Resolução de problemas em Quimbele

 
Imagens de uma operação na região do Alto Zaza, nordeste de Angola, em 21 de Dezembro de 1972, por elementos da 3ª Companhia do Bat. Caçadores 4511.

Durante o nosso almoço, procurei saber como decorrera o resto da acção, após a minha evacuação, e pus o capitão a par das situações imprevistas, que necessitavam de medidas urgentes e inadiáveis.

Após a minha ausência, devido ao adiantado da hora, o grupo pernoitou na antiga sanzala, onde fui evacuado. As etapas seguintes decorreram com mais facilidade. Além da zona ser menos acidentada que nos dois primeiros dias, aproveitaram os antigos trilhos, o que lhes facilitou a progressão. Quanto às fotografias com que pretendia documentar esta operação, infelizmente o alferes a quem confiei a máquina apenas utilizou as poucas imagens que restaram no rolo. Quando acabou, não sabia como tirá-lo da máquina e substituí-lo pelo de reserva. Por isso, tirou poucas fotografias. Ficou ele com o capitão, na sanzala onde pernoitaram na tarde da minha evacuação. São imagens que para mim não têm qualquer interesse, por não documentarem aspectos do decurso da operação. Agradeço-vos que mandem tirar as imagens em que eles estão em duplicado, para lhes oferecer.

Em relação às situações imprevistas, pus o capitão a par de tudo.

— Quando cheguei, hoje de manhã , aqui ao destacamento, fui informado que o forno do pão tinha ruído. Por isso, não temos pão fresco e temos a máxima urgência em resolver este problema.

— Como pensas resolver a situação?

— Falei já com o velho Manel. É ele o construtor dos fornos na região. Terei de ir convosco a Quimbele, com uma secção, para adquirirmos o tijolo. Vamos precisar da Berliet  para o transporte.

— E onde é que vão buscar o tijolo?

— O velho Manel sabe onde é. Vai connosco e efectua a aquisição. Apenas é preciso que o meu capitão forneça a requisição respectiva.

— E ele está disposto a isso?

— Claro que sim! Já combinei com ele. Além disso, é uma oportunidade que também tem de passar uns momentos em Quimbele. Carregamos os tijolos, descansamos uma meia hora e regressamos ao Alto Zaza. Temos também de trazer reabastecimento e as peças necessárias para os mecânicos repararem ainda hoje as viaturas.

— E onde é que vais buscar os acessórios e o reabastecimento?

— Em Quimbele. Já lá está tudo o que é preciso.

— Como é que sabes o que lá está?

— No dia vinte e um, o Vieira foi chamado ao comandante de batalhão. Esteve em Sanza Pombo. Regressou no dia seguinte com o furriel Rodrigues e levou o reabastecimento e material necessário, que chegou a Sanza na coluna em que veio o médico da nossa Companhia. Veio hoje comigo no heli e seguirá daqui a pouco connosco para a sede da Companhia.

— Muito me contas. Estás mais bem informado do que eu. Até pareces o comandante da companhia. — ironizou o capitão.

— E ainda não disse tudo. — acrescentei, aproveitando a embalagem.— Ainda hoje é  preciso pôr as viaturas do Alto Zaza operacionais. Amanhã é véspera de Natal. Temos de levar comida ao pessoal da Camuanga. Senão, passam o Natal de barriga vazia.

— Quantos homens vão a Quimbele?

— Acho que uma secção chega. Distribuímos os meus homens pelas várias viaturas. Qual o furriel que vai comigo? Certamente que será um dos dois furriéis que ficaram no destacamento.

— Pode ser o Teodoro. — respondeu o Ramalho. Mas se ele não quiser ir, vou eu.

Como o Teodoro não se importava de ir a Quimbele, mandei-o ir escolher uma secção.

Pouco depois do almoço, estávamos a caminho de Quimbele. Fui na Berliet em que ia o capitão. Sentei-me atrás, tendo ao meu lado o velho Manel. Como qualquer soldado, o velho Manel apenas se distingue dos meus homens por ser mais velho e não levar arma. Quanto ao resto, veste-se e comporta-se como qualquer soldado, não lhe faltando sequer o camuflado e a boina, com a insígnia da nossa Companhia. Apesar da idade, que já deve ir na casa dos sessenta ou mais, conserva ainda o espírito e a agilidade dos mais novos, apenas com um pouco de ferrugem nas dobradiças.

A viagem até Quimbele fez-se com razoável rapidez. Céu de um azul forte, sem nuvens, e um calor bastante elevado, mas suportável, forneceram-nos uma picada enxuta e sem problemas.

No edifício do comando, o capitão forneceu-me a requisição, que entreguei ao furriel para ir com o velho Manel buscar o tijolo. Para transportar tudo, tijolos, pessoal, peças para as viaturas e reabastecimento, o capitão cedeu-me a Berliet com o respectivo condutor e despachou-me dali para fora:

— Desanda daqui. Dá as tuas ordens ao pessoal e aproveita bem os poucos minutos em Quimbele. Se não nos virmos antes, tem um bom Natal no destacamento.

Agradeci-lhe e retribui os votos de boas festas e fui ter com o meu pessoal.

— Teodoro, depois de irem carregar o tijolo com o velho Manel, vão à cantina e efectuem  o carregamento do reabastecimento. Não se esqueçam que temos também de reabastecer os destacamentos que dependem de nós. Não se esqueçam também das peças para reparação das viaturas. Depois de tudo carregado, dê uma folga de trinta minutos ao pessoal. Marcamos encontro para partida junto ao Briosa Bar. Veja se se despacham, que temos de chegar ao destacamento a horas do jantar. É verdade, não se esqueçam também de ver se há correio. Mande um soldado procurar o Rodrigues. Ele que se prepare, que vai hoje connosco.

Durante os minutos seguintes, passei pela messe de oficiais. Fui ver se o médico já se tinha instalado. Durante o tempo em que estive no edifício do comando e dei as ordens ao pessoal, já ele se tinha instalado num quarto e tomado um duche. Convidei-o a ir dar uma volta rápida por Quimbele, para lhe apresentar o pessoal e mostrar o novo local de trabalho. Passámos pela enfermaria e gabinete médico, na curva ao fundo do Briosa Bar e em frente a outro restaurante e depois fomos até  ao café.

No Briosa Bar, onde fui tomar uma bica, encontrei o furriel Rodrigues. Estava a jogar o póquer  com outros camaradas. Quis que me juntasse a eles. Recusei o convite. Apresentei-lhes o médico.

— Agradeço, mas não estou interessado no jogo. Vou aproveitar os poucos minutos aqui para ir fazer uma compra importante para o destacamento.

— O quê, alferes? — perguntaram-me os furriéis, cheios de curiosidade.

— É segredo. Logo à noite ou talvez amanhã, será a surpresa para festejarmos o Natal. Deixe-se estar, Rodrigues, não se levante. Continue a jogar. Não precisa de ir comigo. Vou só ao estabelecimento onde comprei a máquina fotográfica e volto já.

Minutos depois, entrava no estabelecimento, onde fui calorosamente recebido:

— Então, alferes, temo-lo por cá durante muito tempo?

— Infelizmente, não. É só de passagem.

— Em que posso servi-lo? Não é por causa da máquina...

— Não! De modo nenhum. Continua operacional. O que aqui me traz é outra coisa. Necessito de uma máquina que faça bom café e que seja fácil de transportar na mochila, mesmo durante as operações na mata.

— Tenho aqui vários modelos italianos. Este — e tirou da montra uma máquina em alumínio, com um corpo hexagonal e um feitio que me fez lembrar uma ampulheta — dá para fazer seis cafés de uma vez. Na parte inferior, mete-se a água até à altura da válvula de segurança.

Desatarrachou a metade inferior e mostrou-me a válvula na parte superior do recipiente, ligeiramente abaixo da zona onde atarracha a parte superior. E continuou a explicação: « Nesta peça, uma espécie de funil, mete-se o café moído e calca-se levemente, antes de se atarrachar firmemente a metade superior. Ao fim de alguns minutos ao lume, a água ferve e passa para a metade superior, fazendo um café delicioso. Tenho uma máquina destas em casa. Quando tenho amigos e não queremos ir ao café, tira seis chávenas impecáveis.

— Este modelo é muito grande e pesado para andar numa mochila.

— Então tem aqui esta máquina. É uma máquina levezinha, que faz rapidamente dois cafés de cada vez.

— É isto mesmo que eu preciso. Dá para nos entretermos a fazer café a seguir às refeições e para levar para as operações na mata. Embrulhe-ma bem, de maneira que não se possa saber o que é. Vai ser a minha surpresa de Natal no destacamento. Preciso também de café  já moído de boa qualidade.

— Também cá temos. E este pacote de um quilo vai ser a minha oferta. É o melhor que tenho no estabelecimento e é a minha prenda de Natal para o alferes, com votos de boas festas para todos no destacamento.

Feitos os dois embrulhos e paga a máquina, despedi-me do simpático comerciante:

— Um bom Natal cá em Quimbele. E como só devemos voltar a ver-nos para o próximo ano, aproveito já para lhe desejar um bom ano de 1973.

— Da próxima vez que o alferes cá venha, quando for a sua vez de ficar em Quimbele, quero que venha aqui almoçar a minha casa. Quero apresentar-lhe a minha mulher e a minha filha.

Regressei ao café. O jogo de póquer dos furriéis tinha acabado. Noutra mesa, ao lado, estavam o capitão, o Vieira, o Valério e o médico.

— Senta-te aqui. — diz o capitão. Ainda tens tempo de beber um fino e fazer um póquer connosco. Estamos a ver que já foste às compras. O que é que aí trazes?

— É segredo. Top Secret. Só pode ser aberto no destacamento.

— Vá lá. Deixa-te de segredos e senta-te. Mostra lá o que compraste.

— Não posso. Ou antes, tomar um fino ainda posso. Mas mais nada... Melhor pensando, daqui a pouco deve começar a chegar o pessoal e tenho de regressar ao Alto Zaza. Vai ser um resto de dia muito trabalhoso. Se me dão licença, preciso de falar ao Rodrigues e aos meus homens. Estão já ali alguns soldados, na esplanada. Para o caso de não ter tempo do fino e não estarem aqui quando partir, aproveito já para me despedir e vos desejar um feliz Natal, mesmo sem frio e neve e longe da família.

Para adiantar serviço, aconselhei o Rodrigues a ir buscar as coisas dele à messe de sargentos e voltar ao bar. Pouco depois, chegava a Berliet carregada de tijolos, arrumados nos espaços por baixo do banco central colocado na caixa da viatura. Entre o banco e o taipal lateral, estava o reabastecimento e as peças para as viaturas. A um canto, diversas caixas quadradas, com as indicações em letras destacadas «OFERTA DO MOVIMENTO NACIONAL FEMININO para os soldados de Portugal», intrigaram-me e despertaram a minha curiosidade.

— Que caixas são aquelas, Teodoro?

— São oferta do Movimento Nacional Feminino para a passagem do Natal da tropa. Tenho aqui as guias, que o meu alferes vai ter de conferir e assinar, para confirmar a entrega e distribuição.

— Isso estou eu a ver. Ainda sei ler o que está escrito na caixa. Mas o que é que contêm?

— Isso só se sabe depois de abrirmos, alferes. Pelo feitio e tamanho, devem ser bolos. Se o alferes quiser, abre-se já uma.

— Não. O que eu quero é regressar o mais depressa possível ao destacamento. Fico mais tranquilo depois de me ver em segurança com toda a malta.

Numa tarde, ir a seguir ao almoço a Quimbele e regressar carregado de tijolos e abastecimentos ao Alto Zaza, em segurança e ainda a tempo do jantar, é proeza não muito fácil de conseguir. Mas, talvez por estarmos em vésperas de Natal, a verdade é que tudo correu com rara rapidez e na mais perfeita segurança, apesar de metade do percurso já ter sido com noite cerrada.

Ainda antes do jantar, foi descarregado o reabastecimento na cantina e efectuada a distribuição do correio. Ninguém queria ir jantar sem antes receber o melhor aperitivo para a refeição: o correio e as encomendas mandadas pelos familiares. As palavras recebidas, como creio já antes vos ter dito, ajudam-nos a matar as saudades da terra; e as encomendas tornam mais doces as amarguras do desterro. Eu próprio, tive o grande prazer de receber uma série de aerogramas de amigos e camaradas, bem como a vossa correspondência e as encomendas que a mãe me mandou. Lá mais para diante, o meu relato dos acontecimentos será substituído pelas cópias dos aerogramas de resposta a todos os amigos. Espero não me esquecer de esclarecer as dúvidas e questões formuladas pelo pai, quer  quanto à máquina que comprei, quer quanto à situação do destacamento relativamente a Quimbele.

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