Breve hesitação e carta de agradecimento

Alto Zaza, 24 de Novembro de 1972

 

Depois de dois dias sem pegar na caneta para escrever aerogramas, retomo o meu diálogo convosco. Neste momento, estou com a cópia a químico de um aerograma que escrevi no dia 13 de Novembro para Luanda, renovando os meus agradecimentos ao casal S. C pela maneira como fui por eles recebido e dando-lhes conta da minha viagem com destino ao destacamento onde agora me encontro.

 

Estou hesitante sobre se devo mandar-vos a cópia desse aerograma juntamente com esta missiva ou se, pelo contrário, o devo conservar comigo e inserir o seu conteúdo no começo desta carta.

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A noite é longa e tempo é coisa que julgo não me faltar. Depois de uma interrupção de alguns momentos para reflectir, decidi transcrever as palavras do referido aerograma, que passo a reproduzir. Nelas dou conta, de uma maneira breve, da viagem efectuada. Depois, se me parecer indispensável, desenvolvo um pouco mais o texto para vos pôr a par, detalhadamente, de todas as actividades realizadas desde o momento em que ficámos na correspondência anterior.

«13 de Novembro de 1972

Exmo Senhor Capitão S. C.

Com os meus desejos de boa saúde, venho renovar os meus agradecimentos pelos excelentes momentos passados junto de V. Exª e de sua esposa.

Tal como estava previsto, saímos do Grafanil para Sanza Pombo às cinco da manhã, tendo começado os preparativos da viagem por volta das duas e meia. Assim, não cheguei sequer a deitar-me. Apenas tive tempo de arrumar as minhas coisas nos sacos que nos foram distribuídos e ir colaborar na distribuição do pessoal pelas diferentes camionetas civis de carga, em cujas caixas, cobertas por toldos de lona, vão soldados e haveres.

A viagem decorreu sem incidentes e de maneira agradável. Por um lado, a estrada de Luanda até Quimbele apresenta um tapete impecável de alcatrão, que permite viajar com relativa velocidade e sem grande trepidação; por outro, as paisagens que foram surgindo diante dos nossos olhos são de elevada beleza, quer pela exuberância da vegetação, quer pelo seu exotismo aos olhos de quem vem da Metrópole e ainda nada conhece de Angola.

Durante toda a viagem, apenas um pequeno pormenor me causou uma certa tristeza: não possuir uma câmara fotográfica para registar tudo aquilo que os meus olhos me permitiram ver com um certo êxtase. E jurei a mim mesmo que, na primeira oportunidade, comprarei uma máquina e rolos para guardar aquilo que a memória não nos permite reter definitivamente. Quem sabe se, um dia, todas as imagens que vier a registar não irão constituir um valioso documentário sobre este maravilhoso país?

Era já noite quando chegámos a Sanza Pombo. Por esta razão e também porque rolávamos quase ininterruptamente há mais de doze horas, o comandante de batalhão deu ordens para pernoitarmos aqui. Era fim de semana e, deste modo, poderíamos assistir à missa dominical antes de retomarmos a viagem.

Às oito da manhã de domingo estava já todo o pessoal na igreja a assistir à missa. Por volta das dez horas e trinta, arrancámos directos à sede da 3ª Companhia, em Quimbele.

No mesmo dia em que chegava a Quimbele e que mal tive tempo de conhecer, arranquei com o meu grupo de combate e uma secção de reforço, num total de quarenta e quatro homens, para o destacamento do Alto Zaza, donde vos estou a escrever neste momento.

Entre Quimbele e o destacamento não há estrada alcatroada. Tudo o que há é uma picada miserável, na qual tivemos problemas com as viaturas. Estivemos em parte do percurso atolados na lama durante cerca de duas horas. Foi sob as luzes dos faróis e dos projectores e com a ajuda de guinchos, cujos cabos prendemos a outras viaturas e a grossíssimas árvores, que conseguimos fazer passar as viaturas. Deste modo, uma distância de cerca de quarenta quilómetros levou-nos mais de cinco horas de viagem atribulada e de muitos esforços de todo o pessoal.

As instalações são precárias. Falta praticamente tudo, inclusive a electricidade. O gerador que havia foi inutilizado por uma faísca durante a violenta trovoada ocorrida há pouco mais de uma semana.

O aspecto mais agradável do destacamento é que ele fica num planalto onde o clima é idêntico ao da metrópole: calor suportável durante o dia, mas frio durante a noite, que não dispensa o uso de cobertores.

Termino o meu aerograma renovando os agradecimentos pelos bons momentos passados em Luanda na vossa companhia.

Respeitosamente me subscrevo, ...»

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