Uma avaria proveitosa

Cuango, 9 de Março de 1973

 

 

Creio que, na última carta que vos escrevi, ao despedir-me, afirmei que tão cedo não voltaria a pegar em aerogramas. Pois enganei-me redondamente! Perante a quantidade de povoações a controlar, pensei que, tão cedo, não teria momentos livres para estas gostosas conversas na vossa companhia. Gostosas conversas na vossa companhia?! Sim, isso mesmo! A afirmação está rigorosamente correcta. E não pensem que é ficção! Qual quê! É a pura realidade! Apesar de nos separarem oito mil quilómetros, não deixo de estar na vossa companhia. Consigo ouvir os comentários do pai e as perguntas da mãe. Imaginação talvez! Ou até a realidade? E daí, quem sabe? Quem sabe se, quando estou a escrever-vos, nestes momentos de recolhimento, os meus pensamentos não estarão em consonância com os vossos? A imaginação e as saudades da vossa presença geram por vezes estados de espírito que ultrapassam a razão. Imaginação ou não, a verdade é que tenho a nítida sensação de ouvir a voz da mãe e os comentários do pai. Será imaginação? Será certamente a necessidade da vossa companhia que provoca este interessante e agradável fenómeno. O que quer que seja, não deixa de ser excelente! Tem, pelo menos, o condão de me ajudar a aguentar melhor a passagem por estas terras e de me permitir estar em perfeita comunhão convosco, graças ao poder maravilhoso das palavras escritas.

Dizia, há momentos, que não contava estar tão depressa na vossa companhia. De facto, o trabalho tem sido intenso, como veremos na sequência destes aerogramas. Quase nem tenho tido tempo para me ocupar das mensagens em cifra. Os dias são passados no contacto com as populações locais, a efectuar os recenseamentos; e as noites ocupadas a passar a limpo os elementos obtidos e a redigir os relatórios. Não sobra muito tempo para a correspondência.

Pensando melhor, talvez esteja a fugir um pouco à verdade. É mal humano... Melhor dizendo, é defeito muito característico da espécie humana. Sem querer, temos muitas vezes a tendência para afirmações hiperbólicas. Somos por natureza uns exagerados! E daí, talvez nem seja exagero! O tempo tem sido altamente preenchido, nestes últimos dias. E não só por causa dos recenseamentos. O contacto com as gentes da Quimabaca tem-me ocupado umas boas horas. São, diga-se em abono da verdade, horas gostosas e necessárias. Estreito laços de amizade e torno-me útil para eles, ao mesmo tempo que vejo o tempo avançar mais depressa, sem dar conta da sua passagem. É uma maneira dele correr de maneira mais agradável.

A minha guerra, ao contrário do que pensava em Tomar, tem-me propiciado óptimos momentos. Tirando alguns sustos imprevistos, posso dizer que esta guerra, em vez dos aspectos negativos inerentes a todas as guerras, tem-se revelado uma excelente oportunidade de descobrir novos mundos, novas culturas e novas amizades, que me têm vindo a enriquecer progressivamente. Não fossem as saudades de casa e as situações imprevistas menos agradáveis, que tenho conseguido superar sem problemas, dir-se-ia que esta guerra se está a transformar numa grande escola da vida. No fundo, a nossa grande guerra, até ao momento, tem sido com a porcaria do material que nos foi distribuído, com a porcaria das viaturas, que há muito deveriam ter entrado na reforma e que nos deixam constantemente encalhados no meio das picadas. Todavia, neste preciso instante, não posso deixar de concluir que, por vezes, também têm um lado positivo. Se não fossem as avarias frequentes, não estaria agora a escrever-vos do Cuango. Foi graças à avaria da viatura que tive de procurar refúgio no destacamento mais remoto da Terceira Companhia do Batalhão 4511, onde a custo consegui chegar. É graças à avaria que estou agora sentado a escrever-vos, debaixo do alpendre que cerca todo o edifício de planta quadrada, tendo na minha frente uma paisagem fabulosa. Não consigo daqui ver o rio Cuango, que me separa da república do Zaire. Corre lá em baixo, no fundo da colina ou do planalto onde fica a povoação do Cuango. Separam-me dele cerca de cem ou duzentos metros de trilho íngreme, numa encosta coberta de capim. Vejo daqui a colina da margem direita, no cimo da qual se distingue perfeitamente, ao longe, o edifício de uma missão em território zairense. E, mais à direita, as coberturas metálicas de uma base terrorista, que se vê perfeitamente com a ajuda dos binóculos. Mas não é a altura de descrever o destacamento do Cuango e toda a imponente região que me cerca. Quando chegar a minha vez de substituir o meu camarada, terei tempo de sobra para falar deste local. Nessa altura, espero já ter a máquina fotográfica reparada, para poder guardar para a posteridade imagens desta magnífica região, cujo único defeito é estar junto da fronteira, a um dia ou mais de distância da sede da Companhia.

Voltemos aos factos. Estou aqui neste destacamento desde quarta-feira, à espera que me venham socorrer. A custo consegui chegar aqui. Valeu-me a ajuda do pessoal do Cuango. Estava a fazer o recenseamento de uma sanzala próxima, quando a viatura avariou. Conseguimos rebocá-la até aqui, utilizando o cabo de aço do guincho e a viatura deste destacamento. Como é que o pessoal do Cuango soube do meu problema e me foi ajudar? Não é difícil de descobrir como consegui comunicar com eles. Para que servem os rádios que trazemos? Não são para comunicarmos uns com os outros? Era o grupo mais próximo. Foi o grupo que me veio socorrer. E como aqui não há mecânicos, tenho de aguardar que venham de Quimbele. Só com a viatura operacional posso regressar ao acampamento da Quimabaca.

Na minha pasta, além do material para o recenseamento, tenho tudo o que preciso para escrever. E mesmo que não tivesse aerogramas na pasta, não deixaria de vos escrever. O que aqui não falta no destacamento são aerogramas. São os recursos da tropa para manter o contacto com os familiares e amigos da Metrópole. Significa que, sem trabalho para fazer e já estabelecidos os contactos, no primeiro dia, com o pessoal civil e militar do Cuango, tenho agora muitas e longas horas de espera. Estou a aproveitá-las da melhor maneira. Converso convosco e retomo o relato dos acontecimentos dos últimos dias.


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