Regresso e convites

Durante a passagem pela sanzala de Quingange, ao regressarmos ao Alto Zaza, parámos a viatura durante um largo bocado. No centro da sanzala, no campo de futebol, estava a decorrer um animado jogo.

— Olhe para ali, capelão. Já viu um campo de futebol de categoria, com balizas e tudo, construído pelos nativos no meio da sanzala?

— O jogo está animado.

— Está. E estão ali uns craques da bola. Até estou a ter uma ideia, que me parece que há-de ser interessante.

— Diz lá o que te está a passar pela cabeça.

— Deixe-me saber a opinião dos soldados. Se eles concordarem com a minha ideia, vai para a frente.

— Desembucha lá.

— Olhem lá, — disse eu, voltando-me para o pessoal — o que é que acham daqueles jogadores de futebol? Era capaz de ser giro desafiá-los para um jogo com a malta no próximo domingo, no Alto Zaza. O que acham da ideia?

— É capaz de ser boa, alferes.

— Também acho. — concordou o capelão. É preciso estabelecer boas relações entre a tropa e as populações civis. E um joguito ajudava a passar o tempo.

— Está decidido. Vamos lá falar com eles. Olhem para ali. — disse apontando para os animais que passeavam pela sanzala. Uns leitões assados no forno eram uma boa almoçarada, amanhã, para recepção ao nosso capelão. Não eram?

— É preciso que os nativos os vendam. — disse o capelão.

— Já se vai ver. Vamos lá falar com o pessoal que está a jogar. Vamos desafiá-los para um campeonato no domingo, com prémios e tudo.

 

Falámos com os nativos. Ficaram entusiasmados com o desafio e com o prémio proposto: umas grades de cerveja para os vencedores. Quanto aos leitões, o negócio fez-se mais facilmente do que imaginava. Com o apoio da equipa local, os nativos foram facilmente convencidos. Concordaram em vender-nos três leitões, ao preço de cinquenta e cinco escudos cada um.

Puxei da carteira, paguei os leitões e seguiu-se um momento divertido. Os animais adivinharam a morte próxima. Não queriam deixar-se apanhar. Não queriam tornar-se a nossa ementa do dia seguinte. Foi uma correria maluca e divertida, para os conseguirmos apanhar. Tivemos de os juntar e cercar. E depois de muitas peripécias, que nos faziam rir às gargalhadas, lá nos fomos atirando aos animais, que agarrámos pelas patas, para não os deixarmos fugir. Tive pena de não ter trazido a máquina fotográfica. Com a aflição de socorrer a miudita, esqueci-me de a meter no bolso do camuflado. E perdi umas cenas que nos fariam rir mais tarde.

Quando chegámos ao destacamento, quase no final do dia, tive uma surpresa agradável do meu pessoal. Tinham construído mais bancos com as aduelas dos pipos. Estava encostado ao lado da porta do meu edifício um novo banco, de grande comprimento, capaz de comportar umas cinco ou seis pessoas. Apenas faltava pintá-lo de verde, a condizer com a cor dos edifícios, trabalho que destinei para mim próprio, para me ajudar a ocupar a manhã do dia seguinte.

Descarregámos os leitões e elaborou-se, na messe do alferes e furriéis, a planificação para o dia seguinte:

- Pintura do banco, a cargo do alferes;

- Limpeza do aquartelamento por alguns grupos de soldados;

- Missa ao meio-dia, celebrada pelo capelão;

- Leitão assado no forno ampliado, para recepção ao nosso capelão;

- Tarde de descanso e passeio pelos arredores do destacamento

 

Antes do jantar, redigi um convite ao administrador do Alto Zaza:

 

 

«Venho por este meio convidar o Ex.mo Senhor Administrador do Alto Zaza para um momento de convívio no destacamento, amanhã, com o seguinte programa:

12 horas — Missa no quartel, celebrada pelo Digníssimo Capelão do Batalhão de Caçadores 4511;

13 horas — Leitão à Bairrada, para inauguração do novo forno e recepção ao nosso capelão.

 

Alto Zaza, 25 de Janeiro de 1973

O Comandante do Destacamento

Ulisses de Almeida Ribeiro»

 

Dobrei o convite em quatro e entreguei-o ao Joaquim, para o ir levar ao administrador, devendo esperar a resposta, para sabermos se podíamos contar com ele no dia seguinte.

— O teu convite vai com todas as regras. — gracejou o capelão, que deitara o canto do olho para a folha enquanto eu a redigia.

—Tem de ser. O protocolo é uma coisa muito importante. E tenho quase a certeza da resposta. Ninguém recusa leitão assado à moda da Bairrada.

— Mas que exagero! Como é que podeis aqui fazer leitão assado à moda da Bairrada? Onde é que existe o material adequado para assar os leitões?

— Esteja descansado que os nossos cozinheiros são homens para dar conta do recado. Não será verdadeiramente à moda da Bairrada. Não temos cá as varas ou espetos em que os animais são enfiados para irem depois ao forno. Mas garanto-lhe que vai ser tão bom ou melhor ainda. Com a categoria do forno que o velho Manel construiu e a habilidade dos nossos cozinheiros, amanhã vai ver que ficará nosso cliente para outros petiscos. Aqui, no Alto Zaza, o pessoal do alferes Ulisses trata-se com categoria. Deixe-se ficar entre nós, que não há de se arrepender. Vai ver que não será mal tratado.

— Ninguém me trata mal. Basta-me a vossa simpatia e carinho.

— Claro! Isso é importante. Mas se lhe puder juntar a barriguinha, de certeza que não será pior. E pode crer que a sua companhia é muito apreciada por todos nós.

 

Vou ter de interromper o relato durante um bocado. Daqui a pouco, são horas do jantar. Depois, vou procurar saber se há novidades. Como estou sozinho no gabinete, apenas com dois furriéis no destacamento, vou aproveitar o resto da noite para continuar a escrita. Falta-me apenas, para pôr-me em dia, falar-vos do que se passou ontem. Sim, digo bem, apenas falta o dia de ontem, porque os acontecimentos de hoje já vocês os receberam quase em directo. Só não foi em directo, porque esta correspondência só vos chegará às mãos dentro de alguns dias. Todavia, como os factos foram relatados praticamente em cima dos acontecimentos, é esta a razão de dizer que isto me está a fazer lembrar uma reportagem em directo.

Está bem! Vou ser mais preciso na linguagem. Não se pode aqui falar de uma reportagem em directo; mas é em diferido, apenas porque a estou a fazer por escrito. Se, em vez da caneta e do papel, tivesse um microfone e um potente emissor de ondas curtas, teríamos então uma verdadeira reportagem em directo. As minhas palavras seriam ouvidas quase durante o desenrolar dos acontecimentos.

Fiquemos por aqui. Estou novamente a divagar. Tenho de parar por uns minutos. Mais logo, com o estômago devidamente atestado e um cafezinho feito na máquina, será mais fácil retomar esta longa missiva. Despeço-me por agora. O meu relato prossegue dentro de minutos.

 

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