Reflexão e hesitações devido ao melindroso dos factos a evocar

Ontem, dia 4 de Janeiro, acabei por não escrever absolutamente nada. Isto não significa que não tenha pensado em vós. Pelo contrário! Terminei as respostas à correspondência e falta entrar no relato dos acontecimentos. Não sei bem como nem por onde começar. Ontem, nas minhas deambulações pelo destacamento, fartei-me de reflectir no assunto. Nem mesmo o trabalho de capinar o quartel, iniciado pelo meu pessoal, foi capaz de me desviar das reflexões. O assunto que vou ter de relatar é melindroso. Dá-me que pensar.


Na minha cabeça, passaram relatos vários de obras que li no meu tempo de universidade. Não foi pelo conteúdo dessas obras. Foi para mentalmente rever as técnicas narrativas utilizadas pelos respectivos autores. Lembrei-me, por exemplo, das técnicas de Henri Bayle, que, na altura, me intrigaram. Tornaram-se-me claras quando as comparei com as técnicas cinematográficas. Surgiu-me na mente a cena em que Julien Sorel desmaia e a forma como o autor nos introduziu bruscamente na mente da personagem. Revi também as técnicas utilizadas por outros escritores, inclusive nacionais. Como nem poderia deixar de ser, vieram-me imediatamente à lembrança os dois escritores cuja leitura mais prazer me costuma dar: Garrett e Eça de Queirós.


Pensei naquilo que vou ter de relatar. Como os factos ocorreram comigo, sou simultaneamente o narrador e o protagonista dos acontecimentos. E isto é que é o grande problema. Há factos que, ao retomá-los, me irão causar problemas. Se, na realidade, já passei uns maus bocados, ao relatar-vos os acontecimentos volto outra vez a passar pela situação. Mesmo que agora seja uma situação evocada, revista na imaginação, as dores que terei de recordar, ainda que fingidas, irão coincidir com as sentidas na realidade, e que me fizeram vir de tarde, a toda a pressa, para Quimbele. São duas dores que se irão unir: as fingidas, imaginadas, evocadas no relato, e as que realmente sinto. Isto dá-me que pensar!


Mas o problema não se confina às dores duplicadas, quando, no meu relato, chegar a altura de as apresentar. Qual a estratégia que deverei adoptar, para que aí, na Metrópole, também vós possais viver os acontecimentos? Deverei manter-me na pele do protagonista? Ou será melhor colocar-me de fora, à distância, para melhor vos poder mostrar e fazer reviver a situação por que tenho estado a passar nestes últimos dias? Ou será melhor utilizar uma estratégia híbrida, assumindo alternadamente diferentes estatutos enquanto narrador e protagonista? E será que conseguirei dar conta do recado e sobreviver ao duplo suplício por que vou ter de passar?

A melhor solução seria esquecer as minhas promessas e saltar os acontecimentos. Era uma atitude bastante cómoda. Mas isso seria faltar ao prometido. E seria também uma espécie de cobardia da minha parte.

Mas o problema não se limita a isto! Não é só a dor duplicada que me preocupa. Não é só o problema das técnicas a adoptar ou de ser ou não capaz de abordar o assunto. O problema está também no destinatário. O problema é que o principal destinatário dos meus relatos é a mãe. É a mãe que vai ler e reler os meus aerogramas...


Estou a imaginar já a situação, perante um caso tão melindroso como este! Estou mesmo a imaginar o que se vai passar na cabeça da mãe, quando estas páginas lhe chegarem às mãos: «Como é possível que uma coisas destas possa ter acontecido ao meu filhinho?»


Quem anda na chuva da vida, mesmo usando impermeáveis e guarda-chuvas, acaba sempre por se molhar! E como a vida não pode ser vivida dentro de uma redoma, temos de aguentar com todos os salpicos da vida. Temos de ir amassando, a pouco e pouco, o nosso corpo, a nossa maneira de ser, com todas as formas de experiências da vida. O vinho do Porto, para ir ficando cada vez mais claro e melhorado, não tem de ser frequentemente trasfegado de uns tonéis para os outros? Também nós temos de nos ir trasfegando com as experiências da vida, para amadurecermos e adquirirmos novos conhecimentos. É a lei da vida. Ninguém lhe escapa. E sem a escola paralela, que é a vida, ninguém consegue evoluir. Os conhecimentos da escola são importantes. São eles que nos dão uma base científica mais ou menos sólida. Deles ficará sempre alguma coisa, quando a esponja do esquecimento passar pela nossa memória. Mas os conhecimentos da escola paralela, esses, moldam-nos e vão-nos enriquecendo e transformando lentamente, constituindo o substrato mais importante da nossa formação, que completa o que adquirimos nos bancos da escola. E a minha passagem por terras angolanas está-se a revelar uma grande escola de conhecimentos geográficos, humanos e ...


Estão a ver a que ponto se me está a tornar difícil entrar no relato dos acontecimentos? Sem querer, desvio-me do principal e caio na reflexão. Não pode ser. Não posso andar aqui eternamente a procurar pretextos para fugir ao assunto. Passemos ao relato dos acontecimentos, ainda que isso me custe.

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