Problemas na mata

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Interior do helicóptero Puma, durante uma operação heli-transportada, em 12 de Dezembro de 1972, no Alto Zaza (Angola).

A viagem para o local foi rapidíssima. No curtíssimo espaço de sete minutos tínhamos sobrevoado cerca de 90 quilómetros de um imenso mar verde. A elevação com cerca de 900 metros de altitude onde descemos foi rapidamente localizada. Estava devidamente assinalada pela primeira leva de pessoal, que se tinha espalhado pela área envolvente, para protecção do desembarque, permitindo uma aterragem com toda a segurança.

Estava iniciada a grande operação de cinco dias, em plena zona de infiltração terrorista. Estávamos no meio de uma autêntica floresta virgem, onde fomos de imediato atacados por hordas de moscas e mosquitos, que faziam uma zumbideira enervante nas nossas cabeças, capaz de fazer desanimar o mais valente e lhe pregar uma crise de nervos. De nada serviu o líquido repelente de insectos que trouxe comigo. A praga zumbidoira estava-se plenamente nas tintas para o repelente. Pousava-nos na cara e nas mãos e procurava infiltrar-se pelas mangas e pescoço.

Antes de me ver assaltado pelas hordas desesperantes de insectos, enquanto os helicópteros se encontravam no local com as hélices em movimento, que enxotavam toda a bicharada, pude ter uma visão panorâmica e tranquila de toda a área envolvente, que não consegui fotografar. Estávamos num cabeço limpo de vegetação pela erosão das fortes chuvadas, a uns novecentos metros de altitude, de onde se tinha um espectáculo magnífico. Por baixo de nós, era um enorme mar verde, sem ondulações. Ao longe, do lado da fronteira, via-se uma linha prateada no meio da selva: o rio Cuango, que separa o norte de Angola da República do Zaire. E, tirando isto, apenas o meu pessoal e restantes elementos espalhados na proximidade, que tinham aguardado a nossa chegada.

Com a partida dos aparelhos, estávamos entregues a nós próprios e à bicharada alada, que nos massacrava a paciência.

Antes de nos pormos em marcha, o capitão reuniu os alferes e furriéis e fez uma rápida revisão do percurso. Com o auxílio do chefe Simão, reviu no mapa o primeiro local de pernoita.

— Temos as poucas horas que nos restam do dia para alcançarmos este ponto, a sanzala abandonada de Mazenguele. De quanto tempo é que o chefe Simão calcula que precisamos para lá chegar?

Segundo o chefe Simão e um dos guias, andando bem e com poucas paragens, lá para as quatro ou cinco da tarde, devíamos estar em Mazenguele, ainda antes do anoitecer e com tempo para montar o acampamento e a segurança.

Apesar de irmos bastante carregados com rações de combate, armas e munições, cobertor, panos de tenda, nuvens de insectos e um calor sufocante e húmido, as duas primeiras horas de marcha decorreram sem grandes dificuldades. Para evitar problemas com o pulso e proteger o braço acidentado, coloquei toda a carga sobre o lado esquerdo. Sem grandes pressas, fui vencendo o percurso, apenas sentindo, de vez em quando, uma ligeira sensação de dor e cansaço sobre o lado esquerdo.

A parte da manhã foi escorrendo lentamente. Exceptuando o cansaço e os mosquitos, toda a gente estava com o moral elevado. Passadas as primeiras linhas de água, onde aproveitávamos para encher os cantis e nos refrescarmos, fizemos a primeira paragem para o almoço.

Apesar da fome, o cansaço tirava-nos a vontade de abrir as latas com conservas de peixe e feijão branco com carne. A única coisa que conseguíamos comer eram as saladas de fruta e os concentrados de sumos. E bebíamos água dos riachos como loucos, não esperando que as pastilhas desinfectantes actuassem. Como estas davam um sabor menos agradável à água, enchíamos os cantis e bebíamos ou despejávamos logo a água pelas cabeças, para baixar a temperatura do corpo e afastar momentaneamente o zumbido enervante daquelas pequeninas moscas pretas, que teimavam em poisar-nos na cara e nas mãos, tentando penetrar nos camuflados.

Depois da primeira paragem, começou a parte mais difícil para mim. Dir-se-ia que a paragem da lenta marcha pela selva, algumas vezes abrindo o percurso entre a vegetação à catanada, tinha tornado as pernas mais pesadas e difíceis de controlar. Em breve, entrávamos numa zona bastante acidentada e com subidas a pique, em que tínhamos de fazer verdadeiro alpinismo. Comecei a sentir uma forte dor sobre o lado esquerdo do peito e a ter a sensação horrorosa de que me estava a afogar. Faltava-me o ar. Tentava encher os pulmões, mas estes pareciam recusar-se a absorver o ar.

O pessoal que ia perto de mim apercebeu-se da minha aflição e veio perguntar-me o que se passava:

— O que é que tem, alferes? Vai pálido e a cambalear.

— Dói-me o peito e não consigo respirar normalmente.

— É melhor pararmos um pouco, alferes, para descansar.

— Não podemos. Temos de chegar ao objectivo antes de anoitecer. E se paramos depois custa mais a recomeçar.

— Dê-nos as suas coisas. Distribuímo-las pelo pessoal. Sempre vai mais leve.

— Isso agradeço-vos, para não nos atrasarmos. Mas a arma e a máquina vão comigo.

A marcha foi retomada em velocidade ligeiramente mais lenta. Pouco depois, surge o capitão:

— O que é que se passa? Estamos a andar muito devagar e a ficar isolados uns dos outros ...

Não consegui ter tempo de responder. Ainda o capitão não acabara a pergunta, já os meus soldados o estavam a pôr ao corrente da situação.

— É o nosso alferes. Vai a cambalear com dor no lado esquerdo e falta de ar.

— O que é que tu tens?

— Não sei. Nunca senti isto! Dores no peito esquerdo e falta de ar.

— Não fazes exercício físico no destacamento. Estás muito gordo e pesado.

— De facto, nota-se. Até dá para ver as costelas... O problema é da sobrecarga no lado esquerdo. Para não piorar a situação do pulso direito, levo a arma e todo o material do lado esquerdo.

A marcha prosseguiu por pouco tempo. Em breve, tínhamos nova paragem. Um furriel do meu grupo estava com problemas. Procurei saber o que se passava. Era o Rodrigues, que estava aflito.

— O que é que tem?

— Dói-me o estômago e estou de esguicho. Deve ter sido da ração de combate.

São duas da tarde e ainda estamos longe do local de pernoita. Numa outra subida, com um declive de mais de oitenta graus, surgem novos problemas.

— Parem! — gritam os soldados. O alferes Ulisses desmaiou.

Em pleno esforço da subida, lembro-me de ter visto uma nuvem de manchas negras e não vi mais nada. Quando abri os olhos, tinha uma série de cabeças debruçadas sobre mim, enquanto o enfermeiro me abria o camuflado e alguns soldados procuravam arrefecer-me o corpo com a água morna dos cantis.

Recuperado, aconselhei o capitão a prosseguir a marcha sem mim:

— O melhor, para não prejudicar a operação, é o capitão ir andando. Daqui a duas horas começa a escurecer. Eu desenrasco-me com um grupo de GEs e uma secção com o furriel Donato. Vão andando, para alcançarmos o local de pernoita. Olhem entretanto pelo furriel Rodrigues, que deve ir com um problema de intoxicação alimentar provocado pela ração de combate.

O capitão aceitou a sugestão. Pouco depois de uma hora de marcha lenta e auxiliado pelos meus homens, chegámos ao local onde já estava montado o acampamento. Estávamos ainda a uma hora ou mais de marcha do primeiro objectivo. Com os atrasos provocados por mim e pelo furriel, que tinha frequentemente de se desviar do percurso com as calças do camuflado descidas, o capitão achou conveniente não se afastar muito do meu grupo e aproveitar o resto da tarde para montar o acampamento, antes que a noite caísse sobre a selva.

As tendas estavam montadas a dois ou três metros umas das outras e cobertas com ramos e folhas cortadas com as catanas. Era uma zona de floresta densa, ligeiramente inclinada, a curta distância de uma das muitas linhas de água que engrossam o caudal do rio Bamba, um dos afluentes do Cuango. Para manter as tendas ao longo do trilho aberto pelos GEs, foi preciso encontrar zonas com espaço suficiente entre as árvores e limpar a vegetação. Em vários pontos, estavam distribuídas sentinelas para defesa durante a noite, que eram rendidas de duas em duas horas. Para podermos dormir razoavelmente, as tendas estavam posicionadas de modo que, durante a noite, não corrêssemos o risco de rolar sobre o corpo, devido à ligeira inclinação do terreno.

As tendas constituem um pequeno prisma triangular, formado pela junção de quatro panos. Como cada um de nós transporta só um com as respectivas espias e cavilhas, temos de juntar quatro elementos por tenda. Um pano quadrado é colocado no chão e fixo ao solo. Por cima, são colocados dois panos ligados pelos ilhós, que formam o telhado da tenda. O quarto pano é para tapar um dos lados da secção triangular obtida, ficando o interior abrigado do vento. A toda a volta da tenda, é aberto um sulco no chão, para escoamento da água, no caso de desabar algum aguaceiro. Os ramos e folhas sobre as tendas servem simultaneamente de camuflagem e protecção, ainda que reduzida, para o frio ou as chuvadas da noite. O único problema é o grande arrefecimento da noite.

Na zona onde estávamos, devido à altitude relativamente elevada do local, as amplitudes térmicas são elevadas. De dia, faz um calor insuportável. Durante a noite, a temperatura baixa demasiado, tornando-se necessário um cobertor. Os que dormem melhor são os dois elementos que ficam no meio. Por isso, estabelecemos uma certa rotação. Os que estão do lado de fora, ao fim de duas horas, levantam-se e trocam de posição com os que ficaram no meio. O calor dos corpos, encostados uns aos outros, é uma solução para conseguirmos obter algum repouso durante a noite.

Na tenda, onde passei a primeira noite, ficámos os três oficiais e o furriel Rodrigues, que nos estava a causar preocupação por causa da intoxicação alimentar.

Depois de termos procurado comer alguma coisa, que se limitou a chuparmos o leite condensado da bisnaga, o capitão resolveu tomar uma decisão.

— Amanhã, quando chegarmos a uma zona de clareira, vou mandar-vos evacuar, a ti e ao furriel. Não posso correr o risco de falhar o local de recolha e ficarmos abandonados no meio da selva.

— E as minhas fotos? — perguntei eu.

— Que fotos? Ainda não conseguiste tirar nenhuma. E isso é o que menos me interessa. Já desmaiaste uma vez e pregaste um valente susto a toda a gente.

— Se vou ter de abandonar a operação, então peço aqui ao Valério que fique com a máquina e tire algumas fotos.

— Não sei trabalhar com ela. É muita complicada para mim.

Dei ali, em poucos minutos, uma breve lição de fotografia aos que estavam comigo. Parece que o Valério ficou a saber como se regula a luz e a distância. Passei-lhe a máquina e o rolo de reserva, que guardou num dos bolsos do camuflado.

— E tu, Rodrigues, como é que te sentes? — perguntou-lhe o capitão.

— O estômago continua a doer-me e tenho de me afastar constantemente do grupo.

Depois de estabelecido contacto rádio com a sede do Batalhão, para rápida informação da situação e de algumas conversas entre o pessoal, em voz baixa, preparámo-nos para recuperar as forças. O barulho envolvente da bicharada nocturna era a nossa garantia de segurança. Enquanto ouvimos os insectos e animais da noite, temos a certeza de que não há ninguém nem qualquer perigo na área envolvente. Quando se faz sentir um silêncio tumular, apenas cortado pelo ramalhar das árvores agitadas pelo vento, temos de ficar alerta. Silêncio profundo é sinal de perigo eminente: alguma coisa de muito grave está para a acontecer.

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