Evacuação e encontro com Toni de Matos

Na segunda-feira, dia 19, regressei ao Alto Zaza logo depois do almoço. Vieram comigo o alferes que me vai substituir e mais dez homens. E iniciou-se uma nova semana, em que, às rotinas diárias e fase final do reforço da vedação do quartel, se vieram juntar a sobreposição do pessoal a substituir e mais alguns problemas, como registei no sumário.

Se ainda se recordam do que leram quase no início da carta anterior, estão quatro rubricas por abordar. Vamos lá ver se ainda tenho tempo de as desenvolver antes do jantar e, sobretudo, se conseguirei concentrar-me no trabalho. Porquê esta dúvida acerca da concentração? A causa da dificuldade em concentrar-me está no barulho que me martela os ouvidos. Além da conversa dos furriéis com o alferes, na sala ao lado, tenho a chuva a cantar-me furiosamente por cima da cabeça. De vez em quando, somos sacudidos pelo barulho estrondoso das descargas de Zeus ou de Júpiter, como preferirem. Tenho de fazer um enorme esforço para me abstrair da barulheira envolvente. Para me ajudar a concentrar no problema, releio o duplicado a químico do aerograma onde está o sumário: «Novo salvamento, compensado com um encontro inesperado com Toni de Matos». É este o próximo tópico a desenvolver.

Em relação ao salvamento, não vou necessitar de gastar tanta tinta como fiz com a situação anterior. O caso não teve nem a gravidade, nem o impacto da primeira vez. Resume-se em poucas palavras.

Na terça-feira, já lá vão cinco dias, pouco depois do almoço, trouxeram-me para o destacamento um nativo que ardia em febre. Pelos sintomas, diagnosticámos-lhe paludismo. Se fosse militar, ficaria aqui no destacamento. O caso seria acompanhado pelo nosso enfermeiro. Já cá temos tido outras situações idênticas e temos conseguido dar conta do recado. Como era civil, a solução foi metê-lo numa viatura e levá-lo para o hospital de Quimbele. Foi isto o que fiz. Escolhi uma secção, enfiei o camuflado, agarrei na capa impermeável, para evitar voltar a ficar encharcado como da outra vez, esticámos o doente sobre a caixa, entre o banco e os pés do pessoal, para não cair, e arrancámos para o hospital. Foi uma atitude bem tomada, não pelo doente, que deixei entregue aos cuidados do nosso Esculápio, mas pela feliz coincidência com a ida do cantor e actor Toni de Matos a Quimbele.

Não sei se ainda se lembram de Toni de Matos. O nome não me era desconhecido, quando o médico me falou dele, na altura em que lhe entreguei o doente.

— Fizeste bem em trazer-me o nativo, Ulisses. Não podias ter vindo em melhor altura.

— Mas porquê?

— Temos hoje uma sessão de cinema inesperada, com a intervenção de Toni de Matos, que deves conhecer da Metrópole.

— O nome não me é estranho. Mas não sei quem é.

— É um artista da canção. Já o deves ter ouvido na rádio.

— Creio que sim. Aliás, lembro-me vagamente do nome. Lembro-me dele dos meus tempos de miúdo. Curiosamente, associo-o a outros nomes da minha infância: Francisco José, Rui de Mascarenhas, Luís Piçarra, Maria Clara, Maria de Lurdes Resende... Devem ser todos da mesma altura.

— Talvez! Vejo que te lembras de muitos nomes.

— É natural. No meu tempo de miúdo, na falta de televisão, ouvíamos com muita frequência a rádio. Lembro-me bem destes nomes, porque algumas canções eram cantadas pela minha mãe. Lembro-me com saudades desse tempo! Eu a brincar e a minha mãe na cozinha, a preparar as refeições e a encher o ar de cantigas com uma voz bem timbrada e agradável. Conhecia muitas letras e interpretava-as com uma voz magnífica e um sentimento extraordinário. Até parece que ainda lhe tenho a voz nos ouvidos. Há músicas que me ficaram para sempre gravadas na memória: “Figueira da Foz”, “Quem passa por Alcobaça”... e muitas outras. É verdade, costumava também cantar alguns fados de Amália Rodrigues...

— Por onde vai a tua imaginação.

— Não é imaginação, é a recordação de velhos tempos de infância. E eu não lhe ficava atrás. Quando era garoto, tinha também uma boa voz para as canções. Na altura, surgiram duas que eu cantava imitando perfeitamente as intérpretes: “Vocês sabem lá”, de Maria de Fátima Bravo, e uma que fez sucesso em Espinho e passava muitas vezes na rádio. Era cantada por uma moça desta vila. Conhecia-a bem. A mãe tinha uma banca no mercado, perto da rua 23. Éramos clientes dela. E a mãe sentia uma vaidade enorme na filha. Quando lá ia às compras com a minha mãe, não se falava doutra coisa. E com razão! A moça tinha boa voz e a música entrava-nos nos ouvidos com uma facilidade espantosa. Tenho o nome dela debaixo da língua e não me quer sair. Na letra, a moça dizia que tomava banhos de Lua, mas o resto não me vem agora à lembrança. Era em ritmo de rock and roll. Dancei muitas vezes em bailaricos ao som desta música. Tinha-a num gravador Grundig de bobinas de 18 centímetros, que levávamos para os bailes...

— Não estou a ver qual seja.

— Era muito conhecida. Mas não importa. Não me consigo lembrar. Mudemos de assunto. O que é que Toni de Matos está a fazer em Quimbele?

— Anda em tournée por Angola. O tipo tornou-se realizador de cinema. Vem cá impingir-nos um filme em que é, creio eu, o actor principal.

— Se calhar, mais uma xaropada à portuguesa. Se for como a maioria dos nossos filmes actuais, não deve valer um chavo!

— Talvez não! Pode ser que se aproveite.

— Geralmente, não prestam. Tirando os filmes antigos, com Vasco Santana e António Silva, os actuais não valem nada. O cinema português é como o vinho do Porto. Só fica bom depois de passarem uns anos.

— Estás a ser má língua, Ulisses. Um exagerado.

— É verdade, Graça Marques. Só são bons depois de envelhecidos. Queres um exemplo?

— Diz lá.

— Aqui há anos, no meu tempo de liceu, assisti à apresentação de dois filmes nacionais: O Tarzan do Quinto Esquerdo, passado em Lisboa, e A Costureirinha da Sé, passado no Porto. Não gostei. Foi um frete. Dinheiro e tempo mal gastos. Mais tarde, passados uns anos, já estudante em Coimbra, vi-os na televisão. E, por incrível que pareça, conseguiram agradar-me. Envelheceram como o vinho do Porto. Adquiriram a pâtine do tempo e ficaram aceitáveis.

— Estás a sair-me um lírico, com essa tua teoria do vinho do Porto...

— É verdade. Vê lá se há hoje alguém que não se delicie com os filmes antigos, como O Costa do Castelo, O Pai Tirano, O Pátio das Cantigas, e tantos outros!

— Esses são mesmo bons. E cheios de humor, Ulisses. Não foi por terem envelhecido. São sempre actuais e cheios de humor.

— Isso é verdade. Basta-lhes terem os actores que tiveram, para nos fazerem perder a rir. Nunca me canso de rever esses filmes, quando os repetem na televisão. Lembro-me até das horas de prazer que me dava ouvir o António Silva, com a Elvira Velez, creio eu, num programa da rádio patrocinado por umas massas alimentícias. Era uma delícia. Era um programa que em miúdo nunca perdia. Era esse e outro, aos sábados, ao fim da tarde, em que a Emissora Nacional apresentava histórias que deliciavam a criançada da época. Na altura ainda não tínhamos a televisão. Era a rádio que alimentava a nossa imaginação.

— Chega de conversa, Ulisses. Gosto de falar contigo, mas estou a esquecer-me dos doentes.

— Tens toda a razão! Estou também a ser chato! Está ali todo o pessoal à minha espera, com vontade de ir arejar o dinheiro nuns finos, e eu aqui a empatar tempo na conversa. Então até logo, à hora do jantar.

Pois é verdade! Depois do jantar, tivemos uma sessão imprevista de cinema com Toni de Matos. Na primeira parte, o cantor, realizador e actor, interpretou algumas canções, fez a apresentação do filme e permitiu que se estabelecesse um breve diálogo entre ele e os espectadores, que enchiam completamente a sala de cinema.

Como não me lembrava quase nada da pessoa que tinha na frente, levantei o braço e fiz-lhe um pedido:

— Se fosse possível, agradecia que nos fizesse uma breve apresentação, não do filme, que vamos poder ver daqui a pouco, mas de si mesmo. Diga-nos quando e onde nasceu e quais as etapas que considera mais importantes na sua carreira.

Em poucas palavras, satisfez a minha curiosidade. E acrescentou que não era a primeira vez que efectuava uma tournée em Angola. Que é frequente este território ser visitado por artistas da Metrópole, que vêm actuar nas cidades e outras localidades com melhores acessos.

Em Quimbele, foi a primeira vez que um cantor da metrópole aqui veio cantar. E isto ficou a dever-se não só ao facto desta povoação estar actualmente ligada a Luanda por uma excelente estrada alcatroada, mas sobretudo por ter sido inaugurada há poucos dias a sala de cinema. Neste caso específico, sem a sala de cinema onde apresentar o filme, nunca cá teria vindo visitar-nos e entreter-nos durante um serão.

Depois do espectáculo, os oficiais que assistiram à sessão foram convidados para um curto serão em casa de um dos donos do cinema, em homenagem ao nosso visitante. Além de nós, estiveram também as restantes autoridades locais e alguns civis, amigos dos sócios que tiveram a feliz ideia de montar com pleno sucesso a sala de cinema.

Gostei dos momentos de convívio e de conversar um pouco mais em particular com o cantor, cuja idade deve ser bastante afastada da minha. Mas continua a cantar com uma voz agradável e uma maneira muito característica.

Quanto ao filme? Esta é a parte mais aborrecida do meu relato. Gostaria de aqui poder fazer uma crítica favorável. Mas não o posso fazer. Se o fizesse, seria hipócrita e falseador da realidade. Ainda pensei não me referir ao filme Derrapagem. Seria uma atitude bastante cómoda da minha parte, mas em total desacordo com a promessa que vos fiz durante a viagem para Angola. Logo, não me resta outra solução, senão registar o que sinto. À semelhança de muitos filmes portugueses actuais, também este é uma autêntica derrapagem para a mediocridade, sobretudo pela grande pobreza em muitos aspectos: má sonorização, precários recursos técnicos, tema excessivamente piegas e corriqueiro, de reduzido interesse... E não digo mais! Já falei demasiado da ida a Quimbele por causa do doente...

Faltam-me ainda dois tópicos, antes de entrar na resposta à correspondência. Faltam-me os tópicos e o tempo. Está na hora do jantar e tenho outras coisas para fazer.

Agora reparo que não há barulho. Já não chove. Concentrei-me de tal modo na escrita, que me alheei do ruído envolvente. Logo à noite, sentado à secretária ou na cama, se o alferes que ultimamente me faz companhia mo permitir, retomo a conversa. Talvez ainda esta noite consiga acabar esta colecção de aerogramas. Empresto o rádio e os auriculares ao alferes Vieira, para ele se entreter, se não quiser ficar na conversa com os furriéis, e volto ao convívio convosco. Até logo!

 

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