Visitas ao hospital de Quimbele e missão e inauguração do cinema |
Rebobinemos quatro dias a máquina do tempo e revivamos os acontecimentos. Com o recuo de quatro dias, regressámos ao fim de semana de 13 de Janeiro de 1973, ao sábado em que arranjei o pretexto para regressar a Quimbele. Cheguei aqui à hora do almoço, depois de uma rápida viagem sem problemas. Estamos precisamente no ponto em que interrompi o relato, que não teve uma sequência cronológica rigorosa, devido às vossas perguntas acerca da Rosa. Espero que não me façam mais nenhuma, para poder terminar esta carta. O resto do sábado foi passado na companhia dos meus camaradas. Durante parte da tarde, estivemos no edifício do cinema, onde acompanhámos os últimos preparativos para a inauguração do dia seguinte. Ao fim da tarde, ainda não tinha chegado o civil que foi buscar as bobinas com o filme que vai ser projectado amanhã. Ainda não sabíamos qual o filme com que a sala ia ser inaugurada. Apenas tínhamos uma certeza: nunca poderia ser um filme em cinemascópio e muito menos em 70 milímetros, uma vez que a máquina de projectar é de modelo já bastante antiquado. A manhã de domingo foi passada na companhia do Dr. Graça Marques. Para serviço dele, que tem a obrigação de ir todas as manhãs ao hospital de Quimbele, o capitão cedeu-lhe um jipe. Convidou-me a ir com ele, para me ajudar a passar a manhã: — Ulisses, já conheces o hospital de Quimbele? — Ainda não. Passo ao lado sempre que venho do Alto Zaza, mas ainda não tive a oportunidade nem a necessidade de lá ir. — Então, anda daí. Vais ficar a conhecê-lo. Tenho de ir fazer a visita matinal aos doentes. Saímos da messe de oficiais e fomos ao parque auto, situado nas traseiras, buscar o jipe do capitão. Em breve, descíamos a avenida principal, contornávamos a curva a seguir ao Briosa Bar e seguíamos pela longa recta, entre a povoação e a colina do hospital, ladeada por uma fiada de casas e estabelecimentos comerciais. Durante o breve percurso, lembrei-me da máquina fotográfica, que enfiara no bolso das calças do camuflado, antes de sair do destacamento. — Quando voltarmos do hospital, vamos à messe buscar a máquina fotográfica e depois à encosta da colina de Quimbele. Não te importas, pois não? — De modo nenhum. Queres aproveitar a viatura para tirar umas fotografias? — Claro. Não é todos os dias que tenho um condutor da tua categoria. Aproveito a tua companhia para tirar mais umas fotos da povoação, para mandar aos velhotes. Serão uma excelente ilustração para os meus aerogramas. — Continuas a fazer longos textos para eles? — Evidentemente! É a melhor maneira de me sentir na companhia deles e de ajudar a passar o tempo. Os dias são longos e as noites extensíssimas no destacamento. O diálogo foi curto e rapidamente interrompido. Em menos de cinco minutos, tínhamos percorrido a distância entre as duas colinas. Saímos da estrada alcatroada, que curva para a direita em direcção a Luanda, e subimos a rua de terra batida até ao hospital. O hospital de Quimbele é formado por um conjunto de dois edifícios térreos, afastados um do outro cerca de vinte a trinta metros, bem no centro de uma colina cujo cimo apresenta um formato arredondado de reduzida inclinação. Esta é tão suave, que forma um planalto. Ao lado do edifício mais pequeno, uma mangueira de elevado porte e copa arredondada e larga oferece uma vasta área circular de sombra, onde os nativos costumam esperar, enquanto aguardam as horas das visitas aos familiares ou que eles sejam atendidos nos dias de consulta ou tratamento. Entrei com o médico na enfermaria e acompanhei a visita aos poucos doentes internados. Demorámos uns minutos mais junto de duas moças nativas, que tinham dado à luz há dois ou três dias. O médico conversou um pouco mais com elas, para se inteirar do estado de saúde das duas crianças. — Já assististe a algum parto? — perguntou-me o Graça Marques. — Por enquanto, ainda não. Não faço a menor ideia como é que nasce uma criança. Ou antes, sei como é, mas nunca assisti a nenhum parto. — Então, deixa estar. Um destes dias, quando estiveres na tua vez de ficar em Quimbele, desafio-te a vires dar-me uma ajuda. Pode ser que ainda te venha a fazer jeito, quando estiveres isolado nos destacamentos. Já que queres aprender a tratar dos doentes, será mais uma maneira de completares os teus verbetes. E vais ficar espantado, quando vires nascer uma criança de cor. É totalmente branca, como todas as crianças do mundo. — Mas como? Não são pretas quando nascem? — Não. Exactamente como todas as outras. São totalmente brancas. Só mais tarde a pigmentação da pele começa a adquirir a cor escura. Já deves ter reparado que as palmas das mãos e dos pés são rigorosamente brancas, como as nossas. A cor escura não foi mais do que uma adaptação do corpo às condições climáticas. Até tu já não és completamente branco, como quando saíste da metrópole. Ainda não deves ter dado conta, porque a alteração processa-se lentamente e foste-te habituando. Mas se os teus pais te vissem agora, achar-te-iam estranho, porque também a tua cor de pele já não é a mesma. Olha bem para ti, quando estiveres a tomar banho, e repara na diferença de tonalidade entre as partes expostas ao sol e as que estão permanentemente protegidas. Será a melhor maneira de notares que adquiriste já um tom branco sujo, a fugir para o acinzentado. — É verdade, sim senhor. Já tinha notado uma mudança esquisita na minha pele, mas nunca pensara no problema dessa maneira. Já aprendi mais uma coisa. Já valeu a pena ter saído contigo. Quando estiveres nas vésperas de um parto, avisa-me com antecedência, para trazer a máquina fotográfica. Aproveito para fotografar a sequência completa do nascimento de uma criança. A visita ao hospital demorou muito mais do que prevíramos. A entrada em todas as salas, para eu ficar a conhecer as instalações, e as conversas com os poucos doentes, especialmente com as duas jovens mães, fizeram com que a manhã tivesse passado num instante. — Temos que nos despachar. — disse o médico, olhando para o relógio. Daqui a pouco são horas de almoçarmos. Já não temos tempo de ir à messe buscar a máquina. É preferível irmos directamente para o café, para tomarmos um aperitivo antes do almoço. O que é que achas? — Paciência! Tira-se a fotografia noutra altura. Vamos lá despachar-nos. Por este andar, nem tempo temos para o aperitivo. Depois de um excelente frango de churrasco, bem temperado com gindungo, acompanhado com batatas fritas e um razoável vinho tinto da metrópole, do fornecido às forças militares em pipas, fomos tomar a bica ao Briosa Bar, o local onde ocupamos a maior parte dos tempos livres. Descemos a avenida principal no jipe, agora conduzido pelo capitão. Éramos cinco, para uma viatura de dois lugares apenas. O mais forte, sentou-se no lugar da frente, ao lado do condutor. Os três restantes, mais magros, tiveram de se apertar atrás, sentados na caixa lateral sobre as rodas. Embora o jipe tenha apenas dois lugares à frente, o espaço atrás, com a cobertura horizontal sobre o rodado traseiro, dá para nos sentarmos de costas para a berma da estrada. Como o piso é alcatroado e a distância curta, a dureza da chapa não teve tempo para nos amolgar e magoar as almofadas traseiras. — Então vocês, com uma messe de oficiais, têm de ir tomar a bica a um café? — estão aí a perguntar-me da Metrópole. Não têm dinheiro para ter uma máquina na sede da Companhia? Estão pior que no destacamento? De modo nenhum! Não estejam aí a imaginar que estamos assim tão mal. A sede da 3ª Companhia, instalada em Quimbele, tem as melhores instalações. Tomáramos nós ter, nos destacamentos, as regalias que a tropa tem nas sedes das companhias! A messe de oficiais tem todas as comodidades inerentes a uma messe de oficiais, tal como aí na Metrópole. Mas tomar o café na messe, a seguir às refeições, não é a mesma coisa que ir tomar o café a um lugar público. Só ao pequeno almoço é que o café da messe tem o sabor normal. Depois das grandes refeições, o que queremos é estar longe de tudo o que nos faça lembrar a tropa. No Briosa Bar, além de uma máquina de tipo Cimbalino, de grande qualidade, que tira uns cafés excelentes, há uma coisa importante que nunca pode existir numa messe ou bar de oficiais: o ambiente de um café civil. No Briosa Bar, além de um bom serviço, temos a vantagem do convívio com os civis de Quimbele, com quem podemos passar uns bons momentos de conversa. Para isolamento, chegam-nos as longas semanas no mato. — Vamos discutir o pagamento das bicas? — propôs o capitão. — Não dá! — disse o médico. Somos cinco. Não dá para fazermos pares. — Isso não é problema. — disse um alferes. O facto de estar o Ulisses a mais não impede que façamos pares. — Como não é problema? — retomou o capitão. Cinco não dá para formar pares. Só se jogássemos individualmente. E cinco não dá para registarmos a pontuação, além de que nunca mais acabávamos uma jogada. — Isso não é problema. — acrescentei eu. Como estou a mais, fico a ver-vos jogar. — Nada disso, — retomou outro alferes — podemos jogar na mesma a pares. Basta que juntemos um civil ao grupo. Também costumam jogar connosco e podemos convidar aqui este nosso amigo, que entrou no café ao mesmo tempo que nós. Como as folhas em que registamos a pontuação só têm duas quadrículas, em vez de uma folha usamos duas. E fica o problema resolvido. O civil, que costuma habitualmente alinhar connosco nas pastucadas, não se pôs de fora. E o capitão propôs imediatamente: — Acho bem! Já que é o Ulisses que está a mais, é com ele que o nosso amigo vai jogar. — Mas como? Não é costume tirarmos os pares à sorte? Cada um lança um dado. O que tirar o valor maior faz par com o maior valor seguinte. Em três lançamentos ficam escolhidos os pares. — Boa, Ulisses. Estou de acordo contigo! — disse o alferes que sugerira o convite do civil para jogar. É a sorte que dita a formação dos pares. Enquanto fazíamos a escolha dos pares, para iniciarmos a partida, eram servidos os cafés. — Como é? A equipa que no final tiver a menor pontuação paga a totalidade da despesa? — Claro, capitão. É assim que jogamos sempre. Não precisamos de alterar as regras só porque estamos a jogar seis em vez de quatro. São as regras do costume. O jogo esteve renhido e animado com diferentes conversas. Como éramos seis a jogar, formando três pares, prolongou-se por mais de uma hora, o que nos ajudou a passar uma boa parte da tarde. Por volta das quatro horas, com a batota já terminada, o doutor Graça Marques desafiou-me para ir dar uma volta: — O capitão vai precisar da viatura da parte da tarde? — Não. Porquê? — Estava a pensar ir fazer uma visita à missão de Quimbele. Ainda não tive oportunidade de conhecer e cumprimentar os missionários. Aproveitava o jipe e a companhia do Ulisses para ir até lá, se mais ninguém quiser fazer-nos companhia. A conversa estava animada naquele momento. Discutia-se sobre a rentabilidade ou não de uma sala de cinema em Quimbele. Estavam ali alguns dos sócios da iniciativa. O capitão era um dos que dizia que uma iniciativa daquelas era um tanto arriscada. Por isso, não queria interromper a conversa. Pelos vistos, só eu e o médico é que já estávamos fartos daquela série de opiniões, que não conduziam a lado nenhum. O capitão deu a chave da viatura ao médico e saímos os dois do café. — Já começava a ficar farto de tanta discussão! — desabafou o médico, assim que saímos dali e ocupámos os lugares na viatura. — Também eu! É uma conversa estéril, que não leva a lado nenhum! — Só depois de efectuada a experiência é possível saber se uma iniciativa dá ou não resultado. — Penso que é capaz de ter sucesso — alvitrei eu. Lembra-te que Quimbele é uma povoação já razoavelmente desenvolvida. Há muitos civis brancos e muitas sanzalas nas redondezas. Os nativos têm dinheiro. Ganham bastante com o café, a mandioca e as frutas que nos vêm vender. Alguns são já razoavelmente evoluídos e não sabem o que é o cinema. Devem ter a curiosidade de saber o que é e, vendo uma vez, vão certamente gostar e acabam por criar o hábito de vir periodicamente gozar este novo prazer. E os quatrocentos ou quinhentos civis, creio eu, que compõem a população branca de Quimbele, como não têm cá televisão para passar o tempo, quase de certeza que, aos fins de semana, querem assistir a um espectáculo de cinema. Penso que a ideia da sociedade que montou a sala vai ter pleno sucesso. Mesmo com filmes antigos, cujo aluguer deve ser mais barato, vão acabar por facturar umas notas. — És capaz de ter razão! Vais assistir, logo, à inauguração? — Claro! Porque achas que arranjei o pretexto de reabastecimento ao fim de semana? Em poucos minutos tínhamos descido a rua principal e chegado à estrada que conduz à missão. Esta fica situada no cimo de uma colina densamente arborizada, a três ou quatro quilómetros de distância. Vista de Quimbele, a missão parece minúscula, com várias janelas e telhado vermelho a sobressair por cima da copa das árvores. Uma vez chegados, a impressão de pequenez dá lugar a um edifício de grandes dimensões. Com rés-do-chão e primeiro andar, a missão tem um formato rectangular. A parte térrea é constituída por salas de aula, envolvidas, no lado da frente, por uma estreita área coberta com colunas e arcos de volta inteira, que fazem lembrar os claustros dos conventos. Sobre estas colunas, assenta o primeiro andar, cujos compartimentos, de cada lado de um longo corredor central, apresentam maiores dimensões que as salas do rés-do-chão. No cimo do telhado vermelho, de cada extremidade, um pára-raios protege os moradores das trovoadas frequentes na região. Nas traseiras, uma vasta área plana é o espaço onde os jovens que frequentam as aulas correm, brincam e efectuam jogos de futebol. Esta zona de recreio deve ser tanto ou mais ampla que o campo de futebol de Quimbele. Fomos muito bem recebidos pelos missionários. Levaram-nos para a sala de visitas, onde nos serviram umas bebidas frescas e conversámos durante um largo espaço de tempo, depois de nos terem mostrado as instalações da missão. Apesar do sotaque italiano, falam perfeitamente o português, havendo mesmo entre eles quem fale razoavelmente a língua indígena, que o Joaquim me anda a ensinar no destacamento. Antes de nos despedirmos, o doutor Graça Marques voltou a oferecer os seus serviços como médico e prometemos aceder ao convite, muito brevemente, de virmos almoçar com os padres da missão e com eles passar um domingo. Não dissemos quando, mas garantimos que, numa próxima oportunidade, daríamos cumprimento à nossa palavra. O resto do dia passou-se razoavelmente bem e depressa. Em breve, tínhamos jantado e aguardávamos no café a hora de irmos assistir à inauguração do cinema. — Ouçam lá, — disse o capitão — paguem a despesa e vamos para o cinema. São quase nove horas. A sessão está marcada para as nove e meia. Paguei a despesa a meias com o meu parceiro. Desta vez, tive azar. Costumo ter a sorte de me safar. Raramente fico em último lugar. Apesar de termos jogado com os meus dados, que andam sempre comigo na carteira, desta vez deixaram-me ficar mal. Pagámos a despesa e saímos, directos ao centro da povoação. Na área envolvente do cinema, havia já muitos curiosos. No passeio em frente à bilheteira, havia uma fila de compradores, à espera que ela abrisse, para apanharem os melhores lugares. Entrámos na sala. Eram dados os últimos retoques. — Vais ter de comprar o teu bilhete. — disse-me o capitão. Nós temos aqueles lugares reservados atrás, junto à porta, destinados às autoridades locais. Só contaram com quatro lugares: um para mim, três para os restantes oficiais, contando com o médico. Tu estás a mais. — Não é problema! Não é por causa disso que hei-de ficar sem lugar. — Não é preciso, — disse um dos sócios, que ouviu a conversa — o alferes não fica sem lugar. Arranja-se mais um lugar para o alferes. Já nos deu alguma ajuda e companhia, nos dias anteriores, quando dávamos os últimos arranjos na sala. Tenho todo o prazer em arranjar-lhe um lugar reservado ao lado dos outros oficiais e das autoridades locais. — Andas cheio de sorte! — acrescentou o capitão. — Também não era pelo preço de um bilhete que ficava sem ver o filme. Ainda tenho dinheiro que chegue para comprar muitos bilhetes. E espero vir muitas vezes aqui passar uns bons momentos de lazer, aos fins de semana, quando for a minha vez de ficar em Quimbele. É preciso ajuda para alguma coisa? — perguntei a um dos donos. — Obrigado, alferes. Não é preciso nada. Já está tudo em ordem. Deve estar a chegar o Senhor Administrador. Façam-lhe companhia, enquanto a sessão não começa. Passava pouco das nove da noite, quando abriu a bilheteira. A bicha estava comprida. Estendia-se ao longo do passeio, iluminada pelas lâmpadas fluorescentes dos candeeiros da iluminação pública. O som baixo do gerador, no quarteirão contíguo ao campo de jogos, que habitualmente atravessa as paredes do edifício e se ouve ligeiramente, no silêncio da noite, era abafado pelas conversas dos civis, pretos e brancos, que aguardavam a vez de comprar os bilhetes e a abertura da sala. Só às vinte e uma e vinte foram abertas as portas. Pouco a pouco, a sala foi-se enchendo de gente, até esgotar completamente a lotação. A casa estava superlotada. A curiosidade era superior à capacidade do cinema, tendo ficado muita gente de fora. Passavam dez minutos da hora prevista quando se iniciou a sessão. Não se apagaram as luzes. Um dos sócios subiu ao pequeno palco, no fundo do qual fica o ecrã, para dar as boas-vindas aos presentes e dizer algumas palavras prévias, antes do início da projecção. Foi breve na intervenção. Agradeceu a presença das autoridades locais, a colaboração dada na construção do cinema e o interesse manifestado por todos os presentes, tendo feito votos para que Quimbele possa ter, todos os fins de semana, sessões regulares de cinema aos Sábados e Domingos. Embora estivessem só previstas inicialmente sessões aos domingos, verificavam, pela afluência e interesse dos presentes, no primeiro dia, que, possivelmente, teriam suficientes espectadores para encher a sala em dois dias consecutivos. Deste modo, as sessões passariam a preencher regularmente os dois dias do fim de semana, podendo haver ligeiras alterações em dias festivos. Antes de se apagarem as luzes, passeei um olhar atento pela sala. Não havia um só lugar livre. A sala estava repleta de cabeças atentas. Predominavam os cabelos lisos e ondulados, mas também se viam muitas carapinhas de nativos, para quem o cinema devia ser novidade. As cadeiras da sala são um tanto primitivas, de fundo e costas de madeira. São provenientes de um antigo cinema desmantelado algures, cujo material foi adquirido a preço bastante baixo pelos sócios que construíram esta sala. Embora duras, apresentam mesmo assim um razoável conforto e cumprem ainda muito bem a função para que foram criadas. Apagaram-se as luzes, ao mesmo tempo que incidiram no ecrã os primeiros raios luminosos do projector. Fez-se um silêncio imediato de atenção e curiosidade. Como em qualquer espectáculo habitual da Metrópole, a sessão começou pelos documentários e as notícias sobre a situação no mundo e no país, que toda a gente seguiu atentamente em silêncio. Antes do primeiro intervalo, houve um momento em que o silêncio foi quebrado pelas gargalhadas francas e generalizadas de todos: eram os desenhos animados. Os dez minutos de intervalo mal deram para alguns saírem e fumarem um cigarro, enquanto uma boa parte dos espectadores preferiu ficar na sala a conversar. Depois do primeiro intervalo, começou o filme «Um homem sem medo». É um filme já antigo, mas que eu ainda não tinha visto. Agradou a todos. O tempo pareceu ter passado de maneira mais rápida que o habitual, tendo a acção movimentada do filme sido vivida de maneira intensa por uma boa parte dos espectadores, que reagia ruidosamente, metidos na pele do protagonista. Tiveram seguramente reacções mais vivas que os primeiros espectadores parisienses, que assistiram, na sala do Salão Indiano do Grande Café de Paris, à projecção dos filmes dos irmãos Lumière. Se então reagiam com admiração e, por vezes, com algum receio às fotografias animadas das primeiras curtas metragens, imagine-se como reagiram estes espectadores, ao sentirem-se metidos na pele do protagonista e ao acompanharem uma acção carregada de peripécias e de cenas de violento tiroteio, em que o herói teve de enfrentar, sempre destemidamente, hordas de antagonistas, que pretendiam eliminá-lo da superfície do planeta. E este filme foi certamente o tema das conversas nos dias seguintes. Terminada a sessão e encerrada a sala, fomos convidados para um pequeno convívio pelos civis que montaram o cinema. Abriram-se umas garrafas de espumante, beberam-se umas taças, pesticou-se e falou-se um pouco de tudo, especialmente de projectos futuros. Abandonei o grupo pouco depois da uma da manhã. O médico aproveitou a minha companhia para sair também. Tinha de aproveitar as poucas horas de sono. Combinara com os meus homens regressar ao destacamento às oito e meia da manhã e esperavam-me muitas horas de picada no dia seguinte. |