Carta a uma prima

«A. Zaza, 2210.42A.FEV.73

 

Priminha:

Aqui me tens novamente a dar-te notícias, mais ou menos comodamente instalado no meu gabinete, à secretária, no Alto Zaza. É melhor que nada, pois aqui pouco mais que nada há! Mas, enfim, com umas idas a Quimbele, de tempos a tempos, a coisa até se suporta. O comandante da Companhia continua bom tipo. Por enquanto ainda não tive qualquer aborrecimento com ele, nem directa, nem indirectamente. E até tem conseguido tornar o ambiente agradável.

Mudando agora de tom e passando a escrever com palavras minhas... Sim, porque toda a matéria do parágrafo anterior foi escrito utilizando quase as mesmas palavra da tua carta. Como vês, o que se passa contigo, no local onde estás a dar aulas, é parecido com o que se passa comigo, embora em campos opostos: tu tens de lidar com os teus alunos e aturar as casmurrices do teu director; eu tenho de lidar com o pessoal daqui e aturar as casmurrices do Destino. Estamos quase na mesma situação: temos de lidar com o material humano e saber resolver as situações imprevistas, que a todo o momento nos tiram horas de sono.

Como podes ver, continuo ainda no Alto Zaza, embora já por poucos dias. Estou a ser rendido aos poucos, pelo que, dentro de dias, deverei estar em Quimbele, onde passarei três meses.

Talvez estranhes o facto de dizer que estou a ser rendido, em vez de dizer «vou ser rendido» ou «já fui rendido». Porquê a primeira construção perifrástica? Simplesmente porque as rendições são feitas de forma progressiva, isto é, não se podem mudar repentinamente quarenta homens de um lado para o outro. Por causa da falta de viaturas? Claro que não! O problema não se põe em termos de viaturas. A razão é totalmente diferente. As condições de vida em Quimbele e as do Alto Zaza são completamente distintas. O pessoal só pode ser rendido em grupos pequenos, de dois ou de três em três dias, ou até mesmo quatro. E grupos pequenos de cada vez, de oito a dez homens. Deste modo, antes do meu pessoal mudar para sítio melhor, tem de conviver durante dois ou três dias com os elementos que os vem render, para que possa ensinar-lhes aquilo que têm de fazer, os perigos que podem ocorrer, em suma, as condições precárias de vida do novo local que vêm ocupar. Há assim uma adaptação progressiva aos costumes e leis do novo «habitat», onde terão de passar também três meses.

Como sempre, o comandante do barco é o último a abandonar a máquina à sua sorte. E aqui não é excepção. Também eu terei de ser o último a ir para Quimbele, depois de passar uns dias na companhia do meu substituto e de o ter posto a par de todos os problemas inerentes ao comando de um destacamento, do qual dependem, para aumento das responsabilidades, outros destacamentos e as boas relações de vizinhança com todas as populações civis da área. As relações que aqui consegui estabelecer são tão boas, que recebo frequentes visitas de nativos, que vêm cumprimentar e conhecer o alferes Ulisses. E, não raras vezes, tenho de fazer de juiz de paz, de médico, de emprestador de dinheiro, de animador social, com tardes desportivas, em suma, um pouco de tudo.

Estou agora a lembrar-me duma situação aflitiva, que nunca relatei na correspondência para os meus velhotes, e que poderá bem ilustrar o que acabei de dizer.

Pouco tempo depois de ter vindo para este destacamento, talvez um mês depois do alferes que rendi ter ido para outra região de Angola, passei uma manhã angustiosa.

Ainda bem cedo, pouco depois de termos tomado o pequeno-almoço, ouvimos forte tiroteio a pouca distância daqui. Pela direcção do som, tinha de ser na sanzala ou dos GEs ou dos milícias. Reuni à pressa um grupo, devidamente armado, e dirigi-me numa viatura para o local.

Aproximadamente a meio do percurso, encontro nativos que vinham a correr para o Alto Zaza, a pedirem ajuda ao alferes. Parei o unimogue e perguntei-lhes o que se passava. Estavam aflitos e vinham à minha procura. GEs e milícias estavam aos tiros uns contra os outros, por causa duma mulher. Subiram para a viatura e prosseguimos a viagem.

Quando chegámos à sanzala dos GEs, o tiroteio estava ainda aceso, com GEs e milícias frente a frente. Peguei na G3, pu-la em posição de rajada e mandei uma descarga para o ar, ao mesmo tempo que dei ordem ao condutor para avançar, colocando-nos perigosa e arriscadamente no meio do fogo cruzado. A rajada para o ar, felizmente, produziu o efeito de surpresa com que contava. O tiroteio cessou bruscamente e descemos da viatura. Em voz forte e determinada, que deveria ouvir-se a grande distância, perguntei o que se estava a passar. Os dois lados da contenda aproximaram-se e começaram a falar, todos ao mesmo tempo.

— Alto lá! Assim não entendo nada. Quem é o mais velho de cada lado? Fala um representante de cada grupo, cada um na sua vez, para ver se entendo.

Voltei-me para um GE, que se apresentou como o líder, e perguntei-lhe:

— O que é que se passa? Como é que começaram aos tiros?

Como o elemento milícia começasse a falar, mandei-o calar:

— Um momento. Fala agora o GE, que foi o primeiro a quem me dirigi. — disse com voz dura. — O senhor fala a seguir, depois de ouvirmos a versão do GE.

Toda a questão começou, segundo apurei, por causa de um vendedor nativo, que não é daqui, mas veio vender peixe seco às duas sanzalas. Num dado momento, cobiçou a mulher de um milícia e a discussão estalou. Fala um, fala outro, a certo momento ninguém se entendia. Começaram num aceso tiroteio uns contra os outros.

Captado por alto o problema, reuni os dois grupos e efectuei ali uma espécie de julgamento dos acontecimentos.

— Quem foi o primeiro causador? Quem foi o ofendido? Quem começou o tiroteio e descontrolou a situação?

Aos poucos, com muita paciência, fui conseguindo apurar todos os factos e avaliando mentalmente os diferentes graus de culpabilidade. E, a certa altura, dei-me conta de que estava numa situação complicada. Se castigasse só uns elementos, ganharia a amizade dos outros, mas a inimizade destes, o mesmo ocorrendo na situação inversa. A solução consistiu em atribuir a culpa a todos, em graus diferentes, sendo o mais elevado ao que esteve na origem de todo o problema. Ao comerciante que ofendeu o outro, por lhe ter cobiçado a mulher, puni-o com o pagamento de duas grades de cerveja, uma para o ofendido, a outra para distribuir por todos e ser ali bebida no momento. A cada um dos grupos opostos que participou na barafunda, puni-os com o pagamento colectivo também de uma grade de cerveja, uma por cada grupo. O condutor foi à cantina buscar as grades, recebi as quantias devidas e distribuíram-se as garrafas por todos, não esquecendo o pessoal que foi obrigado a vir do destacamento, que também foi recompensado com uma cerveja paga pelos contendores.

O resultado final é que acabou tudo em paz e, no dia seguinte, para minha grande surpresa, apareceram-me vários elementos no destacamento. Vieram agradecer ao alferes e oferecer-lhe diversas galinhas, que tive de aceitar. Enquanto ofereci umas bebidas ao grupo que veio ao destacamento, entreguei as galinhas ao furriel de serviço, para entrarem numa das próximas ementas do quartel.

É verdade: estava a esquecer-me de algo muito precioso que ofereceram exclusivamente para o alferes, e que eu, por ignorância, deixei depois deteriorar. Só descobri a asneira tarde de mais, quando falei disto a um comerciante de Quimbele.

Além das galinhas, ofereceram-me um caule de uma planta, com uns trinta centímetros de altura e a espessura, mais ao menos, de um braço. Era uma planta que libertava um aroma forte e inebriante. Ofereceram-ma, dizendo-me que era para quando eu fosse velho. Mas não me explicaram mais nada. Guardei a olorosa planta no meu gabinete, sem saber o que lhe fazer. Claro está que, com o tempo, acabou por se estragar e tive de a deitar fora.

Quando falei disto a um comerciante de Quimbele, é que descobri a grande asneira que fiz:

— Ofereceram ao alferes um tronco dessa planta? Devem-no ter em muito apreço. Estou aqui há muitos anos e nunca consegui arranjar um exemplar desse caule.

— Mas é assim uma coisa tão preciosa? — perguntei espantado.

— Uma verdadeira preciosidade, um segredo que os nativos guardam para eles.

— Não me diga.

— É verdade, alferes. Ofereceram-lhe uma planta afrodisíaca, que muitos brancos gostariam de possuir. Como é que o alferes julga que os velhotes nativos conseguem dar assistência nocturna às várias mulheres que possuem? É um afrodisíaco poderoso e que eles guardam como um segredo dos mais preciosos. Não devia ter estragado isso, que lhe fazia um jeitão daqui por uns anos.

— Mas como é que eu podia conservar o caule sem se estragar?

— O alferes não recebe todos os meses uma dotação de garrafas de uísque?

— Recebo.

— Pois aí tinha a solução. Deveria ter cortado o caule de cima abaixo, em secções estreitas, e introduzi-las em várias garrafas de uísque, que voltaria a fechar com todo o cuidado. A planta ficava em maceração e, daqui por alguns anos, tinha ali vários lotes de uma bebida afrodisíaca altamente eficaz. E de certeza que nunca mais na vida lhe voltam a fazer uma tal oferta. Tomara eu conseguir obter uma dessas coisas. Sei que os nativos a utilizam, porque me têm falado disso, mas nunca consegui que me vendessem uma amostra. Para lhe terem oferecido um exemplar, devem ter uma grande admiração por si.

Estás a ver as situações por que tenho passado e aquilo que já perdi, priminha? Pois é verdade, caríssima priminha. O teu primo, apesar de aqui estar ainda há pouco tempo, já tem passado por muitas situações invulgares e exóticas. E, neste caso concreto, que acabei de te evocar, o teu caríssimo primo viu-se transformado, sem contar, em juiz de dissidências entre nativos.

Deixemos os exemplos práticos, que são muitos e não temos tempo para mais. Regressemos à tua correspondência.

Perguntas-me na tua última carta como é que eu me dou com as comidas africanas. Sinceramente, quando acabei de ler a questão, fiquei momentânea e estupidamente sem saber a que comidas africanas te referias. Vou partir do princípio que não te estás a referir à comida das africanas, mas sim às ementas do destacamento. E esta minha confusão na linguagem foi causada por ti. É o que dá em usares, por vezes, na tua carta, uma linguagem dúbia e brincalhona, jogando com os sentidos duplos das palavras. Mesmo à distância de milhares de quilómetros, continuas a meter-te comigo, sempre numa brincadeira gostosa com o primo. Lembras-te dos tempos de Celorico da Beira, em casa dos avós, onde passávamos a vida a meter-nos um com outro, ao ponto da tua irmã estar sempre a dizer que parecíamos o cão e o gato? Bons tempos esses! Quem me dera agora voltar a eles e sair daqui deste desterro! Quanto não daria para poder voltar a esses tempos de férias deliciosas, durante os três meses das férias de Verão! Mudaram-se os tempos, mas ficaram-nos as boas recordações!

Aqui, no meio do mato, longe de toda a civilização, acontece frequentemente, tirando umas raras excepções, que a comida é uma grandessíssima... porcaria. Quase sempre as mesmas ementas e, às vezes, na falta de melhor, na falta de reabastecimento, como já me aconteceu uma vez, até feijão com gorgulho entrou na ementa. Desta vez, só tínhamos feijão branco, do manteigudo, e alguns frangos congelados na arca frigorífica. O vagomestre apareceu-me no comando com ar de aflição, a dizer que não tinha nada para nos dar de comer, por estarmos com falta de viaturas.

— O furriel tem mesmo a certeza que não há nada para comer?

— Não, alferes. Só se formos à caça. Mas não vamos a tempo da próxima ementa.

— Já viu com olhos de ver se não há mesmo nada?

— Não, alferes, não há mesmo nada!

— É melhor irmos à cantina ver o que há! Talvez esteja a exagerar.

— Não estou, alferes. Venho agora de lá.

— Não custa nada lá irmos de novo.

Fomos à cantina ver o que havia.

— Está a ver, alferes? Estamos completamente sem géneros.

— Abra lá a arca frigorífica.

— Não temos nada, alferes.

— Abra lá, para eu ver com os meus próprios olhos.

— Estamos mesmo sem nada.

— Abra. Abra lá a arca e deixe-se de conversa. Se não abre, abro eu. O que é aquilo ali? Não é frango congelado?

— É alferes. Mas é pouco e não temos mais nada. O arroz acabou.

—O que é que está ali ao canto, naquela saca?

— Isso já não presta, alferes. Já eu vi o que é. É feijão estragado.

— Abra lá, para eu ver também.

— É feijão estragado, alferes. Está cheio de gorgulho.

— Vamos lá ver. O gorgulho também é alimentício. Nunca viu o filme O mundo cão? Se na Ásia até formigas e baratas entram nas ementas, e aqui os nativos comem os grilos assados nas brasas, e nos desertos os profetas se alimentavam de gafanhotos, certamente que não será o feijão com gorgulho que nos vai fazer mal!

— O alferes está mas é a brincar comigo!

— Não senhor. Não estou a brincar. Estou a falar muito a sério. Vamos lá ver o que está na saca.

De facto, a saca estava cheia de feijão branco, daquele manteigudo, com que se fazem umas excelentes feijoadas, as célebres dobradas à moda do Porto.

— Temos muito que comer, Ramalho.

— O alferes está a gozar comigo?

— Já lhe disse que não estou. E estou até bem pouco para brincadeiras. Ponham o feijão de molho. O que estiver furado pelo gorgulho, de certeza que deve ficar a boiar. Vai ao fundo com o peso, quase de certeza absoluta, o que não estiver furado, o que estiver bom. E mesmo o furado, com o gorgulho fora, a boiar à superfície da água, não deixa de ser comestível. Daqui por umas horas, com o feijão de molho, está bom para ir para a panela.

— E comemos o feijão com quê, alferes?

— Ora essa! Com os frangos que estão na arca frigorífica. Ou está a guardá-los para alguma patuscada às escondidas do resto do pessoal? Tudo junto, com um pouco de picante, deve dar uma refeição do caraças.

Pois é verdade, tivemos uma ementa espantosamente saborosa. Devo dizer-te, priminha, que feijão manteigudo com frango e um pouco de piripiri dá um petisco de lamber o beiço. Ninguém refilou e repetimos já a ementa várias vezes, pois os dois elementos ligam muitíssimo bem. Fica muito mais saboroso o frango com o feijão branco do que a ementa habitual de frango com arroz, que até já nos começava a aborrecer.

Como vês, as ementas são aquilo que pode ser. Mas, como no destacamento, felizmente, não nos faltam farinha, leite condensado, açúcar e ovos, tenho-me já entretido com os furriéis a fazer algumas experiências culinárias, mais rigorosamente, algumas gulodices culinárias.

Ontem, por exemplo, resolvemos fazer umas travessas de leite creme para todo o pessoal. Numa grande vasilha, aproveitando uma grande lata vazia de chouriças, fizemos leite. Misturámos-lhe açúcar e farinha e pusemos tudo num grande tacho ao lume. Foi o que se pode considerar uma verdadeira calamidade culinária! Além de se ter agarrado ao fundo do tacho, o leite creme ficou cheio de caroços e com um gosto deplorável a esturrado. Nem as nossas mascotes se interessaram pela mistela. Cheiraram e nem lamberam!

Valerá a pena continuar a falar dos nossos desaires culinários? Claro que vale a pena. Vale sempre a pena!

Acontece que nós, aqui, como homens valorosos e de barba dura, não queremos dar-nos por vencidos. Desistir é fraqueza! Fazemos tenção de repetir as experiências. Até porque errando, reflectindo nas asneiras e repetindo as operações é que se aprende. Por isso, se te lembrares e tiveres paciência, procura nos teus livros de culinária receitas fáceis de fazer. Passa-as para uma folha de papel, mete-as na correspondência e manda-mas. Pode ser que, das próximas vezes, venhamos a ser bem sucedidos. Se quiseres e te lembrares, podes ler esta parte da correspondência às tuas amigas. Quem sabe, talvez também elas procurem receita fáceis para tu mandares... Ou até mesmo elas! Se lhes deres o meu endereço postal e elas me escreverem, desde já te posso garantir que não ficarão sem resposta.

Por causa deste meu pedido, não nos comeces a julgar mal. Nem penses que nos envergonhamos por estarmos aqui com experiências culinárias. Lembra-te que os cozinheiros mais famosos foram homens. Se tinham ou não a barba dura, não sei nem isso me interessa. Mas que eram homens, lá isso eram! Não foi por acaso que ficaram célebres as amêijoas à Bulhão Pato, ou o bacalhau à Gomes de Sá, e tantas outras ementas que poderia aqui acrescentar. Por isso, não tenho qualquer prurido em estar a falar-te das nossas experiências. Aliás, os nossos cozinheiros são todos homens, e muito homens! Por enquanto, que eu saiba, ainda não há mulheres a trabalhar nas forças armadas. E é pena! Talvez esta vida fosse mais agradável! Estou até a lembrar-me do elemento feminino que o meu pessoal trouxe para o destacamento por alturas do Natal e que eu não tive a coragem de recambiar imediatamente para a sanzala. A presença dessa mulher no destacamento foi o suficiente para tornar o ambiente muito mais humano. Lá chegará o tempo em que as mulheres se poderão alistar nas forças armadas. Creio que até já há um país onde as mulheres se podem alistar. Mas não me lembro agora qual.

Deixemos estas ideias tolas. São agradáveis, mas não nos vale de nada estar para aqui a sonhar. Voltemos a pôr os pés na terra argilosa do destacamento.

Estávamos a falar de quê? De culinária, não era? Pois não nos temos coibido de efectuar experiências deste género. E sem qualquer trauma psicológico! Há um ditado que diz: «Em tempo de guerra não se limpam armas». Ora este ditado não passa da coisa mais tola, mais estúpida, que se possa imaginar! Isto é precisamente o contrário! É precisamente em tempo de guerra que as armas mais precisam de ser limpas, para que não nos deixem ficar mal nos momentos de aperto com o inimigo. Mas a que propósito vem para aqui o provérbio? O que é que ele tem a ver com a culinária? Tem, e muito! Vem isto a propósito, e muito bem! Precisamente porque estamos em tempo de guerra é que as convenções sociais são a coisinha mais estúpida que o homem inventou. Precisamente porque estamos em guerra, é que elas deixam de ter interesse! É nos momentos de aflição que verificamos que certas convenções não deixam de ser um autêntico disparate. Por que razão a cozinha há-de ser desprestigiante para o homem? Por que razão há-de ser apenas para as mulheres e não também para os homens? Será que um homem fica menos homem por se dedicar à culinária? E será que uma mulher deixará de ser mulher, se começar a dedicar-se a actividades habitualmente desenvolvidas pelo homem? E voltamos ao assunto de há pouco! Se tivéssemos também mulheres no exército português, a nossa missão aqui não passava a ser pior desenvolvida. Se calhar, até melhoraria bastante e talvez não nos custasse tanto estarmos para aqui desterrados e longe de casa. E as mulheres na tropa não ficariam, de certeza, atrás dos homens em bravura e eficácia. Não te lembras dos exemplos concretos da nossa História? Quem é que terá matado mais castelhanos em 1385? Terão sido os soldados de Nuno Álvares Pereira, ou a célebre padeira de Aljubarrota?

Por onde a nossa conversa já vai, caríssima prima. Por este andar, parece-me que vais receber uma carta que te irá dar longas horas de prazer de leitura. Espero eu! Espero que a sua leitura te vá dar tanto prazer quanto o que me está agora a dar conversar contigo!

Mudemos de assunto, depois de te voltar a recordar que não te esqueças das receitas fáceis. Mudemos de assunto.

Não sei se já te disse que comprei há dias um rádio de categoria, para me ajudar a passar o tempo. Com ele, consigo ouvir as notícias e a música de todo o mundo. Notícias em português de vários países e também noutras línguas, que compreendo perfeitamente: inglês, francês, espanhol e italiano. E músicas! Músicas para todos os gostos. Músicas modernas, actuais, e, por vezes, até música aos gargarejos, de emissoras de países islâmicos.

De fabrico japonês, o aparelho custou-me quase a totalidade do vencimento de um mês. Mas vale o dinheiro que custou. O dinheiro fez-se para nos servir, quando é preciso, e não para o servirmos e sermos escravos dele. Ou não será verdade?

E com esta novidade te vou deixar. As pilhas da esferográfica começam a ficar sem energia... E tenho receio também de estar a abusar exageradamente da tua paciência em me aturares. Vou terminar por hoje.

Beijos do teu primo, que muito te estima, e um grande abraço para o resto da família.»

 

 

Com a adição integral da carta para a minha prima Manuela, creio que é altura de me despedir dos pais. Possivelmente, só voltarei a escrever-vos no próximo mês. A esta hora da noite, de madrugada, já é segunda-feira. Já estamos no dia 26 de Fevereiro. Como este mês só tem vinte e oito dias, provavelmente só voltarei a estar convosco no próximo mês, possivelmente já instalado na vila de Quimbele.

Um grande abraço para os pais e cumprimentos aos vizinhos e amigos.

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