Acidentes sem consequências |
Eram dezassete horas do dia três de Março quando chegámos à Quimabaca, depois de uma manhã bem passada em Quimbele. O regresso fez-se com grande rapidez, mas não sem um pequeno incidente, que nos poderia ter custado a vida. A picada é relativamente fácil de percorrer e já a tínhamos ficado a conhecer durante a madrugada. Por isso, o condutor sentiu-se mais confiante e carregou mais do que devia no acelerador. O desejo de chegar cedo e, sobretudo, de dia, fazia-nos esquecer um pouco a prudência. Numa zona de picada plana e recta, íamos a uma razoável velocidade. De repente, entrámos num troço em que a terra barrenta parecia vidro polido. Tinha desabado, pouco tempo antes, copioso chuveiro, que encharcara o caminho. Vendo-se imprevistamente sobre um manto de lama vidrenta e escorregadia, o condutor procurou reduzir a velocidade. Carregou no travão. E fê-lo com tal força, que deverá ter bloqueado uma das rodas. A viatura guinou bruscamente para a direita. Saiu da picada. E fomos embater nuns restos de um tronco de árvore. Foi simultaneamente a nossa sorte e o meu azar. O cepo, ainda fortemente agarrado pelas raízes ao solo, travou bruscamente o unimogue e impediu-nos de ir por uma ribanceira, que seria certamente fatal para todos nós. Foi a nossa sorte e o meu azar! Fui atirado violentamente para a frente. Bati com a rótula do joelho direito na chapa da viatura. Vou ter, provavelmente, mais uma mazela futura, a juntar ao que me aconteceu em Mafra, onde tive um problema semelhante com o joelho esquerdo. Semelhante, mas não igual, porque não meteu uma viatura. Desta vez, foi com uma arma de fogo. Nunca vos falei disto. O problema ocorreu-me no início da semana. E quando fui a casa de fim-de-semana, já tinha relegado o facto para o esquecimento. Mas já que vem a propósito, recuemos um pouco mais até esse tempo da instrução em Mafra, em que andei durante quase uma semana a fazer a instrução com o joelho esquerdo envolvido em ligaduras. A causa de tudo isto foi o coice da estúpida da espingarda G3, quando procedíamos ao lançamento de granadas de mão com um dispositivo especial, de invenção portuguesa, aplicado ao cano da G3. Que dispositivo vem a ser este, inventado por portugueses, para o lançamento de granadas de mão a grande distância? Este dispositivo é muito simples e de fácil explicação. É constituído por um tubo metálico, de diâmetro ligeiramente superior ao do cano da espingarda G3, no qual é enfiado, envolvendo-o quase à justa. No topo, possui um suporte em forma de taça, onde é colocada a granada, e um sistema de retenção da alavanca, que permite que a cavilha de segurança seja retirada, antes do lançamento do engenho. Na parte inferior, uma empenagem faz com que o conjunto mantenha uma trajectória regular.
Estou agora a recordar-me que damos a este dispositivo o nome de dilagrama. Foi feito especialmente para o modelo de granada defensiva portuguesa e destina-se a bater ângulos mortos, podendo alcançar uma distância que deve andar pelos duzentos metros. A propulsão é dada por um cartucho especial propulsor de balestite para G3. É parecido com as munições habituais da G3, mas o espaço normalmente ocupado pela bala é substituído por um compartimento maior, onde se encontra a balestite. Esta, ao ser deflagrada pelo fulminante do cartucho, gera uma elevadíssima pressão de gases, que faz com que o dilagrama vá parar a elevada distância, variável em função do ângulo em que a espingarda se encontra. Para o lançamento das granadas, a espingarda tem de ser apoiada no chão, em posição inclinada, à semelhança dos morteiros. De preferência, a coronha deve ficar apoiada em solo resistente ou de encontro a um bloco de pedra. Na altura do treino de lançamento de granadas com este dispositivo, procurei seguir rigorosamente todas as instruções fornecidas pelo tenente que nos deu a especialidade. Mas nunca imaginei que a espingarda escoicinhasse de maneira mais violenta que uma burra enraivecida. Quando puxei o gatilho, o coice foi tal que a coronha fez saltar o enorme bloco de pedra em que a tinha encostado, vindo-me atingir o joelho esquerdo com enorme força. Tive, na altura, de receber tratamento na enfermaria. E, por esta razão, andei toda a semana de instrução com o joelho esquerdo inchado e envolvido em ligaduras. Agora, para que um joelho não se fique a rir do outro, foi a vez do direito levar idêntica pancada. O que me vale é que isto incha, desincha e passa pouco depois. O inchaço não me impediu de continuar a fazer a vida normal e, dois a três dias depois, tinha desaparecido quase por completo. Quanto ao resto do pessoal, andou cheio de sorte. Tirando o susto da queda e um pouco de lama barrenta em cima dos camuflados, ninguém se aleijou. E a viatura aguentou valentemente o embate e nem se queixou. Tirando uma ligeira mossa e empenamento do grossíssimo pára-choques, não sofreu prejuízo que nos impedisse de prosseguir a viagem. Chegámos à Quimabaca ainda em pleno dia.
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