Papel da imaginação

A minha escrita esteve interrompida durante um longo espaço de tempo. Não foi nenhum fenómeno estranho que ma interrompeu. Foram factos bem concretos e terrenos. E é deles que temos de nos ocupar, como referi ontem, momentos antes da minha escrita ter sido interrompida. Os afazeres ligados à vida no destacamento foram a causa que me obrigaram a afastar-me do vosso convívio, ainda que imaginário, graças à escrita destes aerogramas. Imaginário? Disse convívio imaginário? Será mesmo imaginário?! Não será, pelo contrário, algo bem concreto? Enquanto escrevo, não será quase a mesma coisa que estarmos todos juntos em ameno convívio? Não serão bem reais aquelas imagens que passam na minha imaginação e me permitem rever-vos, quase como se estivéssemos efectivamente juntos? E aí desse lado, enquanto lêem as minhas palavras? Será que não me estão a ver quase em carne e osso, graças às recordações que guardaram de mim durante todos os anos em que estivemos sempre juntos? E os factos bem concretos que aqui vos vou apresentando? Quando os lêem, será que na vossa imaginação não começam a passar, tal como quando vamos ao cinema e vemos um filme, as imagens registadas pela câmara cinematográfica? É certo que aqui, nesta folhas amarelas repletas de palavras, não vão imagens concretas como aquelas que se obtêm com uma câmara fotográfica ou uma câmara de filmar. Mas não será verdade que as palavras que eu aqui vou escrevendo, os diálogos que vos procuro reconstituir, as descrições que vos faço destes lugares, não são uma espécie de película ou fita magnética onde os factos ficam registados? E, quando lêem as palavras, não vêem também passar, recriadas pela vossa imaginação, as mesmas cenas que eu aqui tenho vivido? Se eu, enquanto escrevo, consigo ouvir os vossos comentários e ideias, certamente que também vós, aí desse lado, sereis capazes de recriar, graças aos mecanismos da vossa imaginação, tudo quanto aqui vou procurando anotar, umas vezes com maior número de pormenores, outras, de maneira mais abreviada, de acordo com a inspiração do momento e o refluir das vivências passadas que ficaram, ainda que indelevelmente, marcadas na minha memória.

Retomemos os acontecimentos. A interrupção de ontem foi o bastante para me ter obrigado a reler os aerogramas já escritos. Tive de os reler, para procurar a ponta da meada. Todavia, neste preciso instante, a memória está a pregar-me nova partida. Estou outra vez a fugir ao mais importante e a começar a ouvir o pai a refilar, a dizer que lhe estou a pregar uma valente seca. Tem toda a razão! Apesar de ter dito que deveria abordar factos concretos e terrenos, estou aqui há já uns bons minutos a não fazer o que deveria fazer. Estou para aqui novamente mergulhado nas malvadas reflexões! A verdade é que, de momento, não estou capaz de abordar as coisas concretas. Os acontecimentos dos últimos dias estão teimosamente a querer fugir-me e a não se deixarem registar. A culpa não é deles! É que a minha mente anda muito longe daqui. Será por hoje ser domingo? Será do clima? Será a necessidade da vossa companhia real e não imaginária que me está a obrigar a evadir-me mentalmente destes lugares?

Hoje é domingo. Mais um domingo no meio da mata, que deveria ser igual ou, pelo menos, semelhante aos outros domingos aqui passados. E já são vários, os domingos passados nestas estranhas paragens. Mas, não sei porquê, tenho a nítida sensação de já ter vivido este domingo, embora num ambiente totalmente diferente. Qual a causa desta estranha sensação? Talvez isto seja devido à temperatura e à ligeira aragem que varre o planalto do Alto Zaza. É uma aragem que me faz sentir em pleno Verão; não aqui, no meio da África. Aqui só há duas estações do ano: a época das chuvas e a época do cacimbo. Esta última ainda não conheço. A sensação que agora tenho é a de estar num Verão muito distante, na vila à beira-mar onde muitos anos vivi. Tenho a nítida sensação de me ter desmaterializado. Tenho a nítida sensação de ter voado deste local e regressado à nossa casa em Espinho.

Praça entre a Câmara Municipal de Epinho e o jardim, em 1952.

A temperatura e a aragem são rigorosamente idênticas ao clima de Espinho, em pleno Verão. Só lhe falta o cheiro do mar! Revejo-me na nossa casa de Espinho. É domingo e acabámos de almoçar. A mãe já arrumou a cozinha e está agora no seu quarto. Está sentada ao toucador, em frente ao espelho. Está a arranjar-se para sairmos até à esplanada. E eu estou junto de si, encostado à janela. Ora olho para si, que está a dar os últimos retoques no penteado, ora espreito por uma das duas janelas do seu quarto. Vejo lá em baixo a rua, onde os paralelos polidos brilham sob a luz forte de uma tarde de Verão e onde, a esta hora, passam ainda poucos carros. Olho para a direita. Vejo o largo circular, entre o edifício da Câmara Municipal e o jardim de Espinho. Olho em frente. O parque de campismo, onde outrora era um campo de ténis e de voleibol, está agora repleto de tendas e caravanas. Numa tenda azul, está um casal francês com dois filhos, um rapaz e uma rapariga, com quem tenho andado ultimamente. À esquerda, as árvores agitam-se levemente, cobrindo de abundante folhagem o largo onde, às segundas-feiras, gosto de passear por entre o movimento da feira, que semanalmente aí se realiza.

Aspecto da feira de Espinho, realizada todas as segundas-feiras, em 1953.

Olho para o largo da feira e reflicto acerca da mudança que se operou em mim. Aquela horrorosa multidão dos dias de feira, que me roubava o espaço livre onde costumava correr e brincar com os meus companheiros, tornou-se agora um local agradável.

Feira semanal de Espinho, em 1955, e campo de voleibol, posteriormente transformado em parque de campismo.

Cresci. Não sou mais o miúdo que por ali corria despreocupadamente. Agora, gosto de passear pelo meio da multidão. E, sobretudo, gosto de apreciar as zaragatas entre as vendedeiras, muito especialmente entre as varinas. Agora, é-me agradável observar-lhes os gestos obscenos no aceso da discussão e admirar-lhes as linhas bem feitas do corpo, com os seios salientes a quererem sair-lhes das blusas de chita. E aprecio com prazer toda a cena. Elas barafustam umas com as outras e arrepelam-se, mas ninguém se mete de permeio. Faço como os outros. Limito-me a apreciar a zaragata e a admirar-lhes as formas dos corpos ágeis e excitados pela bulha.

Subitamente, a cena da zaragata desvanece-se. Olho para baixo. Em frente à nossa casa, vejo aproximar um amigo e companheiro de escola. É o Sergito. Viu-me à janela e diz-me adeus. Diz-me adeus e dá-me os parabéns.

É verdade! Tem toda a razão em dar-me os parabéns. Fui, neste domingo, um felizardo. Fui o feliz contemplado no sorteio daquele programa dominical de rádio, à hora do almoço. Estou satisfeito! Acabei de ganhar um disco L.P., graças à mãe, que me deu a solução do problema no domingo anterior. Era mesmo Confúcio, a figura indicada no concurso do programa «Arco-Íris». E foi uma sorte incrível, não tanto por ter acertado no nome, mas por aquilo que aconteceu naquele domingo. Quando os locutores do programa extraíram o primeiro postal e anunciaram aos microfones da Emissora Nacional o nome do contemplado, ele era de Espinho. Mas, ao lerem a resposta dada pelo concorrente, verificaram que estava errada. Voltaram a extrair outro postal. Ao efectuarem a segunda extracção, ficaram admirados. O segundo concorrente a ser retirado do monte de postais era também de Espinho. Lembro-me perfeitamente da excitação do momento, na altura em que eles, sem ainda terem indicado o nome do contemplado, se admiraram pelo segundo postal ser também de uma pessoa de Espinho. Na altura, lembro-me bem, fiquei bruscamente excitado. Lembrei-me de que tinha concorrido e podia ser o meu postal. Para aumentar o clímax, não indicaram logo o nome do contemplado. Começaram por verificar se a resposta estava certa. Sim senhor! A resposta estava correcta. O nome indicado era o de Confúcio. Tal como a mãe me tinha dito. Para aumentar a expectativa, o locutor continuou sem dizer o nome e começou a ler a direcção. Era um morador da rua 19. E acrescentou mais um elemento: era um morador da Escola Primária N.º 1 de Espinho. Não podia ser outro. Os únicos habitantes daquela morada éramos nós. E lá acabou por se ouvir o nome de Ulisses de Almeida Ribeiro, o feliz contemplado com um L.P., com um concerto por Maurizio Polini, que seria enviado pelo correio no decurso da semana seguinte.

Em casa dos nossos amigos, também costumavam ouvir o programa «Arco-Íris». Era um programa ouvido aos domingos na maioria das casas portuguesas, à hora do almoço. Também eles costumavam participar neste concurso, enviando semanalmente um bilhete postal com a solução do problema. E tinham ouvido o nosso nome. Daí o Sérgio ter passado à nossa porta. Vinha dar-me os parabéns. E nem precisou de bater à porta e entrar. Viu-me à janela e, no mesmo instante, deu-me os parabéns e voltou pelo mesmo caminho.

Estão a ver por onde a minha mente vagueia neste momento? Há pequenas coisas, quase imperceptíveis, que conseguem despoletar-me recordações que eu pensava há muito varridas da memória. Como explicar este fenómeno? Será mesmo das semelhanças climáticas? Ou será a necessidade de sair daqui deste desterro, deste «cu de Angola», como é habitualmente designada esta zona?

Mas a minha necessidade de evasão ainda não fica por aqui. Estou agora a saltar para outro domingo, muito mais próximo no tempo do que o anterior. Já não estou em Espinho, no tempo da minha infância. Vejo-me agora mais próximo, a alguns meses do embarque para Angola. Estamos a passar um fim de semana na Batalha, em casa de uns primos da mãe. Estou em vésperas de ir parar ao R.I. 15 de Tomar. Estou nos meus dois últimos dias de férias, após o período da especialidade em Mafra. Foi um fim de semana bem passado. Todavia, não consigo rever esses dois dias. Estou já no dia seguinte, na segunda-feira. Estou a ver-me na Estação Velha, em Coimbra. São agora catorze horas e o combóio a sair da estação. Lá estou eu, rumo a Tomar, sentado a um canto do compartimento, completamente sozinho, apesar das pessoas que me rodeiam. Estou voltado para dentro, isolado dos outros, cheio de dúvidas, a pensar naquilo que irei encontrar em Tomar. Na altura, estava ainda longe de imaginar que o período de Tomar iria ser o meu melhor tempo de tropa.

Neste momento, uma senhora borboleta teve o atrevimento de vir pousar mesmo no meio do aerograma. Tive de parar bruscamente a escrita, para não a atropelar com a esferográfica. Sim senhor! Mas que descaramento! Esta senhora borboleta, de enormes asas brancas, deu-se ao luxo de me trazer bruscamente à realidade. Fez-me sair daquele compartimento do combóio e regressar ao Alto Zaza. E sabem o que ela está agora a fazer? Anda, muito sem cerimónia, a passear sobre a folha amarela do aerograma. Acaba de desenrolar uma trompa muito comprida. Deve andar à procura de comida no aerograma. Ou será que é curiosa como as mulheres e anda a procurar decifrar o que já escrevi?

É Incrível! A descontracção deste belíssimo insecto é tal que, mesmo tocando-lhe com a ponta da esferográfica numa asa, continua tranquilamente a pavonear-se sobre a folha. Certamente deve saber que está em perfeita segurança, na companhia do alferes. Possivelmente já se deve ter visto a um espelho e sabe que nenhum ser humano teria coragem de aniquilar tamanha beleza!

Quem lhes vai tratando da saúde e não quer saber de belezas borboletais é a Zaza, a pequena, irrequieta, mas simpática macaca, aquela de quem já uma vez lhes falei e que me partiu, se ainda se lembram disso, a protecção de vidro do petromax. A Zaza, mal vê passar-lhe uma borboleta na frente dos olhos, manda um ágil salto e agarra-a com aquelas mãos pequeninas. E zás! Chama-lhe um figo! Segundo depreendi, as borboletas são como marisco para os macacos. Embora não o possa afirmar com conhecimento de causa, porque nunca me vi na pele de um macaco, apesar de muitas vezes os homens serem uns grandes macacos, creio que as borboletas são o marisco mais apreciado. Pelo menos, é o marisco preferido da Zaza, a seguir às aranhas, que ela se encarrega de eliminar aqui no destacamento. A única coisa de que a Zaza não gosta é dos pretos. Tem-lhes enorme aversão. Ela lá sabe porquê. E eu também. É o instinto que a faz detestá-los. Sabe, certamente de um ancestral saber, que para eles a carne de macaco é um petisco dos mais apreciados. Por isso, não quer nada com eles. Não há aqui no destacamento nenhum soldado de cor que consiga aproximar-se dela. Arreganha-lhes a dentuça e desata numa enorme gritaria.

 

Página anterior Home Página seguinte