Rosas no destacamento e problemas causados

Lembram-se, em aerogramas anteriores, de vos te dito que, no dia de Natal, foi uma secção à Camuanga, à procura de uma espingarda esquecida? Lembram-se de vos ter dito que, nesse mesmo dia, ao regressarem ao destacamento, tinham trazido para aqui uma Rosa negra? Lembram-se de vos ter dito que deveria tê-la recambiado imediatamente para a sanzala, mas que não tive coragem para decepcionar o pessoal? Pois este foi o meu mal!


Quando se colhem rosas, há sempre o risco de nos espetarmos naqueles espinhos afiados que protegem o caule. São espinhos afiados e traiçoeiros, que nos rasgam a pele e magoam, provocando o sangue. Nunca deveria ter deixado permanecer no destacamento uma mulher nativa que, para cúmulo, se chama Rosa. Se as rosas brancas são frequentemente bastante espinhosas, as pretas não são menos perigosas, exigindo uma manipulação cuidadosa, sendo mesmo aconselhável a utilização de umas luvas, para não nos picarmos nos espinhos.


Pois é verdade! A vinda da Rosa para o destacamento tornou o dia de Natal diferente dos outros dias. Os furriéis trataram logo de a instalar condignamente no nosso edifício. Trataram logo de lhe arranjar um canto para ter uma cama e passar a viver connosco. Logo nesse dia de Natal o ambiente tornou-se diferente. Durante o almoço, arranjámos mais um espaço à mesa para termos a Rosa na nossa companhia. Foi um almoço de Natal animado, em que o centro da atenção foi a Rosa.


Na tarde desse dia, antes de ter escrito uma série de aerogramas logo após o almoço, conversei com o furriel açoreano, que me falava entusiasmado da Rosa:


— O que é que pensa da Rosa, alferes?


— Não sei se será uma boa ideia!


— Porquê, alferes? Uma mulher entre nós faz sempre jeito e torna o ambiente mais agradável, mais humano, alferes.


— Não sei se será bom! Em primeiro lugar, não é permitido ter civis no destacamento e muito menos mulheres...


— Também cá temos o velho Manel, que é civil, e nunca ninguém disse nada.


— O velho Manel é outra coisa. Faz já parte da mobília da tropa! Além do mais é homem. Num destacamento não podem estar civis e muito menos mulheres! Em segundo lugar, é um mau exemplo.


— Um mau exemplo, alferes? Porquê? Que mal tem termos aqui uma mulher bonita? Toda a gente gosta da Rosa!


— Se os oficiais e furriéis permitem que uma mulher permaneça no mesmo edifício em que estão, também os soldados podem vir a ter a mesma ideia. E eu não posso permitir tal coisa.


— Alferes, já viu que tendo uma mulher entre nós passamos a ter um ambiente mais parecido com o que temos em nossas casas?


— Não estou a ver qual possa ser a semelhança, Donato!


— Uma mulher tem uma sensibilidade diferente da nossa. Sempre poderá cuidar das nossas coisas, arrumar-nos a sala com mais cuidado...


— Arrumar-nos o instrumento... E outras coisas! Estou mesmo a ver! Arrumar a sala, dar apoio psicológico ao homem e, às tantas, arrumar com ele, espetando-lhe alguma doença venérea, para não pensar noutras coisas piores!


— O alferes é muito pessimista! A rapariga é nova, bonita e de confiança, alferes.


— Como é que o Donato pode afirmar uma coisa dessas? Conhece-a de algum lado? Sabe quem ela é? Até poderá ser um elemento inimigo, perigoso, susceptível de passar informações a nosso respeito e pôr as nossas vidas em risco...


— Alferes, o que para aí vai! O alferes é mesmo muito pessimista!


— Acha isso?! Acha que a prudência agora se chama pessimismo? Quero chegar ao fim dos dois anos de comissão inteiro e com todo o pessoal à minha responsabilidade de perfeita saúde. Sou o responsável pela segurança e bem-estar de todos nós. Se houver algum azar, depois quem tem que responder sou eu. Sou eu o responsável.


— Alferes, não custa nada deixá-la ficar durante uns dias, para experiência. Logo se vê ...


— Só que as experiências, Donato, às vezes saem-nos caras...


— Alferes, se não for de confiança, manda-se embora. Ao menos, alferes, deixe-a ficar connosco durante este período, até à passagem do ano. É só uma semana de experiência!


— Seja como vocês querem. Vou autorizar a sua permanência durante uma semana, para experiência. Não quero que digam que o alferes não é vosso amigo! O pior, é se, com esta permissividade, não estou a ser inimigo de todos, sem querer!


— Não há de haver problemas, alferes!


— Exijo uma coisa: a Rosa fica proibida de entrar no meu gabinete. Nem mesmo para fazer a limpeza! E não a quero a passear sozinha pelo destacamento. Apenas pode circular na nossa messe, na zona onde comemos e vocês têm as vossas camas. E no espaço em frente ao comando.


— Está certo, alferes. Apenas andará nessa zona. Não a deixaremos circular sozinha pelo destacamento.


— Nem sozinha, nem acompanhada. Pode ter vindo convosco para aqui com o intuito de nos espiar.


— O alferes é mesmo desconfiado!


— Não é desconfiança. É prudência!


Os restantes dias tornaram-se ligeiramente diferentes. A Rosa passou a ocupar-se da arrumação da nossa «messe». Além de arrumar as camas dos furriéis, passou a dar um toque mais feminino à nossa sala comum. O chão passou a estar impecavelmente limpo. A mesa, após cada refeição, devidamente arrumada. As louças, uma vez lavadas pelos miúdos, logo colocadas nos sítios respectivos. As conversas tornaram-se diferentes. A linguagem dos furriéis tornou-se mais polida, ouvindo-se menos palavrões. Sem dúvida, os furriéis andavam entusiasmados com a Rosa. Era meiga, bonita, de convívio agradável e atenta às necessidades.


Embora a companhia da Rosa não me tenha desagradado, embora nunca lhe tenha mostrado má cara, evitei sempre dar-lhe demasiada confiança. Conversei sempre com ela. Mas evitei sempre revelar demasiada intimidade, apesar de ela estar sempre a procurar captar a minha atenção, apesar de estar sempre a dar-me mais atenção que aos furriéis, cujas simpatias e interesse facilmente captou, tendo mesmo conseguido, com alguns, situações de maior intimidade.


Não quero dizer que sinta qualquer animosidade relativamente a ela. O seu corpo jovem e de linhas harmoniosas é bastante atraente. Tem uma voz agradável e o seu «pretoguês» até nem é dos piores que tenho ouvido. Anda sempre bem vestida, com cores vistosas, que contrastam com o escuro brilhante da pele. O cabelo anda sempre bem penteado, com tranças pequenas e alinhadas, que lhe conferem um aspecto simultaneamente exótico e atraente. Mas... há sempre um subtil odor que me fere as narinas, apesar de se lavar frequentemente. Se algumas vezes o odor de colegas, que conheci no meu tempo de universidade, me desagradava, muito menos o odor desta rosa negra me poderia agradar!


Todos estes aspectos, apesar de quase todos positivos, fizeram com que, instintivamente, a tenha sempre mantido a uma certa distância. Distância física e psicológica. Não significa isto que revele qualquer animosidade para com a rapariga. Pelo contrário, não posso deixar de sentir uma certa simpatia por ela... mas... Certamente, o defeito será meu! Presto demasiada atenção a todos os pormenores. Os mais pequenos ruídos e odores perturbam-me e incomodam-me por vezes. E penso que isto deve ser defeito meu, porque os furriéis, esses, nunca manifestaram reacções como as minhas. Pelo contrário! Aceitaram-na imediatamente e mostraram-se entusiasmados, procurando cativar-lhe a atenção e disputar os favores.


Dois dias depois de ter a Rosa no destacamento, aproveitei uma volta na companhia do Rodrigues para conversar acerca dela.


— No dia de Natal, o Donato pediu-me para conservar a Rosa entre nós durante uma semana. Não sei se terei feito bem. Isto pode trazer-nos problemas.


— Que problemas, alferes?


— Já reparou que não sabemos rigorosamente nada acerca dela? Aqui, no meio do mato, relativamente próximos da fronteira, poderá ser um elemento de informação introduzido pelos terroristas...


— Que disparate, alferes! É uma rapariga da Cabaca. Vive na sanzala dos milícias. Se não fosse conhecida e de confiança, não vivia com os milícias.


— E o Rodrigues pode assegurar que entre os milícias não há terroristas? Já se esqueceu da apalpadela que tivemos há uns dias atrás?


— Não tenho motivos para desconfiar da Rosa. Já tive momentos bem agradáveis com ela. Converso muito com ela e parece-me de confiança.


— Isso são apenas aparências e conversas de cama. É dessa maneira que elas nos conseguem prender e extrair depois todas as informações que pretendem.


— O alferes tem lido demasiados romances de espionagem. A Rosa não é nenhuma espia. É uma moça da sanzala.


— É uma moça da sanzala, que dorme com qualquer homem...


— Ela não é isso que o alferes está a insinuar. Não é por dinheiro que ela está connosco. E digo-lhe mais: é uma rapariga meiga e sensível. E anda até desgostosa. Já desabafou comigo que toda a gente gosta dela, menos o alferes.


— Eu não gosto nem deixo de gostar, Rodrigues. Sou o responsável pela segurança de toda a gente. E se o Rodrigues não tem problemas em ter relações com qualquer mulher, mesmo que não a conheça minimamente, isso comigo já não funciona. Nem os animais têm relações de qualquer modo e a qualquer momento.


— Isso são preconceitos do alferes.


— Talvez sejam! Mas entendo que para haver relações tem de haver mais do que a simples atracção física. Nunca me ligaria a uma mulher sem ter um conhecimento seguro dela.


A conversa continuou ainda por algum tempo, girando à volta do mesmo problema. A transcrição que acabo de efectuar é mais do que elucidativa para ficarem com uma ideia das alterações no quotidiano trazidas pela Rosa.

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