Hino e futebol

 

A manhã de domingo foi igualmente movimentada. Logo depois do pequeno-almoço, foi a partida do pessoal rendido. Antes de terem atravessado a saída do destacamento do Alto Zaza, despedi-me daquele pessoal, com quem passei uma noite e que nunca mais voltarei a ver, e do furriel Amândio:

— Tenha um boa viagem e um bom resto de comissão, na sua área. E, quando estiver triste, lembre-se de nós e do ataque dos pirilampos na Camuanga. Que todos os ataques que vierem a ter daqui para a frente sejam iguais e luminosos, como este.

— Adeus, alferes. Pode ter a certeza que me vou sempre lembrar de si e da peripécia da Camuanga. Felicidades também na vossa guerra.

Pouco antes da hora do almoço, ouvimos o ruído de uma viatura dos lados de Quimbele. Pelo som, tinha de ser uma viatura militar. Fomos ver quem era. Em breve, entrava no destacamento um unimogue com pessoal que não era da nossa Companhia. Era malta da C.C.S. E, ao lado do condutor, vi uma cara conhecida.

— O capelão por aqui? O que o traz assim de surpresa ao Alto Zaza?

— Não recebeste a minha mensagem? E não respondeste afirmativamente?

— Não me diga que veio de propósito de Sanza Pombo por causa do desafio de futebol.

— Claro. Vim para assistir ao jogo e para passar o domingo na vossa companhia.

— Mas hoje não temos leitão. Isso é só quando o rei faz anos.

— E quem quer leitão? Quero é estar convosco e assistir ao jogo. E trago comigo uma coisa que te vai agradar. Mas já falamos daqui a pouco. Agora, é preciso que dês ordens para alojar a secção que veio comigo: o furriel e o resto do pessoal.

— Não se preocupe. O furriel de dia trata disso. Vão ficar cá muito tempo?

— Arrancamos amanhã cedo. Só passamos esta noite.

— As que for preciso, capelão. O Joaquim com o pessoal vai tratar de vos instalar as camas no nosso edifício. Vamos tomar agora uns aperitivos, antes do almoço, e dar uma volta pelo destacamento.

Depois da bica e de uns momentos de conversa com os furriéis, convidei o capelão:

— Quer ir tomar a receita para o paludismo e descansar um pouco?

— A receita pode ser. Mas não temos tempo para descanso. Antes do jogo, vamos dar uma volta e conversar um pouco.

— Como queira.

— A propósito, a que horas é que marcaste o jogo?

— Marquei-o para as quinze horas. Daqui a pouco, temos cá o pessoal. Vamos lá pegá-los na Berliet, se entretanto não chegarem. E aproveito, antes que me esqueça, para lembrar os furriéis.

Antes de nos afastarmos do destacamento, voltei a entrar no edifício:

— Não se esqueçam que, por volta das duas horas, é conveniente mandarmos a Berliet com uma secção à sanzala.

— Eles vêm a pé, alferes.

— Ainda que não tenhamos combinado lá ir buscá-los, não custa nada dar lá uma saltada. Provavelmente, até os vão encontrar já a caminho daqui. Contava até que chegassem ainda de manhã e almoçassem connosco. Tinha mandado reforçar o rancho. Não apareceram eles, mas veio o capelão com uma secção. Até calhou bem! Seja como for, às duas horas, vão ao encontro deles com a Berliet. E, ao fim da tarde, depois do jogo, é também precisa uma secção para os ir pôr na sanzala. Os nossos vizinhos têm de ser bem tratados

Pus ponto final na conversa com os furriéis e retomei o diálogo com o capelão.

— Desculpe lá ter interrompido a nossa conversa, mas era necessário não me esquecer de mandar ir buscar os jogadores da sanzala. Vamos lá dar a nossa volta. Não disse que tinha qualquer coisa para me dizer?

— Sim. Tenho conversado com o nosso Comandante de Batalhão. Em primeiro lugar, pediu-me para te dar os parabéns e agradecer o hino. Ficou muito satisfeito. Diz que pegaste muito bem na divisa do Batalhão «Senso e Audácia». Não podia ser melhor. E tem-se mostrado altamente interessado em tudo o que tens vindo a fazer nesta região. Falei-lhe da maneira como te integraste bem na área e como és respeitado e bem recebido por todos. E quer também que lhe relate o encontro desportivo de hoje. Diz que é a melhor guerra que podes estar a fazer: conquistar a amizade de toda a população e ser-lhe útil, para haver paz e progresso. E mandou-me também entregar-te estas cópias a stencil do teu hino, já depois de ligeiramente alterado, para conjugar com a música.

— Mas já está musicado?

— Já. E muito bem! A irmã que compôs a música teve também inspiração. Captou muito bem o sentido dos teus versos. Andam neste momento a preparar o ensaio das vozes. Daqui por uns dias, deve ser feita a gravação, para ir diariamente para o ar, com a abertura do programa de rádio.

— Não estou a perceber, capelão. Ainda há pouco me perguntou se podiam efectuar alterações no hino e já está pronto?!

— Já sabíamos que dizias que sim e andámos depressa. E acabei de te dizer que a irmã captou facilmente o sentido dos teus versos e teve inspiração divina. Ah, é verdade, o comandante quer outra coisa de ti.

— O quê?

— Quer que colabores no jornal do Batalhão e, sobretudo, que lhe entregues uma fotografia tua, tipo passe, para figurar na notícia do jornal relativa ao autor do hino.

— Agora é que me lixou! Onde é que vou buscar uma fotografia minha, tipo passe? Tirando o bilhete de identidade e o cartão militar, não tenho nenhuma fotografia minha. Fotografo tudo e todos, mas não a mim. O fotógrafo, geralmente, nunca fica nas fotografias.

— Não tem importância. Digo-lhe que não tens nenhuma foto. Será até um pretexto para ires, daqui por uns dias, tirar uma a Sanza Pombo. E pega lá, antes que me esqueça, as folhas duplicadas no policopiador. Já agora, vai-te preparando para outras coisas. O comandante anda a pensar em ti para muitas actividades. Segundo me disse, és a única pessoa com curso superior capaz de levar a cabo um recenseamento e recolha etnográfica da região. Está a pensar destacar-te para um trabalho destes e, depois, a mandar-te uns tempos para Carmona, para tirares um curso de Justiça Militar.

— E a minha rotação de descanso em Quimbele?

— São experiências novas que vais ter e aumentas os teus conhecimentos.

— Não posso falar disto a ninguém. O meu pessoal já anda a pensar na rotação para Quimbele e não lhes quero tirar essa ilusão. Enquanto pensam nisso, vão sonhando um pouco e ajuda-os a passar o tempo.

— Também não tens de falar nisto; até porque é confidencial e pode nem vir a suceder.

 

É altura de omitir o resto da conversa com o capelão. É capaz de começar a enfastiar-vos. Em vez disso, vou cumprir a promessa feita há dias. Afinal, vão aqui ter, muito mais cedo do que contava, a transcrição integral do hino na sua versão definitiva. Vai tal e qual como foi policopiado nas folhas que o capelão me entregou nesta tarde. Nem precisei de me preocupar em limar-lhe as arestas. Não comecem a brincar com o que acabei de dizer. Bem sei que o Português é uma língua muito traiçoeira. Quando falo das arestas, não são as do capelão; refiro-me às arestas do hino. A irmã que compôs a música poupou-me o trabalho.

 

LETRA DO HINO DOS TIGRES DE SANZA

 

1 - Nós somos os Tigres de Sanza, tal como nossos avós
Somos homens valorosos, homens sem medo de nada,
Homens p’ ra tudo domar
Filhos de velhos heróis que andaram pelos mares,
Por este torrão querido de tudo somos capazes.

CORO

Temos por nosso lema muito senso p’ra julgar
E audácia para arrostar dificuldades sem par
Temos por nosso lema muito senso p’ra julgar
E audácia para arrostar dificuldades sem par

2 - E dentro de nossas veias circula a seiva da vida
Circula o sangue de heróis que alargaram as fronteiras
Da nossa terra sem par
Não tememos inimigo, nem canseiras nem perigos
E se a Pátria precisar connosco pode contar.

CORO

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3 - Pois somos de tudo capazes, até nossa vida dar
Com ardor e galhardia juntos digamos pois:
Vivam os Tigres de Sanza!
Sucessores d’ heróis do mar que com senso e audácia
Estão cá p’ra triunfar, estão cá p’ra triunfar!

CORO

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(Alf. Mil. Ulisses A. R.)

 

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