Mensagem muito urgente

 

Alto Zaza, 1 de Março de 1973

 

Tal como previ, na carta anterior, retomo a escrita no primeiro dia de Março. E faço-o ainda no Alto Zaza. Possivelmente, será a última vez, aqui neste destacamento. Tão cedo não devo voltar a esta zona, onde passei os três primeiros, digo, os quatro primeiros meses de comissão. Pensando melhor, talvez seja mais correcto dizer três em vez de quatro. Porquê? Porque, se efectuarmos uma contagem rigorosa dos dias aqui passados, deverá perfazer o equivalente a três meses. Não nos podemos esquecer que embarcámos para Angola em 7 de Novembro. Chegámos a Luanda no dia seguinte e só arrancámos para o sector de Uíge no dia 11. Tomei contacto pela primeira vez com o Alto Zaza no dia 13 do mesmo mês. Descontando as vezes que fui a Quimbele e lá tive de ficar, não sei se dará o total de três meses de permanência neste local. Seja como for, parece-me que já aqui estou há uma eternidade! E agora, que vou ter de sair, começo a lembrar-me de tudo e de todos quantos conheci nesta região e que tão bem me trataram.

A questão do tempo é um problema de importância mínima. Sem contar que me está a fazer perder tempo, quando este me começa já a fugir por entre os dedos. Poucas horas de permanência me restam e tenho muito que escrever. Vou ter de redigir toda a carta de uma só vez (espero!), reduzindo as interrupções ao mínimo. Mesmo que tenha de passar o resto da tarde e toda a noite sem dormir, terei de o conseguir. Tenho de arrancar do Alto Zaza, com todo o pessoal que escolhi, às três da madrugada. Só cá devo voltar, na melhor das hipóteses, em Abril ou Maio, se não ficar mesmo por Quimbele durante três meses, como efectivamente me compete. Logo, tenho de aproveitar todos os momentos disponíveis para estar convosco. Por esta razão pedi a ajuda do Rodrigues e do alferes que me vai substituir. Repartindo as tarefas das últimas horas pelo meu camarada e pelos meus graduados, espero não arrancar sem deixar o maço da correspondência em ordem, para seguir para aí no próximo saco do correio.

— Afinal, que raio se estará a passar? — estão neste momento os pais a interrogar-se. Que terá acontecido para o nosso filho ter de abandonar o Alto Zaza por uns tempos? A que raio de missão estará ele a referir-se, se de uma missão se trata? Terá sido destacado para alguma coisa perigosa?

Estejam descansados. Não deve ser nada de especial. Se é uma missão perigosa ou não, esta é uma hipótese à qual ninguém poderá dar uma resposta categórica. Ninguém neste mundo sabe aquilo que os próximos minutos lhe reservam. Ninguém é senhor do seu próprio Destino. Podemos efectuar uma previsão, mas, como todas as previsões, o grau de fiabilidade é sempre relativamente reduzido. Penso, todavia, que a missão que me espera, embora vá enfrentar o desconhecido, não deverá criar-me situações de perigo. Quando vim para o Alto Zaza, vim também para o desconhecido. Num curto espaço de tempo, relacionei-me com todas as populações e acabei por encontrar, à minha volta, um clima de amizade e cooperação. Não me será difícil obter o mesmo na vastíssima região em que vou ter de viver por uns tempos. Creio que vou fazer exactamente o mesmo que fiz, há anos, nesse minúsculo país que é Portugal, quando percorri, no espaço de meio ano, toda a metade Norte, para o meu trabalho de investigação.

— Mas, afinal, o que é que se passa? Que trabalho vem a ser este? Não é o trabalho que todos têm de fazer em Angola? — estão novamente a perguntar um ao outro. O nosso filho fala, fala... Mas não há maneira de nos dizer concretamente o que se está a passar. Da comissão em Angola começa a falar do trabalho de investigação que realizou aqui em Portugal. O que é que uma coisa tem a ver com a outra?

Não ralhem mais comigo! Têm toda a razão. Estou a procurar explicar-vos, dando elementos de comparação, mas verifico que estou a perder o meu tempo. Estou a desperdiçá-lo, e ele já não é muito. Avancemos. O tempo não pára e não sei quando voltarei a ter oportunidade de conversar convosco. Tenho ainda o relato e as respostas à correspondência que recebi anteontem. Recuemos no tempo e ala. Ala que se faz tarde. Vamos aos factos.

Devem recordar-se que, no dia 26 de Fevereiro, acabei a correspondência já de madrugada. Contava recuperar o sono perdido durante o dia. Saíram-me os cálculos furados! Ainda o pessoal não tinha acabado de tomar o pequeno-almoço, quando me entrou o rapaz das transmissões no edifício:

— Meu alferes, está aqui uma mensagem urgente de Quimbele. Vem cifrada e chega bem cedo. Não deve ser coisa boa!

— Pode ser que não. Deixa ficar. Vou já decifrá-la, assim que terminar a refeição.

O resto do pequeno-almoço ficou com o gosto ligeiramente alterado. Receber uma mensagem urgente, àquela hora da manhã, não pressagiava nada de bom. Desabafei com os graduados:

— Alguma coisa deve estar para acontecer. E não deve ser boa. Geralmente, as mensagens do três tiras só chegam a meio da manhã. Para esta aqui ter chegado tão cedo, não deve ser coisa boa.

— Se calhar, mais alguma informação motivada por infiltração de terroristas... — alvitrou o alferes Vieira.

— É capaz de ser! — acrescentou prontamente um furriel. — Mais uma operação de três ou quatro dias no meio do mato.

— Talvez não! — disse eu. — Não vale a pena estarmos para aqui com conjecturas, a tentar adivinhar e a pensar já em coisas desagradáveis. Se me dão licença, continuem com o pequeno-almoço, que eu vou para o gabinete decifrar a mensagem. Tu, que me vais substituir, Vieira, fazes-me um favor: vais com os furriéis tratar das rotinas do destacamento. Já sabes o que a casa gasta. Até já.

Saí da sala comum, onde os furriéis dormem e tomamos as refeições, e fui para o meu ex-gabinete de comando e quarto de dormir. E digo «ex-gabinete», porque há já uns dias que deixou de ser exclusivamente meu. Peguei numa nova folha de papel quadriculado e na esferográfica, retirei da pasta o livro da cifra, consultei-o e dei início à minha actual modalidade de palavras cruzadas. Depois de algum trabalho, estava a mensagem decifrada:

 

 

«ALFERES ULISSES DEVE ALMOÇAR QUIMBELE COMANDANTE NÃO PODE FALTAR MUITO URGENTE»

 

 

Se as palavras no quadrado quadriculado eram de difícil compreensão, o seu alinhamento numa folha branca de papel liso nem por isso aclarava mais o sentido. Levantei-me da secretária e fui chamar o alferes Vieira.

— O nosso alferes Vieira não está. — disse o Rodrigues. — Acabou de sair há minutos com o furriel de serviço.

— Faça-me um favor, Rodrigues. Vá procurar-me o alferes Vieira. Diga-lhe para vir aqui ao gabinete dar-me uma ajuda. Entretanto, diga ao furriel de serviço que comece a reunir uma secção e destaque um condutor. Temos uma saída imprevista dentro de poucos minutos.

— Alguma operação, alferes?

— Não. Não me parece que seja isso.

— Então?

— Não faço a menor ideia. Mas não deve ser coisa boa. Vá lá. Não temos tempo a perder.

Dois ou três minutos depois, entrava o Vieira no gabinete. Vinha esbaforido.

— O que é que se passa? O furriel Rodrigues foi a correr à minha procura e fez-me vir a toda a pressa para aqui.

— Não sei. Pedi para vires aqui para me ajudares. Lê a mensagem. O que concluis da leitura?

— Não sei. Para já, tens de ir para Quimbele. O que eu deduzo é que vais ter de almoçar em Quimbele.

— Mas para quê? E com quem? A mensagem diz: «ALMOÇAR QUIMBELE COMANDANTE...» Qual comandante: o do batalhão ou o da companhia?

— Como é que queres que eu saiba? Tu que és de letras é que deves saber! Deve ser o capitão. Seja quem for, tens de lá estar.

— Não me cheira a coisa boa. Mandar-me ir almoçar a Quimbele com o comandante... Hum! Cheira-me a esturro! Não deve ser pelo prazer da minha companhia!

— Logo vês. A solução é despachares-te, que a manhã passa depressa.

Pouco depois, encontrei o Rodrigues:

— Então, Rodrigues? Já está a secção reunida e o condutor destacado?

— Já alferes. Quem é que vai sair e onde é?

— Vou eu, Rodrigues. Tenho de estar em Quimbele, para almoçar com o comandante.

— Qual comandante?

— Sei lá! A mensagem não dá para mais. Qual é a secção que vai? Quem vai comigo?

— Vou eu, alferes. Como não sabia onde era a saída, os meus camaradas retraíram-se. Para não me chatear, decidi que ia eu. E parece que fiz bem! Sempre vou a Quimbele!

— Não deve ser por muito tempo. Aliás, não sei. Até pode ser que só regressemos amanhã. Agora é despacharmo-nos. Vou enfiar o camuflado e pegar a arma e as cartucheiras. Arrancamos o mais depressa possível.

— Acho bem! Se andarmos depressa, ainda vamos beber uns finos ao Briosa Bar, alferes.

 

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