Visitando a Sanzala

Entrámos na Camuanga cerca de duas horas mais tarde, depois de termos contornado toda a base da colina.

Enquanto o meu pessoal dispersou, para descansar da caminhada difícil que acabáramos de fazer, eu aproveitei a companhia do furriel e do chefe Francisco. Demos uma volta pela sanzala, enquanto o Francisco fez algumas recomendações pertinentes e sensatas ao furriel: «Prestar atenção na descida do trilho para a água, por causa de possíveis minas; avisar a população nativa para prestar atenção a gente desconhecida e suspeita que encontre, nas deslocações às lavras e às linhas de água; ...» Em suma, recomendações de quem já tem uma experiência de longos anos de guerra e de vivência na região.

— O alferes vai embora hoje? — perguntou-me, a certa altura, o furriel Amândio.

— Trouxe comida apenas para um dia. Embora cada um de nós tenha levantado duas rações de combate, uma delas foi fornecida aos elementos que trouxemos connosco da Cabaca. Porquê?

— Ficávamos mais tranquilos se o alferes não fosse hoje embora. O pessoal ficou nervoso. E era também um apoio para a população, que ficou assustada.

— Podemos ficar esta noite, se o Francisco também não se importar. Mas amanhã teremos de arrancar bem cedo. Não posso deixar o Alto Zaza abandonado. Para mais, ficaram sem viaturas para irem à água e à lenha. Posso dar-lhe algumas sugestões?

— Sim, alferes.

— Verifico que, se a Camuanga for seriamente atacada durante a noite, ou mesmo de dia, ninguém tem a menor segurança. Com a paliçada à volta, não há hipóteses de saber se alguém suspeito se aproxima.

— Apenas há selva e montes a toda a volta, alferes.

— Claro. Mas os acessos só se podem fazer pelos trilhos. Logo, será por eles que alguém poderá aproximar-se. Devia haver sentinelas nos pontos perigosos, mesmo durante o dia. E se houver um ataque com morteiros, a população não tem onde se abrigar das ameixas que vos caiam em cima. Tirando os vossos abrigos, à volta das tendas e coberto, não há mais nada. Era altura de falarem com a população acerca deste problema e construírem abrigos. Nunca se sabe quando poderá acontecer algum ataque a sério. E depois de mortos, já não vale a pena cavar os abrigos.

O Francisco, que nos acompanhava, seguiu com atenção as minhas palavras. Entendeu perfeitamente o que eu queria dizer e reforçou a minha opinião. E as palavras devem ter produzido algum efeito! Depois de me ter afastado momentaneamente do grupo, para me distrair um pouco na observação dos costumes da sanzala, vi os milícias na conversa com a população nativa. Falavam e gesticulavam muito. Será que estavam a falar da defesa e da construção de abrigos?

A minha reflexão foi perturbada pelo barulho de um pilão. Uma mulher, junto à cubata, erguia um pau grosso e deixava-o cair, ritmadamente, num pilão com mandioca. Apalpei o bolso das calças do camuflado. Desapertei o botão e tirei a máquina fotográfica. Efectuei o enquadramento, mostrando a mulher a trabalhar. Um miúdo escondeu-se atrás da estaca que suporta o telhado de colmo. Espreitava-me com curiosidade e surpresa. Por detrás, passava um elemento militar do destacamento. Carreguei no botão de disparo e ouviu-se o «clique» da máquina. Continuava a funcionar, apesar de ter andado todo o dia aos balanços, enfiada no bolso do camuflado.

Infelizmente, quando avancei o rolo, verifiquei que o contador estava a chegar ao fim. Apenas me deviam restar duas ou três fotografias. Optei por poupar o resto da película, para fotografar o acampamento militar. O resto da sanzala ficará para uma próxima oportunidade, quando tiver recebido da Metrópole os rolos de diapositivos.

Há já mais de um mês que pedi ao pai que me comprasse vários rolos de diapositivos. Pelos vistos, este meu pedido ainda não foi satisfeito. E estou a perder excelentes imagens das zonas por onde tenho andado.

Destacamento da Camuanga em Janeiro de 1973. Angola, Sector de Uíje.

A penúltima fotografia tirei-a quando regressei à zona militar. O acampamento do grupo destacado na Camuanga fica precisamente no centro da povoação. Ocupa uma área rectangular, tendo, ao meio, um amplo coberto de chapa de zinco, onde se cozinha e tomam as refeições. Em cada extremidade, ficam as tendas de lona, onde o pessoal dorme. A toda a volta, estão cavados os abrigos, onde os soldados se refugiam, em caso de ataque. São os únicos abrigos existentes, apenas destinados aos militares. E as desgraçadas das populações civis, se tiverem mesmo um ataque a sério, não têm onde se abrigar. Ficam no meio de dois fogos: dos atacantes e dos soldados aqui destacados. O sistema de defesa está totalmente errado. Foi esta a razão de ter chamado, há pouco, a atenção do furriel. E o chefe Francisco reforçou-me as palavras. Espero que as minhas observações não tenham caído em saco roto!

A última foto foi tirada já debaixo da área coberta de zinco. Registei o trabalho dos dois soldados, que estão a preparar uma tachada para todo o pessoal, incluindo os que vieram em socorro da Camuanga e aqui passarão a noite. Atrás deles, estão vários miúdos da sanzala, que acompanham o mexer do enorme tacho. Dois miúdos, mais espigados, olham-me com atenção. Sorriem-me, enquanto faço o enquadramento da fotografia. Quase estrago a composição, quando um dos miúdos, na extremidade direita, se coloca muito direito, em posição de sentido, para ficar na fotografia. Consigo conter o riso e carrego no disparador, antes que comece a rir e desperdice o resto da película com uma imagem tremida.

 

Destacamento da Camuanga em Janeiro de 1973. Angola, Sector de Uíje.

 

Procuro avançar o rolo para obter mais uma imagem, mas... A alavanca de avanço da película fica a meio do percurso. Desta vez, por uns escassos milímetros, fico impossibilitado de aproveitar a extremidade final da película. Num rolo de trinta e seis imagens, consigo tirar, geralmente, 38 fotografias. E como costumo carregar a máquina completamente às escuras, consigo, por vezes, chegar às trinta e nove imagens, aproveitando a parte inicial da película. Desta vez, falhei as trinta e nove por um triz.

— E já agora, qual vai ser a ementa? — Foi esta a pergunta que fiz aos cozinheiros.

— Meu alferes, vamos comer uma bacalhoada de bacalhau esfiado com arroz.

— Não é nada mau! Sempre é melhor que o nosso almoço de hoje, que foi da ração de combate.

 

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