Problemas pré-operacionais

Neste instante, tenho cinco aerogramas repletos de letra miudinha e compacta e o pai já a refilar com o filho: «Este meu rapaz está há meia hora com preâmbulos e nunca mais nos diz o que foi que lhe motivou estes desabafos!»

Tem toda a razão! Ouvi o seu comentário e vou corrigir-me. Vou entrar nos factos concretos. Já vai ficar a saber o que me sucedeu e me fez considerar irónicas as suas palavras.

No passado domingo, autorizei o furriel Rodrigues a ir a Quimbele. E com todo o merecimento! O Rodrigues está sempre pronto para tudo e tem-se revelado um bom camarada.

«Espera aí um pouco!» — estão vocês a dizer-me. Estão a ler as minhas palavras e a interromperem a leitura com reflexões. Como é que pode ser bom camarada, se na altura do ataque à Camuanga se recusou a acompanhar o alferes?

O vosso raciocínio tem uma certa lógica. Mas isso não invalida que seja um bom camarada. O medo é uma reacção normal em todo o ser humano. Não foi ele o único a ter esta reacção. Nenhum dos furriéis teve a coragem de sair do destacamento de madrugada, para me acompanhar com um reduzido número de soldados em socorro da Camuanga. É uma reacção normal da nossa espécie. E, perante o medo, há os que conseguem superá-lo e andar para a frente. Eu próprio não posso dizer que não senti o medo. Se o fizesse, estaria a faltar à verdade e a querer enganar-me a mim mesmo. Senti-o, como certamente todos os que me acompanharam. Mas isso não nos impediu de avançar na mesma para ir socorrer camaradas que nem conhecia, mas que estavam numa situação idêntica à minha, a cumprir uma obrigação imposta pelo Destino. E o ter sentido medo foi até uma sensação positiva, na medida em que nos fez ir com o máximo das cautelas, tendo-nos levado a reduzir ao mínimo as hipóteses de surpresas desagradáveis. Portanto, e pelas razões já sobejamente expostas em aerogramas anteriores, não posso deixar de considerar o Rodrigues como o furriel em quem deposito a maior confiança e amizade. Agradeço, pois, que não voltem a interromper-me com as vossas reflexões, se quiserem que a minha exposição avance com maior rapidez.

Dizia eu que o Rodrigues me tinha pedido para ir a Quimbele, que eu autorizei e que a sua ida à civilização foi mais do que merecida. E não é por me ter ajudado em outras situações difíceis, como foi aquela por que passei, quando tive aquele estúpido acidente no R.I. 15 de Tomar, que considero merecida a ida dele no domingo a Quimbele. Além de já lá não ir há bastante tempo, o Rodrigues tem sido ultimamente o meu mais precioso colaborador nos trabalhos de reforço da vedação do destacamento. Foi pois a Quimbele, na Berliet, levando os mecânicos e o furriel responsável pelo parque auto. E regressou na segunda-feira com duas viaturas, que vieram substituir as que temos avariadas há já uns dias.

— Então como é, Rodrigues? Regressa com duas viaturas pequenas, com dois unimogues, e deixa ficar a Berliet na sede da Companhia?

— O que é que o alferes queria que eu fizesse? Quem manda é o três tiras, não sou eu. O capitão deu ordens para que ficasse a Berliet e me entregassem estes dois unimogues. E deu-me uma mensagem para eu entregar ao alferes.

Li a mensagem e não gostei. Vi logo a causa da troca da Berliet pelos dois unimogues.

«Há fortes suspeitas da presença inimiga a 100 quilómetros do Alto Zaza, na região da Camuanga. Deves preparar imediatamente um grupo de combate e seguir amanhã para a mata, durante quatro dias. Deverás patrulhar toda a zona compreendida entre a Camuanga e o Quitari.»


Como a acção «Espoleta 12» não se concretizou por falta de viaturas, o capitão manteve a ideia e mandou os dois unimogues, para que não voltasse a haver quaisquer desculpas.

Para dar cumprimento às ordens, nomeei duas secções, comandadas por mim e pelo furriel Rodrigues. Para maior segurança e completar o grupo, mandei uma mensagem ao chefe Simão:

 

«Chefe Simão,

Deverá apresentar-se amanhã, com duas secções de GEs, devidamente armadas e comandadas por si, no destacamento do Alto Zaza. À hora da alvorada, deve estar com o seu pessoal em frente ao edifício do comando. Agradeço que arranje também dois carregadores de confiança.»

 

Com todos os furriéis reunidos no edifício do comando, pu-los a par da situação:

— Temos amanhã, para cumprimento das ordens do capitão, uma operação difícil na zona entre a Camuanga e o Quitari. Vão duas secções nossas com duas secções de GEs. Iremos nas viaturas até onde pudermos e o resto do percurso será feito a pé. Será uma acção de quatro dias. Como o furriel Ramalho já cá está e é o mais velho, ficará a comandar o destacamento.

Foi a partir daqui que a situação azedou e surgiram os problemas.

— Como é, alferes, as viaturas vão colocar o grupo à zona e regressam? — perguntou o Ramalho.

— Claro que não. As viaturas não podem regressar sozinhas, só com os condutores. As viaturas terão de ficar com os condutores à nossa espera, na Camuanga. Irão depois, enquadradas por uma secção da Camuanga, recolher-nos ao Quitari. Serão avisados pela rádio.

— Recuso-me a ficar a comandar o destacamento. Não fico sozinho com metade do pessoal e sem viaturas para ir à água.

— Isso não é razão para recusar o comando do destacamento. Já temos estado várias vezes sem viaturas e temos resolvido sempre o problema da água. E vinte homens, com o reforço da vedação quase completo, não correm qualquer perigo.

— Já disse: recuso-me a comandar o destacamento.

— Não pode recusar-se. Tem de cumprir as ordens. Como mais velho dos três furriéis que ficam, é automaticamente o mais graduado e responsável pelo Alto Zaza na falta do alferes.

— Recuso-me a comandar o destacamento sem viaturas e com poucos homens. Só aceito se o alferes assinar um documento em como se responsabiliza por tudo quanto acontecer no destacamento durante a sua ausência.

— O furriel Ramalho deve achar, certamente, que eu sou parvo. Acha que eu alguma vez iria assinar um papel a responsabilizar-me por todas as suas burrices e incompetência durante a minha ausência do destacamento?

A discussão esteve acesa durante um bocado, com os furriéis a dispararem frases inúteis uns contra os outros, porque não conduziam a nenhuma solução. Como os três furriéis não conseguiram convencer o outro de que o alferes estava certo, que seguia os procedimentos normais, que era assim que se fazia na Companhia, que na substituição do capitão era o alferes mais velho que tomava o lugar do comando, resolvi pôr termo à discussão.

— Uma vez que nenhum de vós consegue fazer ver a razão ao Ramalho, a situação resolve-se sem mais problemas. O alferes vai continuar a comandar o destacamento do Alto Zaza durante estes quatro dias. O furriel Rodrigues vai-me substituir no comando do grupo. E para o lugar dele vai o furriel Teodoro. A discussão está terminada e ficam agora aqui comigo. Os restantes podem sair. Eu, o Rodrigues e o Teodoro vamos agora analisar em conjunto a situação, com o mapa da região desdobrado em cima da mesa. Quem não vai pode sair. Agora temos trabalho, apesar de amanhã termos de voltar a analisar a situação, com a ajuda experiente do chefe Simão.

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