Uma visita no destacamento e destruição de um monumento

Os três dias desta semana foram passados integralmente na área do meu destacamento. Na segunda feira, dia 15 de Janeiro, saí de Quimbele para o Alto Zaza pouco depois da hora marcada. Foi uma viagem rápida e sem problemas. Da parte da tarde, pelas catorze horas, mobilizei outro condutor e outra secção para ir comigo levar o correio e o reabastecimento à Camuanga. Foi uma viagem rapidíssima e também sem problemas, em que batemos os recordes anteriores de velocidade. Por uma questão de curiosidade, tive o cuidado de registar os tempos. Na ida, necessitámos de uma hora e quinze minutos, o que foi excepcionalmente bom. No regresso, o condutor, talvez influenciado pelas minhas cronometragens, acelerou um pouco mais e conseguiu baixar o tempo para uma hora e oito minutos. De modo que, tendo saído do destacamento às catorze horas, ainda não eram dezassete quando despi o camuflado e procurei tirar uns momentos de descanso na companhia dos furriéis.

Ao final da tarde, antes do escurecer, tive uma visita inesperada, trazida pelo Joaquim, o rapaz que trabalha no destacamento e a quem confiei, há já alguns dias, a limpeza do edifício do comando.

O Joaquim é um moço jovem, de 15 ou 16 anos, muitíssimo inteligente, com quem fiz um contrato: eu dou-lhe explicações de Matemática, Francês e Português, para ele fazer o primeiro ciclo do liceu; ele dá-me explicações de Quicongo, para eu poder aprender a língua local e elaborar uma gramática e um minidicionário.

Estava eu a tomar umas bebidas com os furriéis, quando chegou o Joaquim da sanzala:

— O meu alferes dá licença?

Olhei para o Joaquim e estranhei ele estar a pedir-me licença. Habitualmente, circula inteiramente à vontade, sem necessidade de estar com formalidades. Mas não vinha só. Trazia com ele um miúdo de nove anos.

— O meu alferes dá licença? — repetiu o Joaquim, perante a ausência de resposta.

— Entra, Joaquim. Não precisas de autorização.

— É que eu não estou só, meu alferes. Está aqui o Cabukola.

— Podem entrar. Entrem. Estejam à vontade.

— Meu alferes, quero apresentar o Cabukola ao meu alferes. É filho do rei de Manaúta. Traz uma prenda para o meu alferes.

Cumprimentei o jovem que me era apresentado e pedi ao Joaquim que fosse buscar uns refrigerantes e uns pacotes de bolachas sortidas, para receber a visita.

— O Cabukola é filho do rei de Manaúta. — retomou o Joaquim, depois de ter posto as coisas na mesa e servido as bebidas. Quer oferecer uma prenda ao meu alferes.

O miúdo entregou-me uma miniatura de um unimogue, feita por ele. É um brinquedo construído integralmente de bordão, uma madeira leve e facilmente trabalhada com uma navalha. Reproduz fielmente os unimogues em que andamos nas picadas. A réplica, com uns cinquenta centímetros de comprimento, está tão perfeita, que não lhe falta nada. Lá estão todas as peças na escala certa: os dois bancos da cabina, o volante, a alavanca das velocidades e o banco corrido dos soldados sobre a caixa traseira. As rodas da frente giram sobre um eixo central, que permite que a viatura descreva as curvas. As rodas de trás, giram num eixo seguro numa cinta metálica, das que envolvem os nossos caixotes, funcionando como suspensão.

Admirámos todos a perfeição do modelo. Colocámo-lo sobre a mesa em que tomamos as refeições, ao lado das bebidas e dos pratos com as bolachas, que íamos saboreando. Alguns furriéis quiseram experimentar a viatura. Fizeram algumas manobras a simular o estacionamento, para satisfação do miúdo, que via o seu trabalho apreciado e admirado por todos e cujos olhos brilhavam de prazer.

 

Tenho a minha escrita quase em dia. Daqui por uma hora, mais coisa, menos coisa, deve estar o sol a nascer. Também já não me falta muito para terminar este longo e minucioso relato. Comecei a carta no dia 16. Retomei-a no dia seguinte, depois do jantar e estamos, neste momento, na madrugada do dia 18. Foram dez dias de acontecimentos registados com alguns avanços e recuos no tempo.

No começo desta carta, fiz referência ao meu corte de cabelo e, mais adiante, à decepção sofrida com a destruição da minha barbearia matinal. Apenas fiz uma breve referência a estes factos, tendo deixado no interior da caneta os pormenores e muitos outros acontecimentos. É agora chegada a altura de espremer o tubo da esferográfica e retomar os acontecimentos recentes.

 

Anteontem, referi o corte de cabelo, mas nada disse acerca da reconstrução do forno do pão. Pois é verdade. Além da tosquia matinal do meu capim capilar, do começo da escrita desta carta e da passeata pelo destacamento, em que fui fotografado pelo furriel Rodrigues, outros eventos dignos de registo ocorreram aqui no Alto Zaza. Um deles, que não vou desenvolver, diz respeito à ampliação do forno do pão, do forno que há dias havíamos reconstruído após um monumental desabamento. O velho Manel deu início à actividade de ampliar o forno, apoiado por um dos furriéis, alguns soldados e miúdos nativos. Durante a manhã, foram feitas várias fornadas de pão, para que não nos falte nos próximos dias. Da parte da tarde, depois de ter arrefecido quase completamente, procedeu-se ao desmantelamento cuidadoso, para aproveitamento do material de construção. No dia seguinte, foi uma viatura a Quimbele para aquisição de mais tijolo burro. Em breve, iremos fazer a inauguração solene do forno ampliado. Estamos a pensar ir a uma sanzala comprar leitões e assá-los à maneira da Bairrada. Com um forno novo e de grandes dimensões, será um desperdício ficar limitado às fornadas de pão. Poderemos utilizá-lo para melhorar as nossas refeições com óptimas ementas, tais como: leitão à Bairrada, bacalhau assado no forno, carne assada com batatas, etc. Como vêem, boas ideias não nos faltam.

Ontem de manhã, como já referi, foi o dia em que destruíram a minha barbearia particular. Veio ao Alto Zaza uma viatura do destacamento do Quitari efectuar o reabastecimento. Ao fazer marcha atrás, para encostar à porta da cantina, situada na extremidade do meu edifício, o condutor não reparou no monumento e bateu-lhe em cheio com a traseira. Foi uma autêntica calamidade, bem pior que um tremor de terra. As colunas laterais de tijolo e cimento, que suportavam a mesa superior e entre as quais ficava o brasão de uma companhia anterior à nossa, não aguentaram a violência do embate. Foi um desmoronamento ruidoso e aparatoso.

Logo, quando chegar a altura de fazer a barba, vou ter de improvisar e ver se consigo aproveitar alguma coisa do monumento. Talvez consiga arranjar algum espaço onde colocar os diferentes utensílios. Habituei-me já de tal modo a esta rotina matinal, que não vejo outro sítio melhor para fazer a barba.

No Alto Zaza - Angola - Sector de Uíje - Janeiro de 1973.

Tenho de começar a pensar no problema: ou mando reconstruir o monumento, ou mando-o remover dali. Ruínas em frente ao edifício de comando é que não pode ser. Dão um mau aspecto! Veremos o que hei-de decidir, se entretanto não me surgirem outros problemas mais importantes e mais urgentes.

É altura de terminar a carta, Vou ver se ainda passo um pouco pelo sono, antes da alvorada. Durante a manhã, aproveito para dobrar e colar todos os aerogramas. Faço um volume, passo-lhes uma cinta de papel em volta e meto-os no saco do correio.

Um beijo para todos. Até breve.

 

P.S. — Esqueci-me de dizer que recebi ontem de manhã uma carta da minha prima Manuela, cuja leitura me deu grande prazer. Uma das minhas próximas cartas será para ela. Para vós, mandarei o duplicado a químico, com mais algumas palavras de introdução

Não se esqueçam de me escrever e me irem dando notícias daí. O pai que não se esqueça de satisfazer os meus pedidos. As vossas palavras são muito importantes para me ajudarem a suportar este isolamento.

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