Regresso ao Destacamento

 
 

Alto Zaza, 28 de Dezembro de 1972


Há quase uma semana que não pegava na caneta para ficar na vossa companhia. De acordo com o meu duplicado a químico, foi no dia dos meus anos que vos escrevi uma longa carta, à mesa do restaurante do Clube de Sanza Pombo. Desde então, já  muitas cargas de água desabaram sobre os telhados de zinco dos edifícios do destacamento do Alto Zaza. Não é  em vão que estamos na época das chuvas. É  o período mais quente e de céu mais azul, de acordo com as informações dos que se encontram nestas paragens há mais tempo do que eu. Parece que, depois desta, vem a fase do cacimbo, que é, segundo alguns, a pior época. Passam-se semanas inteiras sem cair uma gota de água e do azul do céu nem uma nesga! Segundo dizem, o céu permanece acinzentado durante o dia inteiro, como se uma neblina esbranquiçada o toldasse permanentemente. Espero ter a comprovação ocular do fenómeno dentro de algum tempo, se os turras e os azares não me baterem à  porta.


Deixemo-nos de reflexões meteorológicas e passemos aos acontecimentos. Seguramente que aí, na metrópole, devem estar cheios de curiosidade. Não só devem querer saber como foi o meu primeiro Natal tão longe de vós, como o que aconteceu de Sábado até  hoje. Recuemos, então, cerca de uma semana.

O dia 22, quase sempre na vossa companhia, passou depressa. Durante o jantar na messe de oficiais, tive o prazer de conhecer o médico que vai integrar a minha companhia e que irá amanhã comigo no helicóptero. Foi-me apresentado pelo capelão. Chegou de tarde a Sanza Pombo, tendo aproveitado uma coluna de reabastecimento à sede do batalhão. Durante o jantar, falou-me pormenorizadamente dele.

Natural do Porto, formou-se recentemente em Medicina e foi mobilizado para Angola, tendo vindo integrar a 3ª Companhia do Batalhão de Caçadores 4511. No Porto, deixou, além da namorada e familiares, um irmão que, segundo ele, é figura muito conhecida, por dedicar-se à  música. Embora de estatura baixa, as primeiras impressões dele agradaram-me. Esperemos que o aforismo popular «homem baixo...»  não se aplique ao nosso médico. Bastante sociável, falador e extrovertido, parece-me ser um colega de infortúnio de confiança. Espero não vir a ter necessidade dos seus préstimos como oficial de Esculápio.

Penso que o Dr. Graça Moura engraçou comigo. Além de me ter contado várias coisas sobre a sua vida, falou-me demoradamente da Metrópole e foi a minha companhia após o jantar. Temos muita coisa em comum. Temos cursos totalmente diferentes, mas partilhamos os mesmos gostos pela literatura, pela música, pela fotografia. É  óptimo ter, ainda que por pouco tempo, alguém com quem trocar ideias sobre estas áreas da actividade humana. Apesar de ter no destacamento a companhia do furriel Rodrigues, que se tem revelado um grande amigo,  os seus horizontes culturais não são tão amplos como os do médico. Apenas num aspecto acho o furriel superior: conhece com profundidade toda a música moderna. Fala-me frequentemente de grupos como os Beatles, de que possui toda a colecção discográfica, os Shadows, os Moody Blues, os Rolling Stones e muitos outros nomes, alguns dos quais desconhecidos para mim.

Já viram a quantidade de reflexões que o encontro com o futuro médico da minha Companhia suscitou? Vou ter de lhes cortar o fio; caso contrário nunca mais ponho a escrita em dia.

Eram  sete horas e trinta do dia vinte e três quando o capelão me acordou:

— Ulisses, são horas. Tens de te despachar para o pequeno almoço.

— É  rápido. É só fazer a barba e tomar um duche.

— Ontem, encontraste uma companhia à  tua altura.

— Que companhia? Ah, pois, o médico! Parece-me bom tipo. Parece-me que temos muitas coisas em comum. É pena ele ter de ficar longe de mim, em Quimbele, na sede da Companhia. Quando for à sede, já  tenho com quem conviver mais abertamente.

— Então não tens os teus colegas, alferes como tu, e o capitão Alberto?

— Ter tenho. E os meus camaradas parecem-me de confiança. Mas do capitão já não digo o mesmo. Tem muito

patois de propagandista médico... Não me parece de confiança!

— Isso é  impressão tua! Está cá na mesma situação que tu.

— Lá isso está. Mas...

— Bom, vamos lá despachar-nos, que o relógio não pára.

Às oito e trinta estava na messe de oficiais a tomar o pequeno almoço. Fiquei na companhia do capelão, do novo médico e do capitão Glória Dias.

Antes de me sentar à  mesa, fui cumprimentar os tripulantes dos dois aparelhos que nos iam levar ao Alto Zaza e buscar o pessoal ao local de recolha, no meio da mata. Saíram do Negage mal o Sol raiara e estavam agora aqui na messe, onde aproveitaram para reabastecer os estômagos. À hora a que saíram da base aérea ainda não tinham o bar da messe aberto.

Foi interessante a surpresa do comandante do heli ao ver-me ali em Sanza Pombo:

— O alferes está aqui? Imaginava-o no meio da mata a tirar fotografias...

— São azares! O capitão evacuou-me ao segundo dia da operação, juntamente com um furriel. E agora vão-me ter na vossa companhia de regresso ao Alto Zaza. E não vou só. Vai connosco o médico da Companhia, que depois seguirá  para Quimbele. E já  agora, a que horas temos de estar na parada do quartel para partirmos?

— Pensamos sair pelas nove horas. Daqui ao Alto Zaza a viagem é rápida.

Não vou aqui relatar as conversas durante o pequeno almoço. Teria de possuir um gravador na minha cabeça... E não têm qualquer interesse para o meu relato. Basta dizer-vos que, ainda não eram nove da manhã, já eu e o nosso Esculápio tínhamos passado pela messe, para pegarmos nos haveres, e estávamos na parada da CCS, para embarcarmos. Tivemos a companhia do capelão, que foi connosco até ao local onde estavam estacionados os dois Pumas.

Página anterior Home Página seguinte