Pesagem de comportamentos

Estou agora a reflectir sobre tudo quanto já vos escrevi nesta série de aerogramas. Isto hoje mais parece uma catarse que um relato de acontecimentos. Estes momentos de convívio convosco estão a servir-me como uma forma de alívio das pressões resultantes do facto de termos de comandar homens. É tarefa nada fácil e que exige uma certa frieza e ausência de afeições pelos outros. Para esta missão ser menos dolorosa, teria de me envolver com uma capa de frieza e reagir apenas racionalmente, evitando criar laços de afectividade com aqueles que me rodeiam. Teria de ser implacável e cego como a Justiça. Mas isto não quadra com a minha sensibilidade. E creio que um juiz implacável e insensível também não é a solução ideal. No fundo, somos todos da mesma massa. Somos todos humanos e sujeitos às imperfeições com que fomos criados.

E já que estou numa maré de desabafos de todas as tensões provocadas pela chefia de homens imperfeitos, aqui vão mais algumas achegas.

Já está, creio eu, suficientemente demonstrado que mandei para a mata o pior dos meus elementos. Não posso dizer, usando a analogia da comida, que mandei o que menos gosto, porque, no fundo, não se trata de comida, mas sim de seres humanos, de seres meus semelhantes, por quem não posso deixar de sentir, apesar de tudo, uma certa simpatia. Somos todos colegas de infortúnio numa situação que nos foi imposta e que não agrada a ninguém. Certamente, na vida civil, fora deste contexto, até poderíamos dar-nos todos muitíssimo bem e sermos grandes amigos.

Se a demonstração relativamente ao Teodoro está claramente feita, o mesmo não posso dizer em relação ao Ramalho. Já dele revelei alguma coisa. Mas não disse tudo. E agora, pesando a frio na balança os dois elementos, não sei bem para que lado penderia o fiel. Decidam vocês aí, depois de vos falar um pouco mais acerca do furriel Ramalho.

Ramalho e Teodoro são dois elementos que formam em conjunto um bom ramalhete. Ligam muito bem um com o outro! São aliás muito amigos e amigos de fazer caixinha. Suas excelências parecem quase feitos da mesma massa! Passam a vida juntos e em patuscadas, à noite, no depósito de géneros, aproveitando sempre a altura em que eu ou o furriel Rodrigues estamos ausentes ou já deitados. Estão eles convencidos que eu ando a leste de tudo. Esquecem-se que ando sempre atento ao que se passa à minha volta e que há sempre quem dê com a língua nos dentes. Mas como não é isto que nos vai levar à falência, vou fechando os olhos como se de nada soubesse. Compreendo a posição deles. Não tendo como eu este magnífico recurso de ocupar o tempo e de me sentir na vossa companhia, em amena conversa, o pessoal tem de arranjar válvulas de escape e formas de quebrar a monotonia das longas horas, que parecem não mais passar, que parecem mais compridas que a picada que nos liga à civilização. Sem cinema, sem televisão, sem mulheres e sem lugares agradáveis onde passar os tempos livres, o pessoal procura queimar o tempo da melhor maneira que consegue arranjar. Este é, por isso, um problema praticamente insignificante, que não me preocupa nem perturba em nada a vida do destacamento. Por isso, nem o considero relevante. Todavia, ainda hoje de manhã tive um pequeno contratempo com o Ramalho, que não posso deixar de aqui referir.

Imprevistamente, sem saber qual o motivo, os miúdos de cor que costumam ajudar na cozinha não apareceram à hora do pequeno-almoço, como é habitual. Como o cozinheiro sozinho não pode fazer tudo, tive que procurar resolver este problema inesperado.

— Ramalho, uma vez que os miúdos da sanzala não apareceram, temos de nomear faxinas para a cozinha. Enquanto elaboro rapidamente uma escala de serviço, para o caso dos miúdos continuarem sem aparecer, agradeço que vá formar o pessoal na parada.

O senhor Ramalho, que continuava na cama e nem se levantou para o pequeno-almoço, fez de conta que não ouviu. Foi como se tivesse falado para um burro. Não ligou e nem as orelhas mexeu!

— O Ramalho não ouviu o que eu acabei de lhe dizer? — repeti num tom já meio azedado! — O cozinheiro precisa de começar a preparar o almoço, já cá se veio queixar da falta dos miúdos, e não tem quem o ajude a descascar as batatas.

— Tenho muito tempo! — respondeu o furriel com maus modos.

— Você vai imediatamente formar o pessoal e não discute!

Muito nas calmas, passados quase uns cinco minutos e com um certo custo, o furriel deu a volta à manivela e lá acabou por guindar o corpo da cama. Saiu e, dois segundos depois, voltou a entrar:

— Ainda não tomei o pequeno-almoço. Depois vou lá

— Se ainda não tomou o pequeno-almoço, já o deveria ter feito há muito. O pequeno-almoço para os graduados é as sete e trinta e não às oito da manhã. E se não o tomou, toma-o a seguir.

— Não vou formar o pessoal sem o pequeno-almoço. Tomo-o em dois minutos.

— Ouça lá, você está a querer gozar comigo?

Não disse mais nada. Sua excelência saiu e, passado um bocado, entrou a refilar:

— O pessoal está formado. Meu alferes, eu não sou nenhum escravo!

— Com franqueza! É preciso ter uma grandessíssima lata! Você passa o tempo sem fazer nada, ora esticado na cama, ora a moer-nos os ouvidos com a viola, numa toada enfadonha e irritante, e ainda tem o descaramento de me dizer que não é nenhum escravo?! Se ainda ao menos tocasse alguma coisa de jeito! É preciso é ter um enorme descaramento!

A verdade é que, depois desta edificante conversa, o serviço foi distribuído pelo pessoal. Em menos de um minuto estava a ordem de serviço lida e a ser cumprida e o trabalho da cozinha nos devidos trilhos. Ainda eu estava a acabar de arrumar a papelada na secretária e a preparar-me para me levantar quando ele se sentou a tomar o pequeno-almoço, acabando por passar o resto da manhã esticado na cama, mas sem me moer os ouvidos com a lengalenga da viola.

Como podem ver, tirando este pequeno episódio, o dia de hoje tem decorrido da melhor maneira possível, tendo em conta as condições em que nos encontramos. Devo acrescentar que esta conversa convosco não se processou toda de uma só vez. Foi feita às pinguinhas! Neste preciso instante são já vinte e quarenta. Daqui a pouco termino a conversa e estico-me na cama, a ler um pouco à luz do candeeiro.

 

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