Faróis nocturnos e preâmbulo epistolar

Passa agora pouco das dez da noite. Acabo de fazer uma ronda ao destacamento com o Vieira e de lhe emprestar o aparelho de rádio. Depois de um fim de tarde tempestuoso, pôs-se uma noite com um céu límpido, magnificamente estrelado, que nos permite ver a quilómetros de distância na escuridão. Na extremidade do destacamento, do posto da sentinela junto à pista de aviação, distinguem-se perfeitamente as luzes de iluminação pública de Quimbele, apesar da grande distância que nos separa. Há uma semana atrás, isto não era possível. Era lua cheia. E quando, lá em cima, a Lua está plenamente redonda e brilhante, cá em baixo, vê-se tudo perfeitamente, como se a paisagem estivesse iluminada por uma lâmpada florescente de baixa potência. Com a Lua a minguar, já meio ratada, arqueada como uma xávega quase encoberta pela crista de uma onda, e ainda baixa no horizonte, as luzes das estrelas não conseguem ser ofuscadas. Enquanto a Lua não nos ilumina, ficam mais brilhantes, mais destacadas no escuro do infinito. E também as luzes distantes de Quimbele se tornam mais visíveis.

Gostei do passeio motivado pela ronda. Os faróis luminosos do infinito deram-me inspiração e fizeram-me reflectir, por momentos, na imensidade de planetas que deverão gravitar à sua volta, tal como a Terra à volta do Sol. Será que estamos mesmo sozinhos, perdidos no meio do espaço infinito de escuridão? Não creio. Quando Deus criou a vida, deve tê-lo feito em geral. Não se deve ter limitado a esta bola redonda, a esta azulada nave espacial em que viajamos a uma velocidade prodigiosa à volta do Sol. Qualquer coisa, que não sei explicar, me diz que não estamos sós. E não digo isto devido às duas experiências estranhas por que já passei: em Mafra, durante um patrulhamento nocturno, e há menos tempo, já aqui no meio da selva. E não me refiro ao satélite artificial que costumo ver à noite. Este distingue-se bem. Vejo-o passar frequentemente, a horas regulares, quando as noites estão transparentes como hoje. Distingue-se perfeitamente das estrelas pelo brilho fixo e deslocação rápida.

O passeio nocturno pelo destacamento inspirou-me, apesar do arrefecimento elevado da noite. Está a fazer-me divagar e afastar do essencial. Voltemos à Terra e ao registo dos factos.

No dia 22 deste mês, recebi uma carta em português macarrónico a dizer-me que o povo de Nguimbe tinha sido atacado às cinco da manhã por quarenta a cinquenta turras e que tinham feito vários prisioneiros. Durante todo o dia, procurei contactar os destacamentos pela rádio e desloquei-me a várias sanzalas. Ninguém sabia de nada e tão pouco tinham ouvido, durante a noite, barulho de detonações. Acabei por concluir que se tratou de um falso alarme, motivado possivelmente pelo facto de os milícias terem ido à caça, nessa noite, como acabei por descobrir, apesar de terem procurado encobrir o facto com receio que efectuasse o controlo das munições. Numa sanzala, devem ter ouvido os disparos, o que lhes disparou certamente a imaginação, originando a carta que recebi.

Outro dos tópicos registados é o da rotação do meu pessoal. Mas creio que já não tem qualquer interesse neste momento. Se leram toda a colecção de aerogramas, devem ter prestado atenção às referências feitas a esta alteração nas minhas rotinas diárias. Assim sendo, resta-me a entrada imediata nas respostas à correspondência recebida. E tenho o trabalho facilitado. Como tenho aqui os duplicados a químico, vou-me limitar a juntá-los à minha colecção. Aqui vão eles, tal e qual como seguiram no original, para a minha prima, no dia vinte e dois deste mês.

Antes de passar à transcrição, acrescento previamente uma passagem caricata ocorrida a propósito da carta para a Manuela.

Quando estava entretido a reler a carta recebida e a preparar-me para lhe responder, o Rodrigues perguntou-me de quem era:

— É carta da namorada, alferes? Ou é dos seus pais?

— Nem uma coisa, nem outra! — respondi-lhe.

— Então de quem é?

— De uma prima minha, que me escreve frequentemente.

— Não me diga que namora com uma prima...

— E se namorasse? Não era mal nenhum! Mas não namoro. É quase como se fosse minha irmã.

— Não me diga que é a sua madrinha de guerra...

— Madrinha de guerra? Precisamos de madrinha para virmos para a guerra, Rodrigues?

— Não. Mas é costume. Ou alferes não sabe que é costume a malta, quando vem para cá e não tem namorada, arranjar uma miúda com quem se corresponder assiduamente? São as madrinhas de guerra.

— Já ouvi falar disso, mas não uso tal costume. As minhas madrinhas são os meus pais, os familiares e os amigos, com quem me correspondo e que me dão notícias regulares de casa e me ajudam a vencer o isolamento.

— Não se zangue por causa disto, alferes. Só perguntei por perguntar. Como é costume, pensei que o alferes...

— Pensou mal! Isso está bem para os soldados. Um oficial tem preocupações e responsabilidades que lhe bastam para ocupar o tempo e lhe tirar horas de sono.

— Está bem, alferes. Não bata mais no ceguinho. Só perguntei por perguntar. Não precisa de me dar um sermão.

— Não estou a dar sermão nenhum, Rodrigues. Muito menos a si, que o considero o meu melhor amigo. Ou não é?

— Claro que sou, alferes.

 

Cortemos o diálogo a propósito desta carta e passemos à sua transcrição.

 

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