Obras e mensagens

Durante a hora do jantar, com o pessoal todo reunido no refeitório, aproveitei para lhes expor os planos para o reforço da segurança do destacamento.

— Se ainda se lembram, pouco tempo depois de cá estarmos, tentaram apalpar-nos. E o maior perigo não veio do exterior; veio cá de dentro. Devem lembrar-se bem que alguns de vocês saíram das casernas borrados de medo e a dispararem tolamente rajadas. Por sorte, não acertaram em ninguém, mas podíamos muito bem ter tido baixas. Não sei se alguma vez terão reparado, mas tenho recebido diversas visitas de pessoal que nada tem a ver com a tropa. Alguns devem mesmo ter-me visto a passear com um indivíduo de óculos escuros e muito bem vestido. Apesar de me ter feito vários elogios, dizendo-me que eu era admirado e estimado pelas populações, deixou-me com o bichinho atrás da orelha. Verifiquei que anda demasiadamente bem informado a nosso respeito. Não sei quem seja! Tenho reflectido bastante sobre isto. Os terroristas não trazem identificação escrita no peito e muito menos na testa. Quase de certeza, muitos dos nativos a quem nunca recusamos ajuda e damos boleia, se alguns não são terroristas, não devem deixar de se dar bem com eles. Em conclusão, onde é que eu quero chegar? O que é que eu pretendo de vós?

O que eu quero é a máxima segurança de todos nós. O que eu quero é chegar ao fim da comissão com toda a malta inteira e de perfeita saúde. O que eu quero é que todos possam rever os pais, as mulheres, os filhos e os amigos. É só isto que eu quero. Haverá aqui alguém no Alto Zaza que não queira de cá sair inteiro e de perfeita saúde? Já pensaram como ficaríamos, como eu me sentiria, se tivesse de escrever uma carta aos vossos familiares a participar a vossa morte? Nem é bom pensarmos nisto!

— Diga lá de uma vez o que pretende de nós, alferes. — ouviu-se uma voz. — Não comece a fazer-nos lembrar coisas tristes. Estamos todos de acordo com o alferes.

— Quando o meu alferes andou com esse indivíduo de óculos, porque é que não o interrogou ou mandou prender para o entregar para interrogar? — perguntou outro soldado, contrariando o colega.

— Não é a suspeitar das pessoas, a prendê-las e a mandá-las interrogar que se conquista a amizade delas. Não sei se é ou não um terrorista. E o homem revelou grande correcção. A minha política não é andar a provocar conflitos com ninguém, mas procurar fazer com que eles nunca venham a existir. Não fui educado para andar aos tiros e a matar. Para matar, já me basta quando temos de ir à caça, para podermos comer um pouco melhor. Não estamos na nossa terra. E ainda que estivéssemos, era a mesma coisa. Não é com atitudes agressivas que se conquista a amizade das pessoas e a paz, mas dando-nos todos bem. Todos precisamos de todos. E um país maravilhoso e rico como é Angola só poderá prosperar se houver paz!

— Então para que é que vem falar aos soldados para reforçar a vedação do quartel? — observou um furriel, que já sabia dos meus planos.

— A prudência foi sempre a base da segurança. Embora sinta que as populações são amistosas, a prudência nunca fez mal a ninguém. Quero cumprir os dois anos em segurança e chegar ao fim sem problemas, com todo o pessoal de perfeita saúde. E peço que não me interrompam mais nenhuma vez, para vos poder expor o que pretendo. O que pretendo é voluntários para, a partir de amanhã, iniciarmos o trabalho de duplicação da vedação, para reforçarmos a nossa segurança. Trouxemos de Quimbele muitos rolos de arame farpado e caixas com pregos. Será uma forma útil de ocuparmos os próximos dias, a partir de amanhã, zelando pela nossa segurança. Por isso, não indico o nome de ninguém. Apenas vos peço que amanhã, depois do pequeno-almoço, se apresentem na parada, para iniciarmos os trabalhos. À medida que forem progredindo, eu mesmo, com o apoio dos furriéis, irei dizendo o que é necessário fazer. E uma coisa vos posso desde já garantir: depois da concretização daquilo que vai na minha cabeça, dificilmente os terroristas conseguirão apanhar-nos de surpresa.

Após o jantar com os três furriéis, expus-lhes o meu plano:

— A partir de amanhã, precisamos de, pelo menos, duas equipas de trabalho por dia. Porquê? O que é que eu pretendo? Pretendo duplicar a cerca de arame farpado a toda a volta do quartel. Em vez de uma, passamos a ter uma segunda cercadura a uns cinquenta centímetros da primeira. Passaremos a ter vedação dupla. Para isso, teremos de seguir estas etapas:

1º - traçar uma linha a toda a volta, colocando-se estacas em posição alternada com as da primeira vedação já existente, para dificultar a entrada;

2º - traçada a linha, é preciso abrir buracos com profundidade suficiente para enterrar as estacas, que deverão ficar com a mesma altura das outras;

3º - enquanto um grupo marca a segunda cerca e abre os buracos, o outro vai à mata cortar árvores que dêem para fazer boas estacas. Enquanto uns cortam e preparam as estacas, terá de haver uma secção armada que dê a devida protecção, para evitarmos qualquer surpresa desagradável;

4º - depois, à medida que as estacas forem sendo colocadas, outro grupo começará a abrir pequenas valas entre as duas vedações, que serão posteriormente cobertas com chapa ondulada;

5º - em seguida, deverá ser esticado e fixado o arame. Para ajuda, deverá ser utilizado um unimogue, depois de lhe terem tirado o banco do estrado. O pessoal utilizará o estrado da viatura como uma plataforma móvel de trabalho, durante a fixação das fiadas mais altas;

6º - Depois da vedação toda colocada, serão postos os obstáculos com as chapas onduladas de zinco entre as duas fiadas de arame. Se alguém tentar penetrar durante a noite, será obrigado a pisar as chapas, que aluirão com o peso, fazendo enorme barulho e alertando as sentinelas.

Conto com a vossa colaboração e também com as vossas ideias, para melhoria do sistema de defesa.

— E não é dado nada ao pessoal, a meio da manhã, para ajudar a aguentar o esforço? — perguntou um furriel.

— A meio da manhã e da tarde, o pessoal fará umas pausas. O trabalho não é para se fazer todo de uma vez, mas para se ir fazendo aos poucos, com calma. Será também uma maneira de ocuparmos o tempo. Umas sandes de pão com manteiga ou até mesmo de chouriço de lata e umas bojecas frescas poderão servir para ajudar o pessoal a recuperar.

— E quem paga, alferes?

— Quem há de ser? A tropa. É serviço indispensável para nossa segurança. Queriam certamente que fosse à minha custa, não?

— E o capitão alinha?

— Claro que alinha. Não é ele quem tem de pagar. Entrará nas despesas de melhoramentos do destacamento.

Na manhã seguinte, depois do pequeno-almoço, à excepção daqueles que têm serviços diários fixos, tinha todo o pessoal à minha espera na “parada”. Não estavam em formatura, porque tal não era preciso, mas estavam lá todos à minha espera. Apesar de às vezes me causarem alguns dissabores, ou não fossem eles material humano, a verdade é que os meus soldados, quando é preciso, acabam sempre por responder à chamada.

Em breve, com a colaboração do furriel de serviço e de outro camarada, que lhe foi dar apoio, os grupos estavam constituídos e as actividades distribuídas. Tal como registei na agenda, que é o meu diário de bordo, deu-se hoje, dia 2 de Fevereiro do ano de 1973, início às obras de melhoramento da cerca do quartel. Lá andei eu ocupado, durante a primeira metade da manhã, a explicar o que se pretendia. Enquanto um grupo e uma secção devidamente armada foi para a mata próxima com um furriel, para cortarem as árvores e preparar as estacas, andei eu com outro grupo a ajudar a marcar a área e a assinalar os locais para abertura das covas, para as estacas, e das valas, para o sistema de alarme.

— Alferes, cinquenta centímetros de distância entre as duas cercaduras não será pouco? — alvitrou um furriel.

— Não vamos estar a medir rigorosamente os cinquenta centímetros. É mais ou menos a olho. E entre as duas linhas da vedação, nas zonas entre os pilares, é necessário que um grupo cave uma vala com pelo menos meio metro de profundidade.

— Mas para quê, alferes? Para quê uma vala entre as duas cercaduras de arame?

— Não percebeu a explicação que vos dei ontem à noite? Depois das estacas metidas e antes de começarmos a colocar o arame farpado, temos de ter as valas abertas. Não vão ficar à vista. Vão ficar cobertas. Vamos pôr-lhes em cima as chapas onduladas. Se durante a noite alguém tentar passar as duas vedações, será obrigado a pôr os pés em cima da chapa. Com o peso do corpo, a chapa abate e faz uma barulheira dos diabos. É mais de que suficiente para, no silêncio da noite, alertar as sentinelas. E se for preciso, podem-se ainda imaginar outros sistemas simples mas eficazes para aumentar as dificuldades de infiltração.

Interrompi a actividade e a explicação ao furriel, porque ouvi o barulho da Berliet que vinha de Quimbele:

— Vem aí o grupo de Quimbele com os mecânicos e o furriel vagomestre. Posso deixá-lo aqui com o pessoal? Tenho de ir recebê-los e tratar das actividades rotineiras.

— Vá lá, alferes. Nós damos conta do recado.

— Não se esqueçam da pausa a meio da manhã, para o pessoal recuperar. E se for preciso alguma coisa, mandem-me chamar.

— Esteja descansado. Dessa parte ninguém se esquece. Uma Cuca gelada com uma sandes é coisa que ninguém dispensa, a meio da manhã.

Com a chegada do pessoal de Quimbele, veio também a saca do correio. Guardei-a para a distribuição da correspondência durante o almoço, não sem antes ter passado uma rápida busca à procura de correspondência para mim. Encontrei dois aerogramas, que guardei para ler mais tarde. Por agora, tinha as mensagens cifradas, que já estavam no gabinete à minha espera. Ocupei parte do resto da manhã a decifrá-las. Para minha surpresa, uma das mensagens trazia informações relativas ao capelão:

 

 

 

«TIGRE MAIOR SATISFEITO HINO ENTREGUE RELIGIOSA PARA MUSICAR PEDE LICENÇA PEQUENAS ALTERAÇÕES.»

 

 

Inicialmente, com a mensagem ainda nas quadrículas da folha de papel, tive dificuldade em perceber o que lá estava. Peguei numa folha branca e alinhei as palavras daquele puzle de difícil leitura. Fora da confusão de todos aqueles quadrados com letras maiúsculas, ainda que sincopada, a mensagem adquiria melhor sentido.

O capelão mostrara o hino ao comandante do batalhão, que gostou da letra e ficou satisfeito. Em seguida, entregou uma cópia a uma religiosa para lhe escrever a música. Como para a conversão do texto num hino é preciso fazer pequenos ajustes, para que a letra e a música liguem harmoniosamente, estavam a pedir-me licença para introduzirem pequenas alterações no texto. Pensei para comigo que não era necessária qualquer licença. Todavia, peguei noutra folha de papel quadriculado e comecei a cifrar a mensagem, para envio da resposta:

 

 

«QUALQUER ALTERAÇÃO MELHORIA ADAPTAÇÃO MUSICA NÃO NECESSITA AUTORIZAÇÃO FAÇAM BOM TRABALHO»

 

 

No final do dia, recebi nova mensagem da Companhia. Perdi uma boa parte da tarde a tentar decifrá-la, porque havia letras que não formavam palavras. Repeti várias vezes todo o procedimento de descodificação a partir do zero, ignorando o trabalho anterior. O resultado era sempre o mesmo. O erro não era meu, mas de quem cifrou a mensagem. Com as poucas palavras legíveis, procurei entender o que lá se dizia. A mensagem completa e correctamente cifrada deveria ser qualquer coisa como isto:

 

 

 

«INFILTRAÇÃO ZONA FRONTEIRA INICIAR AMANHÃ OPERAÇÃO ESPOLETA 12 ZONA CAMUANGA QUITARI»

 

 

Uma operação na zona entre a Camuanga e o Quitari não é pêra doce. É uma zona extremamente difícil, que exige, pelo menos, meio grupo de combate, reforçado com duas secções de GEs. E, para isso, são necessários três unimogues, para efectuar o transporte do pessoal. Como é possível se de momento só tenho duas viaturas e uma delas inoperacional há vários dias?

Saí do edifício do comando e fui ao parque auto saber se já tinham conseguido alguma coisa:

— Então, pessoal? Já conseguiram arranjar o unimogue?

— Ainda não alferes. A coisa está preta. Isto está mais difícil do que pensávamos.

— Vejam lá se põem tudo operacional. Acabo de receber uma mensagem para uma operação amanhã. E são necessárias todas as viaturas.

— Desconfio bem que não vai haver operação, alferes. — disse um mecânico.

— Então porquê?

— Alferes, estivemos toda a tarde de volta da viatura e saímos frustrados. Não é durante a noite, à luz das gambiarras, que vamos conseguir ter mais sorte. E desconfio mesmo que nem vamos poder arranjá-la.

— Então porquê?

— Porque nos devem faltar peças, alferes. Estas viaturas já deviam estar na sucata há muito tempo. Em vez de mecânicos, deveríamos ter aqui S. Cristóvãos em nossa substituição. Isto é pior que um tecido velho. Remenda-se aqui, rasga acolá.

— Não me dás novidade nenhuma. Isso estou eu fartíssimo de saber. Infelizmente, somos nós quem temos de andar nelas, não são os oficiais de carreira.

Durante o jantar, falámos das obras de melhoria de defesa e da operação de amanhã. O furriel de dia queria saber como ia ser o dia seguinte:

— Amanhã, alferes, é sábado. Como é? Trabalha-se ou vai-se fazer a operação?

— Se calhar, nem uma coisa nem outra. Uma operação não se faz de improviso, com ordens em cima dos joelhos. O capitão é tolo. Julga se calhar que somos parvos. Em primeiro lugar, e está aqui o furriel Santos, mecânico e responsável pelas viaturas da Companhia, que não me deixa mentir. A viatura continua por reparar e vai manter-se inoperacional por mais uns tempos. Não é verdade?

— Sem dúvida, alferes. Teremos de ir a Sanza Pombo ver se há o material necessário.

— Além disso, a zona da operação é extremamente perigosa e acidentada. Para a operação que o capitão pretende, teríamos de a preparar com dois dias de antecedência e levar reforço dos GEs. Não é com cartas topográficas e bússolas que conseguiríamos orientar-nos no meio da selva. Só com os GEs, que conhecem a região de olhos fechados, me aventuro com o pessoal no meio da mata. Lá porque não receio enfrentar os perigos, não significa que seja parvo. Somos todos ainda muito jovens para morrermos estupidamente por imprevidência.

— Então, o que é que vamos fazer amanhã, alferes?

— É fim de semana. É para descansarmos. E não se esqueçam que, no domingo, temos o desafio de futebol. O nosso pessoal tem de estar em forma, para fazer boa figura. Embora tencione pagar as cervejas a toda a malta, vencedores e vencidos, temos de ganhar àqueles craques nativos da bola, para mostrarmos que somos bons em tudo, também no futebol.

— Isso já está no papo, alferes. — disse um furriel — O nosso pessoal é muito melhor que os nativos.

— Não sei! Eles têm melhor físico que o nosso. No domingo é que veremos.

Como podem depreender, a partir do diálogo com os furriéis, estávamos a prever um fim de semana tranquilo. Deveria ter sido mais um fim de semana bem passado, e menos dois dias no longo tempo de comissão que temos ainda pela frente.

— E foi um fim de semana tranquilo? — Estão vocês a perguntar-me, aí na Metrópole. Isto é o que iremos ver, lá mais para diante, porque agora vou ter de interromper a correspondência. Os dedos estão a doer-me e a esfera da caneta a ferver e a pedir-me uma bebida fresca.

 

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