitarem a vinda a Quimbele para compras.

— E arrancamos quando?

— Hoje mesmo. As lojas abrem pelas duas da tarde. Lá para as três, três e meia, arrancamos para o Alto Zaza.

 

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