Problemas de todas as mães

Alto Zaza, 13 de Dezembro de 1972

Quando receberem esta série de aerogramas, vão seguramente estranhar o desfasamento entre a data registada em cima e o momento em que agora comecei a escrever. De facto, encontro-me, no preciso momento em que redijo esta linhas, no dia 10 de Dezembro. A data que lêem em cima, no começo desta carta, só talvez daqui por uns quatro ou cinco dias será indicada, quando tiver umas centenas de linhas verbais e uma razoável pilha de aerogramas. Como explicar este procedimento?

Já há muito devem ter-se apercebido que a minha escrita se vai desenrolando aos poucos, por vezes com intervalos de tempo relativamente afastados. Isto deve-se ao facto (e creio que já o disse várias vezes em aerogramas anteriores) de que ando sempre ocupado, o que me obriga a relegar a escrita para os momentos de ócio. Problemas para resolver, sem falar nas questões rotineiras, é coisa que não me falta...

Sou agora forçado a interromper as minhas reflexões por causa dos pensamentos da mãe. Não esteja a lamentar o seu filho! Não pense isso. Deixe-se de ideias dessas a meu respeito. Não gosto dessa sua tristeza e desses pensamentos lamentosos: «Coitado do meu filho! Em que trabalhos o meteram! E eu aqui, tão longe, sem poder ajudá-lo!»

Sei bem que pensamentos desses são o que há de mais natural. Se isso lhe serve de alguma consolação , não é a única mãe que se vê obrigada a viver uma situação de afastamento do filho querido. Muitas mães, nesse Portugal pequenino, vivem situação idêntica à sua. E muitas há, certamente, em pior situação, com filhos mutilados ou mesmo mortos, que suportam resignadamente a triste sorte. Foi sina, para não dizer praga, que marcou a minha geração e que, espero, não há de durar eternamente.

Os seus pensamentos, que me levaram agora a estas reflexões, não são nada de invulgar. Mesmo sem guerras e sem separações, todas as mães vêem sempre os filhos, por muito idosos que sejam e cheios de rebentos, como os meninos de suas mães! E digo-lhe até mais: ainda bem que não faltam ao seu filho problemas para resolver! Com todos eles, estou ocupado e o tempo passa mais depressa. Mal seria é se eu estivesse para aqui ocioso, sem saber como queimar o tempo.

Creio, e julgo não estar enganado, que o maior inimigo de todos os que se encontram aqui, na maior parte das vezes, não são os terroristas. O grande inimigo dos soldados é a ociosidade, que os leva a meterem-se em querelas, e os «desenfianços» . As saídas furtivas, aos fins de semana, quando estão em zonas com melhores acessos para as grandes cidades, os chamados «desenfianços» , são talvez o maior terrorista. As estradas principais são óptimas e convidativas a grandes velocidades, em proporção com as grandes distâncias e na mesma escala da vastidão deste enorme território, onde Portugal caberia uma série de vezes. Quando os acidentes ocorrem, geralmente os resultados finais marcam o fim da comissão e da própria vida.

Não pensemos em problemas deste tipo. Os azares acontecem em qualquer local e o melhor é termos pensamentos positivos. Voltemos ao assunto em que estávamos, antes de ter sido desviado pelos pensamentos da mãe.

Dizia eu, umas linhas atrás, que preocupações não me faltam. Ainda bem! Todavia, sentir que de mim depende o bem-estar e a segurança de tanta gente é um peso dos diabos! O Zé soldado, que por vezes me mexe com a paciência e gostaria de ter as regalias do alferes, não faz a menor ideia da sorte que tem. Às vezes penso que é melhor ser mandado e deixar as responsabilidades nos ombros dos outros... E lá estou outra vez a fugir para as reflexões!

Não são apenas as preocupações e o peso desta responsabilidade que me impedem de estar durante mais tempo convosco. Tenho também que escrever aos nossos familiares e aos amigos com uma certa regularidade, já que têm tido a excelente ideia de me irem dando notícias da metrópole. E, a juntar à correspondência da metrópole, tenho os meus colegas de infortúnio que foram parar à Guiné, com quem mantenho um contacto regular. Não é só receber correspondência deles. É necessário também retribuir e ajudá-los a vencer o isolamento físico e psicológico em que todos nos encontramos. O que seria de nós sem o eficiente apoio do S.P.M.?

Com todas as reflexões (estou mesmo a ver que hoje não me consigo livrar delas!) está o relato dos acontecimentos por fazer. Tudo isto para justificar um desfasamento de datas. E o que é mais grave é que o relato vai ter de esperar. O dia está a despontar. Começa a entrar a claridade diurna no meu quarto. Daqui a pouco esperam-me as rotinas habituais. Mais logo, ao fim da tarde ou no decurso da noite, retomarei a conversa com relatos frescos. Seja como for, «estas paralelas linhas» tiveram já o condão de constituir um bom aperitivo para o pequeno-almoço e um bom começo do dia.

Ouço barulho no compartimento ao lado. Os furriéis acordaram e devem estar a levantar-se. Vou apagar o «petromax» , que a luz já entra abundante pelo postigo. São horas de levantar. Até mais logo.

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