Avarias e defesa

Chega de divagações. Tenho de pôr um freio fortíssimo na imaginação e na malvada desta caneta, que só quer fugir para coisas passadas. E isto não pode ser. Tenho de voltar às coisas concretas, ou seja, ao registo dos acontecimentos do destacamento. Desde a saída do capelão do Alto Zaza, não voltei a fazer nenhum registo. E os acontecimentos, ainda que não sejam muitos, são já alguns.

— Ainda se lembram do que aconteceu, no final do mês passado, quando vos dei a conhecer os últimos minutos de permanência do capelão no destacamento?

— Como é que nos havemos de lembrar, se já lá vão dez dias desde a última vez que nos escreveste?!

— Têm razão! Dez dias é muito tempo e a memória é curta. Também não é problema. A minha pergunta foi mais para mim do que para vós. Foi esta a maneira que encontrei para dar o nó ao fio dos acontecimentos. O dia 31 de Janeiro foi um dia azarado, na medida em que, para meu desgosto, se avariou a máquina fotográfica. Esta foi uma das razões que me fez ir, no dia seguinte, a Quimbele. A primeira e mais importante para me meter à picada surgiu ainda no final do dia anterior, à hora do jantar. No meio da conversa, o furriel Ramalho, o vagomestre do destacamento, disparou-me um ultimato:

— Alferes, amanhã tenho de ir a Quimbele. Tenho de ir fazer as contas da cantina.

— É preciso ir a Quimbele para fazer contas? As contas fazem-se na cantina do destacamento, com papel e caneta, conferindo as existências e os valores entrados.

— Pois é! Mas acontece que é em Quimbele que tenho de prestar contas.

— A solução, então, é ir amanhã a Quimbele. E eu aproveito também para lá ir levar a máquina fotográfica, para reparação. Além disso, tenho também de falar com o nosso capitão. Não podemos continuar com a viatura avariada. E precisamos também de reforçar a vedação a toda a volta do quartel.

— A vedação existente é suficiente. — alvitrou outro furriel.

— Não me parece. Uma fiada apenas de arame farpado é facilmente transponível. Precisamos de segunda fiada, a uns cinquenta centímetros da primeira, para dificultar qualquer tentativa de penetração durante a noite. E com umas armadilhas, como as que estou aqui a pensar, ninguém penetra cá dentro, mesmo que alguma sentinela adormeça.

— O alferes está com medo de ser atacado?

— Nunca estive tão tranquilo e seguro. Mas quero reduzir as probabilidades de uma eventual infiltração nocturna, por uma questão de maior segurança. E é bom também para mantermos o pessoal ocupado. A ociosidade é o pior inimigo da tropa!

— E não seria de conversar com o pessoal acerca disso, alferes?

— Em primeiro lugar, não tenho de pedir autorização nem opiniões a ninguém, quando se trata de questões de segurança. Sou responsável por todos nós e não quero ter de dar contas às famílias se morrer alguém. Pretendo regressar a Portugal com toda a gente de perfeita saúde. Em segundo lugar, não posso falar de uma coisa que não sei se poderemos fazer. Antes disso, tenho de ter o material necessário e a autorização do capitão. Tenho de lhe falar previamente, para expor as minhas ideias e obter a autorização para as obras de melhoria da defesa do destacamento. Como vai o furriel Ramalho para fazer contas, está por agora o trabalho facilitado. O furriel vai, a seguir ao jantar, escolher o pessoal para ir amanhã connosco. Arrancamos cedo, logo a seguir ao pequeno-almoço.

No dia seguinte, chegámos muito cedo. A picada estava seca e a viatura não se avariou, obrigando-me a ir a pé e a pedir boleia. Ainda não eram onze da manhã e já tinha dado as voltas rotineiras, antes de estacionarmos o unimogue no parque auto por detrás da messe de oficiais.

— Tu aqui outra vez? — perguntou o capitão, quando me viu entrar no gabinete.

— Outra vez como? Há muito tempo que não vinha à civilização. Têm sido os furriéis a vir cá, ultimamente, buscar o reabastecimento ou o correio, quando este não nos é levado pelo administrador.

— O «outra vez» é uma maneira de começar a conversa. Mas tu que me entras aqui no gabinete é porque tens alguma coisa importante para me dizer. Geralmente, quando cá vens, só nos encontramos na messe ou no café. Quais são as novidades que me trazes?

— Vim a Quimbele por várias razões. A primeira, porque o furriel vagomestre me pediu para vir cá pôr a contabilidade da cantina em ordem. A segunda, é porque tenho dois problemas importantes. E nem sei por qual começar.

— Tira ao calha.

— Vou começar pelo mais importante, se é que é mesmo o mais importante. Durante a visita do capelão ao Quitari, o unimogue avariou. Foi-me mandado daqui um grupo de socorro, com mecânicos. A verdade é que se limitaram a rebocar a viatura até ao destacamento e a ajudar a comer os leitões. E mais nada! Vieram embora logo a seguir ao almoço e a viatura ficou arrumada no parque auto. Lá continua inoperacional. E aquela em que vim não tarda muito a deixar-nos ficar outra vez avariados na picada.

— Mas o que é que ela tem?

— Não faço ideia! Não sou mecânico. Os mecânicos estão cá todos na sede. E os que lá foram, também não se preocuparam em saber o que era. Cheirou-lhes ao leitão e preocuparam-se apenas em ajudar a dar cabo dele.

— Amanhã, logo pela manhã, bem cedo, mando-os para o Alto Zaza na Berliet. Não os deixas sair de lá sem terem as viaturas a andar.

— Isso é que bom. Mas falta saber se eles conseguem dar conta do recado.

— Claro que conseguem. São mecânicos com muita experiência. É a profissão deles na vida civil.

— Pode ser que sim! Mas de que lhes serve serem bons mecânicos, se não tiverem material sobressalente para reparação das viaturas?

— Depois se verá. Qual é o outro problema?

— É um problema que não precisa de mecânicos. Este consigo-o eu resolver, se me forem dados os meios.

— Mas o que é que queres?

— É um assunto de segurança do destacamento. A vedação existente a toda a volta não me inspira confiança. Os cambutas estão muito bem informados acerca de nós. Já nos apalparam uma vez, para ver como reagíamos, e podem voltar a tentar.

— O quê? Aquilo? Continuas a achar que foste atacado?

— Claro! Não foi por desporto que passámos a noite nos abrigos. Seja como for, estamos em terra que não é a nossa e pretendo sair de cá inteiro com todo o pessoal. E isso depende essencialmente de nós. Além de que o pessoal precisa também de estar ocupado. À boa vida, só arranja problemas. E eu dispenso-os.

— Diz lá o que pretendes.

— O que pretendo é que me sejam fornecidos rolos de arame farpado, para duplicarmos a vedação à volta do destacamento. Quero montar um sistema que reduza drasticamente as probabilidades de penetração inimiga durante a noite, mesmo dando-se a hipótese de alguma sentinela adormecer.

— Não podem adormecer. Para isso tens o serviço das rondas. Ou não tens o serviço devidamente escalado?

— Claro que sim. A escala de serviço está feita para todo o mês. E eu próprio faço rondas frequentes e imprevistas, reforçando o trabalho dos cabos e furriel de serviço. Confio mais em mim do que neles. Posso requisitar arame farpado e duplicar a vedação à volta de todo o quartel?

— Claro que sim. Nem é preciso requisitar o arame. Vais com o teu pessoal à arrecadação de material. Temos lá muitos quilómetros de arame. Levas o que for preciso. Levas a mais e trazes de volta o que sobrar. E as estacas? Onde as vais buscar?

— Isso é fácil. Na mata há muita árvore. É só escolher as que tenham as dimensões ideais, cortá-las e prepará-las. Preciso é de umas caixas com pregos de grande calibre, para segurar o arame.

— Tens tudo o que necessitas na arrecadação. Passas por lá. Dizes ao responsável que vais com ordem minha. Mais alguma coisa?

— Por agora é tudo. Se surgir mais alguma coisa, conversamos durante o almoço. A menos que queira deixar por momentos o gabinete e vir tomar um aperitivo ao Briosa Bar.

— Agradeço, mas tenho que acabar aqui um serviço. Estaremos juntos a partir da hora do almoço. A esta hora talvez já lá esteja o médico para te fazer companhia. Ou então, como aqui não está o Vieira, talvez o encontres no café. Bye, bye. Some-te, que tenho que fazer.

Só à hora do almoço consegui estar com todo o pessoal com quem costumo passar uns bons momentos na sede da Companhia: os alferes que vieram comigo de Tomar, o médico e, logicamente, o capitão. Um dos temas da conversa girou à volta da passagem do capelão pela Terceira Companhia de Caçadores.

— Quando ele chegou do Alto Zaza, não falava doutra coisa. Pelos vistos, trataste bem o homem. Tratás-te-lo à grande e à francesa. — disse o capitão — Leitão à moda da Bairrada. O homem até parece que nunca tinha comido leitão.

— É natural. Há muitos meses que não sabíamos o que isso era. E ele teve tanta sorte que calhou aparecer no momento exacto. Tivemos duas vezes, na mesma semana, repetição da ementa.

— Mas a que propósito? Quem teve a ideia? E quem pagou os leitões? — perguntou o médico, cheio de curiosidade e certamente também com saudades deste tratamento.

— Quem os pagou fui eu. Tínhamos de fazer a inauguração solene do novo forno do pão. O velho Manel, num curto espaço de tempo, reconstruiu duas vezes o forno. Tinha que o compensar de alguma maneira, a ele e ao pessoal que o ajudou. E toda a gente lucrou.

— Como é isso? Quantos fornos lá têm?

— Temos um e chega! E por sinal bem grande!

— Então como é que o velhote reconstruiu dois?

— É fácil de explicar. O primeiro forno ruiu e teve de ser reconstruído. Dias depois, achámos que era pequeno. Um forno com o dobro do tamanho permite maiores fornadas de pão e, consequentemente, poupança de tempo e trabalho ao pessoal. Pus o problema ao velhote e ele achou boa a ideia. Desfizemos o reconstruído e edificámos um novo, de raiz, com o dobro do tamanho. Durante um ou dois anos, quase de certeza, não voltará a ser preciso mexer-lhe. Por isso, aproveitámos o pretexto da inauguração e a visita do capelão para fugir às ementas habituais, que já enjoam. A primeira experiência do leitão assado teve um grande defeito: deixou-nos com vontade de mais. E a solução foi voltar a puxar dos cordões à bolsa. A tropa é que devia pagar, e não o desgraçado do alferes. Já me basta o castigo desta penitência em Angola!

— Estás a chorar o dinheiro que pagaste? — disse o capitão.

— De modo nenhum! Espero poder repetir isto mais vezes. O prazer de comer os animais e o gozo que nos deu a todos quando os fomos comprar compensou largamente o trabalho e o dinheiro gasto.

— Não te estamos a perceber! — acrescentou o Vieira — Qual é o gozo de comprar os leitões, para mais à tua custa, para alimentar toda a gente?

— O gozo é que para apanharmos os leitões, depois de os ter pago, tivemos uma autêntica garraiada. Durante mais de meia hora, andámos todos divertidos a tentar apanhar os bichos. Parecia quase uma garraiada de estudantes universitários na Figueira da Foz. Só que estes garraios não marram, apenas grunhem e nos fazer correr atrás deles, e não eles atrás de nós.

— É verdade, agora me lembro, — disse o capitão — deixei ficar no teu quarto uma encomenda para ti. Chegou com o correio da manhã, pouco depois de teres deixado o meu gabinete.

— O que será?

— Não sei! Mas pelo cheiro que liberta, deves ter recebido algum queijo.

— Então aguardem um pouco. Vou buscá-la e já vamos ver o que é.

Perante toda a malta, com a mesma curiosidade que eu, abri a encomenda: três tabletes de chocolate, uma saca com bombons, duas sacas com rebuçados e um grande queijo da serra, envolvido numa faixa branca de linho.

— Calha mesmo bem. Vamos ter uma sobremesa diferente. E como a fruta de hoje são maçãs, liga perfeitamente: queijo com maçã. Hoje o nosso almoço acaba quase de maneira tão boa como no Hotel do Buçaco.

— Tens de vir cá mais vezes à sede, Ulisses. — disse o médico na brincadeira. Mas se receberes de cada vez que cá vieres uma encomenda como esta!

— Até pode ser que isso aconteça! Pode ser que alguém ouça as tuas palavras e as encomendas continuem a ser mandadas, de vez em quando, para nossa satisfação. E serão sempre bem recebidas.

— A que horas regressas ao destacamento? Ainda cá ficas tempo suficiente para conversarmos e darmos uma volta a seguir à bica?

— Não devemos ter tempo. Estavas a pensar levar-me outra vez ao hospital de Quimbele?

— Não. Simplesmente dar uma volta e conversarmos um pouco.

— Não devemos ter muito tempo. A seguir à bica tenho de passar pela loja onde comprei a máquina fotográfica. Avariou há dias e tenho de a mandar arranjar. Tem garantia de um ano. E depois disso espero regressar logo ao destacamento. Espero fazer a viagem de dia. As viaturas são a nossa desgraça. Não me inspiram a menor confiança. Não gostaria de ter de dormir na pica, no meio da mata.

— Aqui o Ulisses tem sempre muito que fazer — disse o Vieira. É que lá em cima, no destacamento, deve ter imensos problemas!

— A brincar que o digas! Tenho mais problemas do que pensas. Aquilo não é Quimbele, com restaurantes e lugares onde passar o tempo.

— Claro! Tens grandes responsabilidades e o pessoal deve estar sempre a arranjar-te sarilhos!

— E não são poucos! Soldados e furriéis são quase todos do mesmo calibre. Tirando um furriel que me inspira mais confiança, os outros pouco melhor são que os soldados. E estes, então, são um verdadeiro atraso de vida! Só dão problemas. Ainda há tempos estive quase a punir um com a pena máxima.

— A que propósito? Fez assim alguma coisa tão grave? — perguntaram todos, cheios de curiosidade

— Mais que grave, gravíssima!

— Conta lá, que estamos intrigados com tamanha gravidade.

— Vocês estão a gozar, mas já vão ver que a falta era grave. Só não puni o soldado por estarmos então numa época especial. Era Natal e a justificação que ele me deu deixou-me completamente desconcertado!

— Vá lá! Deixa-te de comentários e conta o que se passou.

— Foi isto na véspera de Natal. Por uma questão de cortesia, fui à Fazenda Nossa Senhora da Conceição desejar-lhes um Feliz Natal. Fomos muito bem recebidos e participámos, durante um curto espaço de tempo, numa batucada. Aqui, na região, as vésperas de Natal festejam-se com fogueiras e batucadas. No regresso ao Alto Zaza, parámos numa sanzala, onde também se festejava a ocasião. Conversámos com o soba e os habitantes. Estivemos lá uns dez ou quinze minutos, o bastante para reforçarmos as boas relações de amizade com os nativos.

Regressei ao destacamento e tudo normal, até certas horas da noite. Só dei pelo problema quando um soldado me veio dizer que um camarada tinha desaparecido. Procurámo-lo e não estava no quartel. Curiosamente, a espingarda e as cartucheiras estavam no lugar habitual, junto à cama do soldado. Este foi um indício que me fez pensar que ele tivesse saído naquela altura para ir aliviar a tripa e não voltei mais a pensar no assunto. Para mais, era um dos que tinha ido comigo à fazenda. Se a espingarda e a cartucheira ali estavam, também ele devia estar no quartel.

Dois dias depois, encontro o soldado. Perguntei-lhe onde se tinha metido quando o procurámos, pensando sempre que deveria ter ido, na altura em que demos pela falta dele, a um recanto do quartel, onde ninguém vai sem necessidade. Julgou que tinha descoberto tudo e que o camarada que lhe tinha trazido a arma e guardara segredo o havia traído. Disse-me que tinha ficado na sanzala, onde parámos durante o regresso. Conheceu uma miúda nativa, com quem andou a dançar um bocado à volta da fogueira. Pelos vistos, engraçaram um com o outro. E deixou-se lá ficar durante dois dias, tendo regressado a pé ao destacamento na altura em que o encontrei. Disse-lhe que tinha cometido uma falta gravíssima, tão grave quase como ter desertado, por se ter ausentado do quartel sem autorização superior, arriscando-se a ser apanhado pelos turras. Em suma, mais para o assustar do que com vontade de o fazer, disse-lhe que a falta era demasiado grave e tinha de ser punido, para exemplo de todos. Fez-me ali uma enorme choradeira, que não fora por mal, que era época de Natal, que tinha gostado da miúda e que há muito não dava uma martelada, que era homem, e já tinha saudades da companhia de uma mulher... Em suma, uma tamanha ladainha de desculpas, que não tive coragem de o punir. Mandei-o embora e aconselhei-o a não voltar a repetir a proeza.

— Foi a martelada que te desarmou. — disse o capitão, no meio de gargalhada geral.

— Sem dúvida! Imaginei a cena e não tive coragem de o punir. Um homem, de vez em quando, também necessita de desenferrujar o instrumento, quando não, ainda se lhe avaria e depois é o caraças!

— E tu nem sabes o que isso é... — acrescentou o médico, na brincadeira.

— Por acaso, a memória é curta e até já me vou esquecendo.

— E se fôssemos à bica? — perguntou um dos oficiais.

Durante a bica no café, limitei-me a ver jogar aos dados.

— Tu hoje não jogas porquê? — perguntou o médico. Estás com medo de ter de pagar as bicas?

— Mas que disparate! Alguma vez ia à falência por causa das bicas? Uma jogada leva quase uma hora. E não tenho tempo.

— Tens assim tanto que fazer? Queres ir já para cima?

— Não. Estou à espera que abram as lojas.

— Ah! Pois! É por causa da máquina. Também já não tens de esperar muito. Daqui a pouco estão as lojas a abrir, se é que o dono não está já lá.

— Estar lá até está... mas deve estar a almoçar. A loja e a residência é o mesmo edifício. E se fosse preciso, até mesmo com a loja fechada lá podia ir falar com ele. Mas a refeição é sagrada. Não deve ser interrompida.

— A esta hora? — disse o capitão. — A esta hora já almoçaram há muito. Se é quem eu penso, às vezes costuma vir aqui ao café.

— Não deve vir. Provavelmente toma logo o café a seguir ao almoço, na companhia da mulher e da filha.

— O melhor é levantar-me e ir lá. É só atravessar a rua e andar uns cinquenta ou cem metros. Pago já o café e vou lá.

— Deixa estar. — disse o médico. — Quem perder o jogo paga todas as bicas.

Saí e atravessei a rua. A loja fica a uns cem metros do café, ou tal vez nem tanto, ao cimo da curva antes de entrarmos na avenida principal de Quimbele. A porta da loja, ainda a meia distância, parecia estar aberta. Sinal evidente de que o dono lá estava. Do asfalto, devido ao forte calor do sol ainda a pique, elevava-se uma cortina ondulante, que parecia fazer oscilar a rua. Atravessei-o e, logo a seguir, a porta do estabelecimento. Fiquei momentaneamente sem ver nada. A mudança de intensidade da luz era exagerada. A excessiva luminosidade da rua, com as cores claras dos edifícios a contrastar com o escuro do asfalto em ebulição fazia com que o interior da loja parecesse mergulhado em total escuridão. Segundos depois, já via o comerciante. Lá estava ele junto ao balcão. Estava de chávena na mão, a acabar de saborear o café em pequenos golos.

— O alferes por aqui? É servido de um cafezinho gostoso?

— Agradeço, mas venho de fazer o mesmo, ali no Briosa Bar.

Cumprimentámo-nos, interrompendo momentaneamente o diálogo encetado.

— Então o que o traz de novo por aqui? Vem empatar o seu capital nalguma coisa de que precisa?

— Infelizmente, não. Venho por causa da máquina fotográfica. Esta malvada, — e tirei-a do amplo bolso do camuflado — pregou-me há dias uma valente partida.

— Então o que foi?

— Encravou e não voltou mais a disparar. Fez-me perder umas cenas espantosas, junto à linha de água onde nos vamos abastecer e tomar banho.

— Não tem problema, alferes. A máquina está dentro da garantia. Vai para o representante em Luanda.

— E quanto tempo vou ficar sem ela?

— Isso não lhe posso dizer. Um ou dois meses, talvez.

— É muito tempo. Vou perder imensas oportunidades de registar os locais por onde irei passar. Tem alguma máquina barata, daquelas que é só meter o rolo, apontar e disparar, como as que os furriéis compraram depois de eu cá ter vindo?

— Infelizmente, neste momento não tenho nenhuma. Depois que o alferes cá veio comprar a sua máquina, as vendas aumentaram. Furriéis e soldados vieram comprar todas as máquina baratas que cá tinha. O alferes parece que pegou o vício das fotografias ao seu pessoal.

— E não espera mais?

— De momento não. Só lá para o final do mês, quando for a Luanda ver o que há e renovar o stoque.

— Quer dizer que a minha máquina também só lá para o final do mês é que vai para Luanda...

— Não, não, alferes. A sua máquina vai amanhã mesmo no machimbombo.

— Não quer levar nada?

— Não. Tenho que regressar ao destacamento. Quero fazer a viagem de dia e tenho ainda de ir buscar material para levar para o destacamento.

Despedi-me do comerciante e saí desconsolado. Contava remediar-me com uma máquina baratucha e nem isso consegui. E já tenho vindo a perder, por causa disso, algumas imagens. Para me estragar o resto da tarde, reuno o pessoal e falta o furriel.

— O furriel não vai connosco para o Alto Zaza, alferes. — diz-me o condutor.

— Não vai porquê?

— Diz que tem muitas contas para fazer.

— Anda daí. Vamos procurá-lo à cantina. Mas antes passas pela messe, para pegar a arma e as cartucheiras, porque vamos logo para cima.

Na cantina, ao lado do refeitório dos soldados, encontrei o furriel. Estava com o responsável a tratar da contabilidade. Disse-me que tinha ainda muita conta para fazer e que seguia na próxima viatura. Aceitei a justificação, passei pelo café para me despedir e pegar dois soldados e regressei ao destacamento sem nenhum percalço.

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