Reflexão e pedido dos furriéis |
Desculpem ter cortado abruptamente a descrição das construções indígenas. Não podia deixar de prestar atenção ao meu camarada. O grave da situação é que quebrei a guita! Quebrou-se-me o fio da meada. Já não me lembro onde ia. «Não faz mal! Foi melhor assim! Ficámos livres da maçada das descrições!» Desculpem lá. Não posso concordar com esses pensamentos! O meu querido pai está a esquecer-se do que me ensinou na escola primária? Afinal, qual foi o objectivo daquelas longas redacções que nos obrigava a fazer? Para que é que nos ensinou a fazer todos aqueles diferentes tipos de redacções, todos aqueles tipos de descrições? Não foi para nós aprendermos a substituir as imagens impressas e fotográficas pela química registadora das palavras? Embora considere as imagens capturadas pela câmara fotográfica como documentos importantes e ainda não tenha esquecido tudo quanto me ensinou sobre fotografia, não nos podemos esquecer que as fotografias obtidas com palavras por meio da descrição são também um poderoso e duradouro meio de conservarmos para a posteridade a memória daquilo que observamos. O grande problema é que é muito mais fácil registar na película uma paisagem, uma cena, uma pessoa ou até mesmo um acontecimento, do que através do registo escrito. Carregar no disparador da máquina é fácil. É só enquadrar e carregar com o dedo! Alinhar as palavras de modo a formarem frases e estas parágrafos e textos com sentido e beleza, de modo a reproduzirem fielmente aquilo que vemos através dos sentidos e da capacidade reprodutora da imaginação, isto é que é uma carga de trabalhos! Teríamos de ter o apoio de um Júlio Dinis, de um Eça, de um Garrett e de tantos outros que contribuíram para o enriquecimento da nossa literatura. Se eles nos pudessem emprestar um pouco da sua habilidade ou nos segredassem as ideias e as palavras, outro galo cantaria! Como eles em nada nos podem valer, a não ser em servir-nos como modelos, teremos de nos limitar a fazer o melhor que nos é possível. Assim, enquanto não tiver comigo a máquina fotográfica, vão ter de se contentar com as minhas descrições. Mesmo assim, penso que mais vale uma descrição fraca, maçadora, sem a beleza daqueles textos descritivos que nos apresentava como modelos, do que deixar cair no esquecimento aquilo que tenho vindo a observar. Deixemos as reflexões. Como vê, os seus pensamentos não deveriam ter chegado até mim! Desviei-me do assunto e o meu camarada está a ficar privado da minha companhia, certamente já com as cartas gastas de tanto baralhar. Afinal de contas, o que é que eu pretendia dizer-vos, quando fui interrompido? Ah! Acabo de me lembrar! Antes de findar a correspondência, tinha pensado dar-vos a conhecer quão agradável está a ser a minha estadia na região. Na Quimabaca, onde estamos acampados há cerca de uma semana, desde o dia dois deste mês, como devem estar recordados, temos ocupado o tempo intercalando o trabalho dos recenseamentos com o convívio com a população que nos acolheu. No começo desta semana, já lá vão quatro dias, passei uma boa parte do tempo a fazer de médico. A actividade de segunda-feira foi muito bem distribuída. Da parte da manhã, na companhia do furriel Rodrigues, do soba da Quimabaca e do meu intérprete, o Joaquim, conseguimos efectuar o recenseamento de dois povos: Buatelele e Mavondo. À hora do almoço, os furriéis aproveitaram a pausa da refeição para me porem na prateleira: — Alferes, o alferes anda sempre ocupado, numa roda viva, de um lado para o outro. Não tem um minuto de descanso... Levantei os olhos da mesa e encarei o furriel vagomestre, sem atinar onde pretendia chegar. Deixei-o continuar o discurso, para ver onde ia: — O alferes precisa de parar um pouco e de nos pôr a trabalhar... Fiquei espantado! O furriel a dizer-me que os devia pôr a trabalhar! Onde raio é que ele pretende chegar? Continuei a ouvi-lo atentamente: — Num curto espaço de tempo, o alferes, com a ajuda do Rodrigues, do soba e do Joaquim, já efectuou uma série de inquéritos. Anda numa roda viva, de um lado para o outro. Mas esquece-se que eu tenho ficado todo o tempo sempre na povoação... — E não é disso que o furriel gosta? Passar o tempo sem fazer nada, só em patuscadas e a jogar as cartas com os soldados? — Não, alferes. Não é verdade! Não está a ser justo. Eu não estou sem fazer nada. Faço muita coisa... — Claro que sim! Quando digo que não faz nada, não quero dizer que não faça nada. Sei bem que o seu trabalho é importante. Tão importante, que não pudemos passar sem a sua colaboração. Por que razão acha que o trouxe do Alto Zaza, em vez do outro furriel que se ofereceu para vir comigo? O seu trabalho é importantíssimo e não podemos passar sem a sua ajuda. Por isso, não estou a ver onde pretende chegar. — O que eu quero é que o alferes fique aqui no destacamento e nos mande a nós efectuar os recenseamentos. Não quero dizer que seja sempre... Mas de vez em quando! Por exemplo, hoje de tarde, o alferes ficava cá e ia eu com o Rodrigues, no seu lugar. O Rodrigues já aprendeu com o alferes e eu aprendo depressa com ele. Tenho de confessar que não contava com esta saída inesperada do furriel vagomestre. Tinha uma ideia completamente diferente dele e nada abonatória, seja dito em nome da verdade, como já tiveram a oportunidade de constatar noutras cartas. Estava, pois, espantado com esta súbita manifestação de vontade de colaborar no desempenho da missão que nos foi atribuída. E acabei por concordar. — Está certo! Estou plenamente de acordo com a proposta que me fazem. Assim sendo, vão vocês os dois fazer os processos de duas povoações. São dois povos pequenos. Por isso, enquanto o Ramalho faz o processo de Quicombo, o Rodrigues vai fazer o de Quibula. Fazem-se dois recenseamentos em simultâneo e ganha-se tempo. Mas, agora me lembro, não é possível. O Ramalho nunca fez nenhum processo. — É possível, sim, alferes. Já sei como é. O Rodrigues já me explicou. Não custa nada. — E como é que se vai arranjar para compreender as pessoas? O Joaquim ou está consigo ou com o Rodrigues. Não pode estar em dois sítios ao mesmo tempo. — Isso não é problema, alferes. Pedimos a ajuda do professor. Com ele e o Joaquim, temos um intérprete cada um, para resolvermos as dificuldades. — Está bem pensado. Não me tinha lembrado do professor. A questão é que ele esteja livre e aceite. — Está livre, alferes. Estive de manhã com ele. Bebemos umas cervejas e pus-lhe já o problema. Está disposto a acompanhar-nos. Levamos umas cervejas para beber a meio da tarde e umas sandes. E com esta merenda, ele nunca nos dizia que não. Vai ele a acompanhar-nos, na vez do velhote. — Quem? O soba? — Sim, alferes. Ele pode ir com o alferes... Mas não pode andar sempre de um lado para o outro. São muitos povos e alguns afastados! Não tem resistência para andar sempre aos tombos nas picadas. O professor é novo. É conhecido de todos. Pode muito bem substituí-lo. — Talvez! Não tenho nada contra o professor... Pelo contrário! É simpático. Já nos ajudou várias vezes. Mas não dispenso o soba. Gosto da companhia deste simpático velhote. Só não irá comigo quando não quiser acompanhar-me ou quando formos a povoações demasiado distantes. Mas por agora está decidido. Vão vocês os dois fazer os recenseamentos e eu quedo-me por aqui, na Quimabaca. Com a ajuda do enfermeiro, vou aproveitar a tarde para dar assistência médica à população. — O alferes vai fazer de médico? Se calhar errou a vocação. — Se calhar até tem razão, Rodrigues! Quando era miúdo, nas minhas brincadeiras de férias com as miúdas minhas vizinhas, brincávamos muitas vezes às casinhas. Eu era o marido de uma delas, cuja companhia me agradava mais. Fazia sempre de médico. E, durante muito tempo, era esta a profissão que eu dizia que queria quando fosse grande. E não sei por que carga de água, acabei por ir para professor do liceu. E, a brincar, a brincar, tenho aprendido muita coisa de medicina desde que vim para Angola. Só me faltam os livros de estudo, para tirar as dúvidas, e a companhia do Graça Marques, para me resolver os problemas mais difíceis. |