Consequências dos espinhos das rosas

Pelas quatro da manhã, estava a sonhar, não com guerras, não com Angola, não com a Rosa, mas com mulheres. Surgiu-me uma rapariga com quem, antes de embarcar para África, costumava passar longas horas de prazer. Essa rapariga simples, sem estudos, conseguira, após muitas tentativas infrutíferas, atrair a minha atenção  e interesse. E conseguira-o de tal modo, que a indiferença inicial acabou por se tornar numa atracção irresistível e invulgar, ao ponto de, até hoje, nunca ter encontrado outra que, como ela, conseguisse fazer com que as horas na sua companhia ficassem reduzidas a segundos. Lá estava ela, em sonhos, a lembrar-me que ainda existia, apesar de a ter votado a um esquecimento de meses.


Quando me encontrava com ela no melhor momento, acordo bruscamente com umas dores indescritíveis. Dir-se-ia que me tinham espetado agulhas na parte mais sagrada que um homem possui. O prazer da relação amorosa era bruscamente convertido num sofrimento atroz, pior que a pior das dores de dentes. Eram agulhas que saiam de dentro de mim e me dilaceravam.


Saí do edifício para a zona em frente ao comando. Junto a uma árvore, contorcia-me com dores, cerrando fortemente os dentes, para evitar fazer barulho. Tinha necessidade de urinar, mas um simples acto como este era um verdadeiro suplício, que me fazia contorcer.


A sentinela, que estava naquela zona, do lado da entrada do destacamento, apercebeu-se da minha presença e da minha aflição e aproximou-se:


— O meu alferes está doente? Está com dores? Quer que vá acordar o cabo enfermeiro?


— Não, não é preciso. Obrigado. Isto não é nada. É uma dor que há de passar.


Foi uma noite infernal. Deitava-me, adormecia e começava quase imediatamente a sonhar com mulheres. E imediatamente me via dilacerado com dores. Mesmo sem ter que urinar, estava frequentemente com vontade de o fazer e era obrigado a levantar-me e vir à entrada do edifício.


A certa altura, já nem conseguia dormir. Mal fechava os olhos, começava de novo a sonhar com mulheres. E mal elas me surgiam, acordava bruscamente, antes que elas me fizessem ir mais longe e contorcer com dores. Foi uma noite verdadeiramente infernal!


Durante toda a manhã, andei atrapalhado. Para que ninguém me visse contorcer com dores, afastei-me do destacamento e andei pelos arredores, na orla da mata. No começo da tarde, escolhi um furriel e mandei-o rapidamente reunir uma secção para ir comigo urgentemente para Quimbele.


Parámos em frente ao Briosa Bar. Graças a Deus, estava lá o médico na companhia dos outros oficiais, tal como tinha previsto. Dei ordens ao furriel. Só regressaríamos no dia seguinte ao Alto Zaza.


Cumprimentei o capitão e os meus camaradas e pedi licença para ir com o médico à enfermaria.


— O que se passa? — perguntou-me o capitão.


— É um problema urgente de saúde. Só o médico pode dar-lhe solução.


— O que é que se passa? — perguntou o Dr. Graça Marques, assim que saímos do café em direcção à enfermaria.


Contei pormenorizadamente tudo quanto se passou no dia anterior e, sobretudo, durante a madrugada deste dia.


— Apanhaste uma infecção. Pelos sintomas, estás com uma blenorragia.


— É grave?


— É a coisa mais banal desta vida! É o que a malta vulgarmente chama um escantamento. Eu bem te preveni, quando falámos da Rosa. Não tomaste as devidas precauções!


— Como não tomei? Claro que tomei!


— Então como é possível teres sido contagiado? Isto nunca poderia ter-te acontecido.


Contei o que se passou após a relação.


— Estou a ver! O teu pressentimento bateu certo. Acabaste por ser contagiado indirectamente, quando ela te limpou com a toalha. Nunca deverias tê-la deixado limpar-te.


— Não tive tempo. Foi tudo muito rápido.


— Há uma coisa que não estou a entender. Disseste-me que os furriéis já tiveram relações com a rapariga e que nada lhes aconteceu. Como é isso possível? Se ela está doente e eles não utilizaram qualquer protecção, já deveriam ter tido os mesmos problemas. Tens mesmo a certeza que já tiveram relações com ela?


— Pelo menos foi o que eles me deram a entender. Talvez tenham melhor resistência do que eu e estejam já imunizados.


— Não creio! Às tantas, a rapariga engraçou contigo e eles nunca chegaram a experimentá-la. Devem ter tido simples brincadeiras, sem chegarem a vias de facto.


— Não sei. Mas isso agora também pouco me importa. O que quero é resolver o problema e ver-me livre disto. É grave?


— Não! É coisa banal! Nada que não se cure com umas injecções de antibióticos. Com duas injecções diárias, em três ou quatro dias estás pronto para outra.


— Duvido. Enquanto me lembrar deste escaldão, tenho a impressão que não volto mais a picar-me em nenhuma rosa negra! Só se alguma me aparecer em sonhos! E mesmo assim, não acredito, porque deverei acordar instantaneamente. Seria preciso que alguma viesse a revelar-se como a mulher dos meus sonhos, o que duvido fortemente.


— Às vezes, nunca se sabe o que nos espera. O mundo dá muitas voltas e as nossas ideias também.


— Pois eu tenho fortes dúvidas. Embora já tenha encontrado, ainda em miúdo, a mulher ideal, e outras tenham surgido depois, já numa fase em que era mais crescido, só uma, até hoje, me fez conhecer a verdadeira felicidade amorosa. E essa, certamente, acabará por nunca vir a ser a minha companheira futura.


— Temos que falar mais vezes. Estou curioso em ouvir as tuas histórias e saber quem foram essas mulheres ideais, que conheceste em miúdo.


— Se a ocasião se proporcionar, pode ser que falemos desses tempos passados. Agora, preciso é de me ver livre da situação em que estou.


— Espero que a Rosa não tenha relações com mais ninguém. Se isso acontecer, seguramente que outros virão aqui procurar-me com o mesmo problema. À cautela, deves mandá-la sair do destacamento. Mas, antes disso, vais trazê-la aqui ao meu gabinete. Vou ter de a tratar também com uma dose de antibióticos, não vá contagiar-me o pessoal.


Não me vou alongar com mais relatos. Hoje é já o dia 6 de Janeiro. Praticamente, escrevi todo o relato dos acontecimentos aqui, em Quimbele, durante toda a madrugada. Com medo de adormecer, sonhar com mulheres e depois torcer-me com dores, não me deitei. Preferi manter-me acordado toda a noite, entretido a redigir este longo relatório. Para isso trouxe comigo a pasta da correspondência. Deveria pôr, no primeiro aerograma desta volumosa pilha, a indicação de Quimbele. Mas não o faço, porque a correspondência começou a ser redigida lá em cima, no destacamento.

 
Vão receber, talvez, o maior maço de sempre. Contabilizo já um total de sessenta aerogramas, que começaram a ser escritos há uma semana. Como este está a chegar ao fim, irão ser sessenta e um.


Acabo de reler o primeiro aerograma e de meditar sobre a reflexão que aí iniciei. O meu procedimento está incorrecto e será ele, talvez, o causador de não terem recebido regularmente correspondência minha. Por outro lado, como adoptei a estratégia de tirar uma cópia a químico, não há necessidade de estar para aqui a acumular aerogramas, desperdiçando remessas de correio. Todos os meus aerogramas vão passar a ser numerados, tal como faço com a correspondência oficial. Escrevo no cabeçalho a data do dia em que inicio a escrita de uma colecção. E vou-os enviando à medida que os for escrevendo. Para rever o que disse, tenho os duplicados que ficam comigo. Aí, apenas têm que os ordenar de acordo com a numeração no canto superior direito, o que irá também permitir que a mãe mos vá religiosamente arquivando, de maneira ordenada, numa pasta com argolas. A leitura dos meus relatos será feita por vós à medida que os for transpondo para estas «paralelas linhas» e que eles vos forem aí chegando. A sua leitura será como um romance em folhetins. A grande diferença é que, ao contrário dos romances tradicionais, cujo conteúdo é inspirado na fantasia e imaginação dos autores, os factos aqui relatados vão sendo o resultado da minha experiência forçada neste território, longe de vós e da civilização em que fui criado.


Vou agora dar-me ao trabalho de fechar e colar todos os aerogramas. São sessenta e um, como há pouco calculei. Constituem uma pilha volumosa, que vou envolver por uma ampla cinta de papel, para que não se percam.


A mãe (e também o pai, se tiver paciência para isso!) vai ter leitura para umas largas horas. Vai dar para compensar a semana em que estiveram sem notícias minhas.


Por aqui me fico! Um beijo de saudades para os dois.

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