Evacuação forçada

 

A noite custou a passar. Volta e meia, o furriel gemia com dores e tinha de se levantar, porque os intestinos não paravam de o atormentar. De lanterna na mão, afastava-se até à sentinela mais próxima e, entre a vegetação, aliviava a aflição em que se encontrava. A juntar a isto, quando alguém se mexia e me tocava no braço, era a vez de ser eu a dar sinal e queixar-me. Foi uma noite incrível! Os relógios tinham-se avariado todos e o tempo não  avançava. Mesmo assim, foi uma noite de sorte. Por entre as copas altas das árvores, quase imóveis, conseguíamos ver alguns pontos brilhantes no escuro do céu. Eram a nossa garantia de que não tínhamos nenhum chuveiro natural e indesejado.

Às cinco da manhã, mal começavam a mostrar-se as primeiras claridades do novo dia, já estávamos a pé.

— Ulisses e Valério, vão acordar o pessoal e mandar levantar o acampamento. Eu mais o furriel encarregamo-nos desta tenda.

— Já, capitão? — perguntou o Valério. Não era melhor o pessoal comer qualquer coisa antes de iniciarmos a marcha?

— Não. É preciso recuperar o atraso e aproveitar as primeiras horas, enquanto o sol não sobe demasiado no horizonte. Por enquanto estamos livres dos mosquitos e do calor. Temos a progressão facilitada.

— Mas não podemos andar de estômagos vazios...

— Mais logo. Agora é desmontar rapidamente e ganhar terreno. Em Mazenguele paramos e almoçamos.

Eram cinco e meia. Os primeiros raios começavam a iluminar o céu, quando retomámos a marcha. A frescura da manhã e a ausência de insectos nos primeiros momentos foram uma ajuda. A progressão fez-se com bom ritmo, que apenas abrandou nas zonas mais acidentadas. As grandes dificuldades surgiram antes de alcançarmos a primeira sanzala abandonada. Eram umas oito e meia e já o sol estava uma brasa. Deparámos com uma elevação de tal modo íngreme, que diríamos estar a praticar alpinismo. Foi onde senti as primeiras dificuldades. Para vencer os obstáculos, passava a arma ao soldado da frente. Com a mão esquerda, agarrava-me como podia às saliências, enquanto o soldado detrás me empurrava, compensando a ausência da mão direita, que evitava apoiar, para não prejudicar o pulso e o braço. Mesmo assim, apanhei alguns sustos. Houve um momento em que me desequilibrei e fui obrigado a apoiar-me bruscamente com a mão direita. Larguei um palavrão, para aliviar a dor.

— Deve ter doído um bocado! — exclamou o soldado que me estava a ajudar. Nunca tinha ouvido o alferes a dizer uma asneira. Afinal também as conhece e sabe utilizá-las, para descarregar a dor.

— Tens razão! Soam mal, mas às vezes são um bom anestésico. Desculpem lá , se isso vos desagradou.

— Ó alferes, não se preocupe com isso. É o que a malta mais usa a toda a hora. E o alferes é homem como os outros.

Eram dez e trinta quando conseguimos chegar à povoação abandonada de Mazenguele, onde deveríamos ter pernoitado na véspera. Afinal, o capitão tinha razão em querer recuperar o tempo. Tínhamos necessitado de cinco horas bem puxadas de marcha para vencer tão curta distância!

Mazenguele deveria ter sido, em tempos, uma sanzala de dimensões razoáveis, há muito abandonada. Havia ainda vestígios de antigas cubatas, meio desfeitas pelo tempo. No vasto largo central, que a selva começara já a recuperar, encontrámos diversas árvores de fruto. Algumas laranjeiras estavam carregadas de frutos grandes e completamente verdes. Dir-se-ia estarem intragáveis. Arrancámos alguns frutos e tivemos uma surpresa deveras agradável: eram deliciosamente doces e sumarentos. Foi com grande satisfação que os soldados descascavam e comiam sofregamente esta imprevista dádiva da natureza, esquecendo os riscos com o momentâneo decréscimo da segurança.

Segundo os GEs, não havia qualquer perigo. Atentos a todos os pormenores da vegetação e do solo, segundo eles há muito não passava ninguém por aqui.

Não estivemos na antiga sanzala mais do que uma brevíssima meia hora. A presença de pródigas árvores de fruto naquela zona plana tornava-nos apetecida a permanência... Mas era forçoso progredir.

Eram onze horas quando alcançámos nova povoação abandonada. Era Macala, outra antiga sanzala, também assinalada nas nossas cartas topográficas. Havia neste local, em tempos, diversas povoações ligadas entre si por trilhos, devendo a sua acessibilidade ter sido razoável. Agora, a selva voltara a tomar posse daqueles estreitos carreiros de formigas, por onde circulavam os nativos.

Em Macala fizemos uma paragem prolongada. O furriel continuava a queixar-se de dores no estômago. Também eu, devido ao desequilíbrio na subida de um declive, tinha o pulso direito de tal modo inchado, que mereceu a atenção do enfermeiro. Para alívio da dor, o enfermeiro cobriu todo o pulso com uma pomada balsâmica produzida pelo exército, de onde exalava um fortíssimo cheiro a mentol e eucalipto. Provocou uma forte sensação de calor e um certo alívio.

O capitão procurou inteirar-se da situação. A opinião do enfermeiro reforçou a ideia que o capitão formulara na véspera de me fazer evacuar juntamente com o furriel. A zona central da antiga sanzala apresentava também um vasto espaço plano e amplo, facilmente visível do ar e onde um helicóptero poderia aterrar. A ausência de árvores tornava mais viável a hipótese.

Analisada a situação, o capitão mandou distribuir o pessoal pela área envolvente, para segurança da zona. Chamou para junto de si o operador de transmissões e ligou para a sede do batalhão, pedindo a evacuação urgente de dois elementos.

Comunicação via rádio com a sede do batalhão e pedido de evacuação. Angola, 20 de Dezembro de 1972.

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