Angústia pela manhã

No sumário transcrito na segunda folha dos aerogramas, registei: «De coração nas mãos para salvar um indígena». De facto, neste dia, passámos uns momentos de angústia, numa luta desesperada e incessante contra a morte, que teimou em rondar o destacamento. E não fosse este acontecimento imprevisto, o dia 17 de Fevereiro teria sido o começo de um fim de semana magnífico. Nesta manhã de sábado, o sol ergueu-se num céu azul sem nuvens, azul como safiras, se é que as safiras são mesmo azuis. A comparação agrada-me e corresponde perfeitamente à manhã esplendorosa deste dia; mas estou agora numa grande dúvida. Longe da civilização e sem meios de informação a que recorrer, estou mesmo numa situação de conflito interior, cheio de dúvidas, não por causa do que vou ter de vos relatar, mas por causa das safiras. De que cor são as safiras? Estou aqui a tentar rever mentalmente os meus conhecimentos de mineralogia. Recordo-me, quase na íntegra, de todos os elementos da escala de Moss, que culmina com o diamante, o mineral mais duro, mas não me lembro de termos estudado, no meu tempo do liceu, as pedras preciosas. Vêm-me à memória vários nomes de pedras preciosas, associados às respectivas cores: os rubis, vermelhos; as esmeraldas, esverdeadas; os topázios, amarelos; as granadas, como os grãos das romãs... Mas surgem-me dúvidas quanto às safiras, embora prevaleça a tendência inicial, que me levou a associá-las ao azul do céu. Acabei há pouco de perguntar aos furriéis de que cor são as safiras, mas fiquei exactamente na mesma. Um deles perguntou-me mesmo o que era uma safira! Aqui fica um problema que espero não me há-de esquecer, quando for a uma cidade que tenha uma boa biblioteca. Em Quimbele e Sanza Pombo, seguramente, não devo encontrar onde resolver este importantíssimo problema da cor da safira! Problema tão importante que, seguramente, não vai conseguir tirar-me o sono!

Não importa se a safira é ou não azul, tal como me saiu na comparação de há pouco. Azul ou não, a verdade é que a comparação agrada-me e corresponde exactamente àquilo que sinto. Tão exactamente, que tudo me leva a crer que a safira é mesmo azul. Se não o fosse, seguramente a comparação não me teria surgido com tanta espontaneidade.

Eram oito da manhã. Uma manhã de sol brilhante e céu azul sem nuvens, azul como safiras. Tudo corria normalmente, fazendo-nos prever um fim de semana descansados e sem problemas. Só que o pior estava para acontecer pouco depois. Estava eu em amena conversa com os furriéis, já com o pequeno-almoço tomado e a ganhar vontade para as actividades rotineiras, quando me entrou no edifício um soldado com ar aflito:

— Meu alferes, está um grupo de nativos à entrada do destacamento. Trazem um homem gravemente ferido. Pedem licença para entrar.

— Manda-os entrar. Eles que se dirijam para a enfermaria, que eu vou já para lá.

Enfiei apressadamente uma camisa de manga curta e saí ainda a tempo de ver os homens passar o portão da entrada e aproximarem-se da enfermaria. Quatro nativos, certamente de alguma sanzala das redondezas, traziam um homem ferido, numa espécie de cobertor ou manta. Ainda novo, o ferido apresentava o lado esquerdo do corpo todo ensanguentado e a mão desse lado quase decepada pela lâmina de uma catana. Bati apressadamente na porta da enfermaria, na esperança que o enfermeiro já tivesse vindo do refeitório.

— Alves, depressa, abre a porta e traz o estojo dos primeiros socorros. Temos aqui um caso bicudo.

Olhei para o homem deitado na maca improvisada pelos nativos. Tremia como varas verdes, dando a impressão que a mão se ia desprender do antebraço.

— Isto está sério, alferes. — disse o enfermeiro, assim que viu o doente.— Não sei se consigo dar conta da situação. O alferes não quer ocupar-se do problema?

— Eu?! Eu não sou enfermeiro. Tu é que de serralheiro mecânico te transformaste em enfermeiro. Foste tu que tiraste a especialidade, não fui eu. Aplica os conhecimentos que aprendeste. Quando muito, posso ajudar-te no que for capaz.

O enfermeiro procurou fazer o tratamento adequado, ajudado por mim e por outros soldados que vieram ver o que se passava. Depois de tudo cuidadosamente limpo e desinfectado, o enfermeiro enfiou a linha na agulha e começou a procurar unir a enorme ferida, cuja carne contrastava com o branco do osso, perfeitamente visível. Trabalho em vão! A enorme fenda era difícil de fechar. A carne estava apenas segura pelo osso. Os pontos rasgavam a carne e o golpe parecia ficar cada vez mais largo.

— Alferes, os pontos não aguentam. Não conseguimos resolver a situação.

— Tenta. É preciso insistir e não esmorecer. Temos de fazer alguma coisa pelo homem.

Subitamente, depois de novas tentativas frustradas do enfermeiro, uma artéria, que passa junto à base do polegar, rebentou, subindo como um elástico rebentado vários centímetros para o antebraço. Em menos de cinco minutos, formara-se um lago onde deveria haver mais de um litro de sangue. Aflito, com este rebentamento imprevisto, o enfermeiro deu-lhe injecções com hemostáticos e olhou para mim, com olhar preocupado, procurando o meu apoio, enquanto o sangue continuava a correr.

— Rápido, Alves, vai lá dentro buscar a borracha que costumas utilizar quando nos dás injecções directamente nas veias. Precisamos de lhe atar fortemente o braço com a borracha, antes que se esvaia todo em sangue. Mexe-te. Um torniquete à volta do braço deve estancar-lhe o sangue. E depressa, antes que nos morra nas mãos.

Enquanto o enfermeiro foi lá dentro buscar a borracha, apertei fortemente o braço do homem com as duas mãos, procurando impedir que o sangue continuasse a jorrar. E gritei para dentro:

— Depressa, Alves. Traz a borracha. Não posso aqui ficar eternamente a apertar-lhe o braço.

— Não encontro a borracha, alferes.

— Procura na mochila. Deves tê-la ainda na mochila, se ainda não arrumaste a tralha, quando ontem chegaste da operação. Despacha-te.

— Está no fundo da mochila.

— Anda lá depressa. Não percas mais tempo.

Segundos depois, com o torniquete de borracha fortemente apertado, tirei as mãos do braço do homem, com uma sensação de dormência na ponta dos dedos. Tinha apertado com tal força, que os meus dedos deixaram, por momentos, umas marcas esbranquiçadas na pele escura do homem. O sangue estancou completamente, mas não sem conseguirmos evitar que se tivessem perdido alguns litros. O sinistrado começou a delirar e a tremer descontroladamente. O pulso começou a sentir-se cada vez com mais dificuldade e apercebemo-nos que o corpo do homem começava a arrefecer.

— Alves, o homem está a apagar-se. Deve ter perdido demasiado sangue. Temos de fazer qualquer coisa.

— O quê, alferes?

— Soro. Vai buscar garrafas de soro. Temos de lhe dar soro e compensar o sangue que perdeu. Temos que o fazer arrebitar e evacuar urgentemente para um hospital.

— Neste estado não aguenta os balanços da picada, alferes.

— Põe-no a soro. Talvez resulte. Entretanto, vou ligar para a Companhia.

Saí da entrada da enfermaria e fui rapidamente ao posto de transmissões.

— Liga depressa para a Companhia.

— Não está na hora, alferes.

— Liga. Não interessa a hora. É urgente. Está quase na hora das transmissões. Pode ser que tenhamos a sorte de apanhá-los já no ar, a transmitir alguma mensagem.

— Estamos com sorte, alferes.

— Pede para chamarem o capitão. Preciso de falar com ele. Diz que é muito urgente.

Passada uma eternidade, ouço a voz do capitão:

— O que é que se passa?

— Necessitamos da evacuação urgente de um homem com a mão quase decepada.

— É militar?

— Não. É um nativo da região.

— Não é possível. Evacuações de helicóptero só são possíveis para pessoal militar. E mesmo assim necessitam de ser muito urgentes.

— Mais urgente do que isto não é possível. É uma situação urgentíssima. O homem está quase a passar para o outro lado.

— Pior ainda! Mesmo que fosse militar, só daqui por umas horas aí estaria um helicóptero. É trazê-lo num unimogue, que é muito mais rápido.

— Morre no caminho. Não deve aguentar os balanços da picada.

— Não te posso fazer mais nada. Tens de te desenrascar da melhor maneira possível.

— Pronto. Termino. Vou ver o que posso fazer. O médico que se vá preparando para o pior. Vou ver o que posso fazer.

Voltei para junto do homem.

— Então, como é que ele está?

— Na mesma, alferes. Ainda é cedo para sabermos se o soro vai adiantar. Conseguiu a evacuação?

— Não. Temos de o levar num unimogue.

— Não aguenta a viagem, alferes. Ainda se tivéssemos um Landrover, talvez se safasse melhor.

— Deste-me uma boa ideia, Alves.

— Dei?

— Claro que sim. Temos o Landrover do administrador. Vamos pedir-lhe ajuda. A esta hora, a meio da manhã, já cá deve estar. Um de vós — disse, voltando-me para um dos soldados que assistia à prestação dos socorros — vá depressa chamar o administrador. Digam-lhe que venha na viatura, que é um caso muito urgente.

Minutos depois, tínhamos no destacamento o administrador.

— Então, alferes, o que é que se passa?

— Isto que está aqui a ver. Este nativo apareceu-nos aqui com a mão esquerda quase decepada. Está entre a vida e a morte. Precisamos de o levar com cuidado para o hospital de Quimbele.

— Alferes — disse o enfermeiro —, é melhor aguardarmos que o soro comece a fazer efeito. Daqui por uma ou duas horas, com duas garrafas de soro, talvez a situação melhore e consigamos que aguente os solavancos da picada. Se o levamos agora, morre a meio do caminho.

— Daqui a pouco são horas do almoço. Quanto tempo leva cada garrafa de soro?

— Cerca de uma hora, alferes.

— Então, pelos meus cálculos, se lhe conseguirmos dar duas garrafas e ele aguentar, lá para as duas da tarde devemos poder arrancar. O homem vai atrás, estendido sobre cobertores, na caixa do Landrover. Tu acompanha-lo. Vai com uma terceira garrafa. Nós seguimos atrás, no unimogue. Se tudo correr bem, às quatro horas temos o homem no hospital. Vou mandar avisar o médico para contar connosco a partir dessa hora.

O resto da manhã foi passada entre o edifício do comando e a enfermaria. De cinco em cinco minutos, ia ver como estava o homem.

— Ó alferes, não precisa estar a vir cá sempre. Eu fico aqui ao lado do homem. O alferes não lhe pode fazer mais nada. Tudo o que temos a fazer é esperar e ver se ele recupera. Para já, deixou de tremer e já se lhe sente o pulso. O soro parece estar a fazer efeito. Se assim continuar, vamos mesmo poder levá-lo sem problemas.

— E durante o almoço? Como é?

— O alferes fica aqui no meu lugar ou, então, pede para me trazerem aqui o almoço. Nem preciso sair daqui, se o alferes der ordens para me trazerem o almoço.

— Boa ideia. É isso mesmo. Vou dar ordens para te trazerem aqui o almoço. E vocês, — disse, voltando-me para os quatro homens que tinham trazido o doente — se quiserem, podem almoçar com o pessoal do destacamento. Vão para o refeitório com estes soldados. Almoçam aqui e, de tarde, se não quiserem deixar o vosso companheiro, vão connosco no unimogue para Quimbele.

Eram quase duas horas da tarde quando seguimos com o doente para Quimbele. As garrafas de soro tinham sido uma excelente ideia. O homem recuperou e a situação ficou estável, permitindo-lhe aguentar os solavancos. Com todo o cuidado, deitámo-lo sobre várias camadas de cobertores, na caixa da viatura do administrador, seguindo à nossa frente a uma velocidade razoável. Sensivelmente a meio do percurso, tivemos uma situação imprevista. Uma violenta trovoada, seguida de uma carga de água não menos amigável, veio encharcar-nos completamente e dificultar a progressão. Numa zona de subida, no meio de mata cerrada, deparámos com uma árvore atravessada no caminho. Tinha caído pouco tempo antes de ali passarmos. Pelo aspecto, deduzimos imediatamente que tinha sido atingida por um raio. O tronco estava fendido de alto a baixo, como se uma gigantesca machada, na mesma proporção do tamanho do tronco, lhe tivesse sido violentamente descarregada. Tivemos que arrastar o tronco à força de braços para o lado da picada, depois de lhe termos cortado, à machadada, os ramos laterais que nos impediam de a movermos. Tivemos uma paragem e esforço extra não previsto durante cerca de meia hora, sempre debaixo de chuva fortíssima.

Chegámos ao hospital de Quimbele pior do que se tivéssemos mergulhado vestidos nas águas de um rio. Além da chuva que nos ensopava, como tivemos de empurrar as viaturas numa zona de subida, onde a argila da picada fazia deslizar as rodas sem saírem do mesmo sítio, estávamos com os camuflados e o corpo pintados de vermelho, tal era a camada de barro que nos cobria. Para protegermos o doente, improvisámos uma cobertura sobre a caixa do Landrover com duas capas impermeáveis do camuflado, que dois soldados tiveram a feliz ideia de trazer com eles. Tirando estes azares pouco agradáveis e trabalhosos, a viagem decorreu sem avarias. O médico já estava à nossa espera com tudo preparado. E os nossos trabalhos acabaram por ser devidamente recompensados, porque o homem conseguiu safar-se!

 

Já acabou o relato deste fim de semana atribulado? Ainda não! Tenho mais factos para vos relatar. Mas vou ter de dar por finda esta colecção de aerogramas. Tenho neste momento um grupo que vai para Quimbele. Vão com ele os sacos do correio. Logo, como ainda tenho muito que contar, mando-vos já esta colecção e fico com o duplicado a químico. Amanhã retomo a escrita no mesmo ponto em que fiquei. Deste modo, evito que estejam mais tempo sem receberem correspondência.

Um beijo. Até amanhã, se não me surgirem situações imprevistas.

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