Uma carta divertida |
Grilo angolano. De cor castanho-clara, é cerca de três vezes maior que os grilos europeus. Na zona do Alto Zaza (Quimbele - Uíje) os grilos eram comidos pelos nativos, que os apanhavam e assavam nas brasas. |
Alto Zaza, 23 de Janeiro de 1973
Desta vez, vão ler uma carta mais curta e sem o relato habitual dos acontecimentos no destacamento. Não significa isto que a semana finda tenha sido calma; pelo contrário, foi atribulada, porque um destacamento sob a minha «jurisdição» foi atacado e tive que lhe acudir. Será este o tema da minha próxima carta, que há muito para contar. Não posso deixar de registar para a posteridade a cobardia dos meus furriéis, que arranjaram todos os pretextos e mais um para não irem comigo socorrer o destacamento da Camuanga. Neste momento, preciso de deixar que os acontecimentos assentem. Amanhã ou depois, terão uma carta exclusivamente para vós. Agora, vão ter de se contentar com o duplicado dos aerogramas que escrevi à minha prima Manuela. É a resposta a uma carta que ela me escreveu a seguir ao Natal, depois de ter passado uns dias de férias em Londres, onde apanhou, segundo me diz, uma valente gripe, que a fez andar eclipsada das aulas durante uma semana. É uma carta em que adoptei um estilo mais ou menos galhofeiro, diferente do habitual, para ficar de acordo com aquilo que ela me escreveu. Desta vez não vos darei motivos para se queixarem de que vos maço com quilómetros de escrita. Aqui vai a duplicação quase integral a químico dos sete aerogramas que, nesta data, enviei para a Metrópole. Foi uma correspondência que me ocupou uma boa parte da manhã. Até às dez e trinta, estive a decifrar e a cifrar mensagens. Depois disto, aproveitei a embalagem da esferográfica e iniciei a resposta à carta recebida.
«Cara Priminha,
Eu dou-te o eclipse total, minha toleirona. O que mais me fez rir é que quem ficou eclipsada foste tu, com essa gripe aristocrática e londrina. Creio que era preferível um londrino puro-sangue; sempre te fazia melhor companhia! Como certamente desprezaste os londrinos, agora tens que te contentar com a companhia dos medicamentos e dos lenços. Quanto a mim, não tenho necessidade absolutamente nenhuma de classes britânicas. Basta-nos a companhia da Zaza, a macaca que um soldado trouxe para o destacamento. A Zaza é pouco maior que um esquilo. Apesar de arisca e amiga de morder toda a gente, no primeiro dia em que para cá veio, tornou-se de tal modo meiga e afeiçoada a nós, que é um regalo brincar com ela. Mal nos vê, não descansa enquanto não nos trepa para o pescoço. Quando está presa, ao passarmos por ela, põe-se a guinchar e a levantar os bracitos, para que lhe façamos festas na barriga e nos sovacos. Só põe fim a uma guincharia dos diabos depois de a soltarmos e vir para cima de nós. Então, fica uma melada incrível e toda se derrete, quando lhe começamos a fazer festas na ponta do nariz. Há pouco tempo, estive com ela ao colo e analisei-a minuciosamente do ponto de vista anatómico. É incrivelmente semelhante ao bicho homem. É quase tudo igual, apenas em ponto mais pequeno. Quando lhe fiz festas na ponta do nariz, agarrou-me os dedos com a mão pequenina, igual à de uma criança. Até as impressões digitais são parecidas com as nossas. Mas nem tudo tem sido uma maravilha com a Zaza. Ela é um pouco como as mulheres e as crianças mimadas. Quando a pomos no chão, desata logo numa enorme guincharia de protesto, agarra-se-nos às calças e não nos quer deixar ir embora. Neste aspecto, fez-me lembrar alguns episódios da minha infância. Quando queria alguma coisa e o meu pai não ma dava, desatava numa choradeira e berreiro tais, que era capaz de aguentar uma tarde inteira. Só parava quando, já cansados de me ouvirem, acabavam por ceder à minha vontade. Um destes dias, zanguei-me bastante com ela. Caí na patetice de a trazer para a messe. Sua excelência resolveu fazer macaquices nos fios da electricidade que não temos, por avaria do gerador. Começou por fazer uma valente limpeza nas teias de aranha do tecto. As infelizes das aranhas bem que tentavam escapar! A Zaza era mais rápida. Deitava-lhes a mão com uma incrível velocidade e as desgraçadas nem tempo tinham para respirar! Eram enfiadas pelas goelas abaixo. Pelos vistos, as aranhas constituem um petisco para os nossos parentes macacais. No final da limpeza às aranhas, a nossa destruidora de teias pendurou-se no fio onde temos o candeeiro. Mandou-o ao chão e reduziu-nos o vidro e a manga de combustão a pedaços. A dieta preferida da macaquita não são as aranhas. Gosta de muitas outras e boas coisas: chocolates, rebuçados, bananas, amendoins, etc. Tudo o que comemos e nos dá prazer é também bom para ela. Não é nada esquisita nas ementas e muitos menos nas gulodices. Não é só a macaca que gosta de gulodices. Também nós por cá nos deliciamos com fruta variada, com ananases enormes e bananas de várias qualidades. E quanto a amendoim, é coisa que não nos dão, se o pedirmos. Se nos quisermos deliciar com um fino e um prato de amendoim, teremos de pedir o fino com ginguba. Se pedires amendoins num café, dizem-te logo que não têm. Mas ginguba é quanta quiseres. Perguntas-me, na tua carta, se eu ainda me lembro do Valentim, um moço de Aveiro que costumava alinhar connosco nos convívios de fim de semana. Efectivamente, lembro-me perfeitamente do Valentim. Por acaso, as miúdas das sanzalas até já me perguntaram diversas vezes por ele. Estão com imensas saudades! O que lhes vale a elas é que, felizmente, temos cá diversos valentões, que substituem o Valentim com grande vantagem. Perguntas-me também como são as viagens que faço na região. As viagens de reconhecimento e de abastecimento aos destacamentos não são duras. Duros são os assentos dos unimogues, as viaturas do exército em que viajamos. Fazem-nos criar calo no cu, como no macaco, salvo seja. Mas como o exército ainda não se lembrou de mandar almofadar os bancos onde nos sentamos, vamos tendo que aguentar. Perguntas-me também, a certa altura da tua carta, se há muitas moças nesta região. Infelizmente, as moças aqui não são como as formigas, porque se fossem, teríamos cá muitas e variadas e picantes. Devo acrescentar que quando me refiro a moças, estou a pensar em moças como as daí da Metrópole. Dessas não há cá. Mas rosas negras e viçosas há-as em abundância, para quem gostar. Algumas são até bastante simpáticas e interessantes, embora nem sempre muito olorosas. Mas que algumas são sedutoras e de seios bem feitos, esta é a realidade. Para mal dos meus pecados, já há tempos me piquei nos espinhos de uma rosa negra, o que me fez andar durante uns dias por Quimbele, a frequentar periodicamente a enfermaria. Felizmente que o físico resistiu bem e os antibióticos produziram um rápido efeito. E eu aprendi uma grande lição: nunca mais me deixar enfeitiçar por Circes negras, que podem ser tão ou mais perigosas que a Circe que deu problemas a um antepassado meu homónimo. Perguntas-me ainda se cá na região há muita bicharada. Claro que há! Bicharada é coisa que aqui não falta. Bicharada de todos os tamanhos e feitios e para todos os gostos. Tudo aqui é grande e variado, à semelhança deste enorme continente africano. Só para ficares com uma ideia da grandeza da bicharada, vou tomar como referência um animalzinho inofensivo e simpático, bom conselheiro do Pinóquio, que enche as nossas tardes e noites de Verão com um canto estridente mas agradável. Estás a ver o tamanho dos grilos que animam o Verão e costumamos guardar nas gaiolas, para encherem as nossas casas com os seus trinados, melhor dizendo, com os seus «crinados»? Pois os grilos daqui só apresentam o triplo do tamanho dos daí! E não penses que exagero. São enormes! Tão grandes, que os pretos até os assam na brasa e os consideram um grande petisco. Os desgraçados nem se podem dar ao luxo de encher os ares com os seus «crinados», porque assim que fazem ouvir o cri-cri, denunciam a localização e acabam por ficar «crixados». Lixam-se ou tramam-se bem com os «crinados», acabando assados e comidos pelos nativos. Fiquei deveras surpreendido quando descobri esta ementa tão apreciada pelos nativos. Nunca tinha imaginado que os desgraçados dos grilos pudessem ser considerados como um petisco de grande categoria! E não são apenas os grilos uma das ementas mais apreciadas. Também os ratos que andam aqui no destacamento e apanhamos com ratoeiras fazem parte da ementa nativa. São esfolados e assados sobre as brasas. Já agora, imagina também o tamanho das baratas, lagartos, ratos e outra bicharada que por aqui abunda. Tudo é grande neste grande continente! São grandes os bichos, as distâncias e os problemas! Por exemplo, quando vais a algum lado e perguntas a alguém se o local que pretendes alcançar ainda fica longe, dizem-te que é já ali. E o pior é que andas horas e mais horas e o já ali continua lá longe. Só ao fim de muito tempo e de teres desistido de perguntar se ainda é longe é que chegas ao local pretendido. Tudo é grande neste abençoado e vasto continente! Ao contrário do que tencionava fazer, não vim munido de máquina de filmar, nem de qualquer outra aparelhagem, à excepção de um rádio transistorizado a pilhas, já pré-histórico. Entretanto, já cá adquiri uma máquina fotográfica, a um preço razoável, o que permite ir capturando algumas imagens da região para guardar para a posteridade. Perguntas-me a certo momento se a zona onde estou é muito perigosa e se já fui atacado pelos terroristas. Por acaso do destino, o célebre turra já nos deu a subida honra de nos tentar apalpar os costados. Mas creio que não deve ter ficado muito satisfeito com a calorosa recepção que lhe fizemos. Descarregaram-se munições à rajada, passou-se a noite à luz das estrelas, nos abrigos, e até salvas de bazuca lhe enviámos, para festejar melhor a chegada. Parece que foi remédio santo, melhor que o da banha de cobra que se vende aí nas feiras e mercados. Desde então, temos tido uma santa paz, mas sempre com as sentinelas atentas, porque há frequentes trovoadas na região. Ainda há pouco tive que acudir a um destacamento com alguns soldados, que não tiveram medo de me acompanhar, ao contrário dos furriéis, que se baldaram, recusando-se a ir ajudar camaradas em perigo. Tiveram medo! E todos os pretextos foram válidos para recusarem a ajuda. Foi para mim uma enorme decepção, pois nunca imaginei que fossem tão cobardes. Até o furriel por quem sinto uma certa amizade teve medo! É o velho problema, já muito velhinho e com umas barbas muito compridas:
Já lá dizia Confúcio, Lá na terra em que vivia, Que quem tem um cu tem medo, Fica quedo qual penedo.
Não sei bem se foi assim que Confúcio se terá referido ao problema do medo. Se calhar, terá dito isto doutra maneira. Por acaso, neste preciso instante, até me estou a lembrar de outra possibilidade. Está-me ele aqui a segredar ao ouvido, ao som de uma música muito conhecida. Como ele não me pediu segredo, vou-o revelar sem medo. Cantarolou-me ele, ao ouvido, utilizando uma música festivaleira muito conhecida:
«Quem tem um rego, Atrás das costas, Não anda bem, Anda com medo... Etc., etc., etc..
A música para estes quatros versos sem rima, mas verdadeiros, é a daquela música que foi ao Festival da Eurovisão e que dizia: «Quem faz um filho, / fá-lo por gosto...» Só que o tema, neste caso, não é tão agradável. Enfim, são os azares desta guerra em que me vi envolvido sem ter culpa nenhuma! Em resumo, os amigos cambutas, como aqui chamamos ao Zé Turra, não gostaram da recepção. Devem-na ter achado excessivamente calorosa. Pudera! Num clima quente como o de Angola, que outra coisa se poderia esperar?! Felizmente, o meu exílio no Alto Zaza deve estar quase a terminar. Contamos rodar de zona de três em três meses. Já não deve faltar muito para a minha rotação. No dia doze do próximo mês, se tudo correr normalmente e de acordo com as minhas previsões, devo largar o comando desta região e passar a pasta a um ilustre camarada. Quanto a esta criança — refiro-me à minha não menos ilustre pessoa, pondo de parte a modéstia (acabo de a mandar para o caixote dos papéis, porque cesto é coisa que aqui não tenciono comprar, salvo os artisticamente trabalhados pelos nativos) — irá passar três calmos meses na pacífica vila de Quimbele, na doce posição de um simples alferes, livre das responsabilidades inerentes ao comando de uma vasta região. Como deve ser doce ser mandado em vez de ter de mandar! Sim, não tenhas a menor dúvida. É bem mais agradável e menos trabalhoso ser mandado do que ter de mandar e de aturar uma série de merdas (desculpa lá o desabafo!), que só servem para nos tirar horas de sono a fio. É que aqui, nesta vasta zona do Alto Zaza, segundo me mostrou esta experiência de quase três meses, existem Himalaias de nascentes de problemas a jorros. Se achas que estou a exagerar, lembra-te da referência feita umas linhas atrás, quando desabafei por causa da cobardia dos meus furriéis. Lá tive que ir de manhã bem cedo com meia dúzia de soldados voluntários, que não tiveram medo e não recusaram a ajuda a camaradas em perigo. Fomos armados até aos dentes e com o coração nas mãos, em socorro daqueles vinte e tal homens, sempre a ver quando a frigideira saltava debaixo da viatura. Chegámos, felizmente, sem nenhum problema. Fizemos uma batida na zona envolvente, pois o destacamento fica a nove quilómetros da fronteira, e acabámos por lá passar uma noite, para ajudar a restaurar a calma daquele pessoal e dos nativos que ali vivem. Em suma, temos de ser uns pelos outros, em todas as circunstâncias, sejam elas boas ou más. Deixemos os problemas de ordem bélica e retomemos a tua correspondência. Dizes tu que o teu companheiro, o Uca, estava inchado quando estava contigo. Mas não especificas o tipo de inchaço do teu gato. Fora do contexto, sem saber a que propósito veio a referência ao teu animal de estimação, fico sem saber o verdadeiro sentido da palavra. Tal como a grande maioria dos vocábulos da nossa língua, também este é polissémico. Quererás tu dizer que o gato estava inchado por motivos de doença, ou será que estava inchado de prazer e a ronronar devido à companhia e carícias da dona? Se o motivo é o último, não tens que te preocupar. Geralmente os gatos ficam inchados e ronronantes quando lhes fazemos festas e estão felizes. E quando lhes acariciamos o dorso, no sentido cabeça-cauda, já deves ter reparado que habitualmente, quando chegamos ao fim, levantam a cauda como uma antena de rádio de automóvel. Acaso já reflectiste na razão deste comportamento felino? Ainda não? Pois então vou-te revelar um segredo, que não deves divulgar a ninguém, para que não deixe de ser segredo. A razão do gato levantar a cauda quando chegamos ao final do dorso é para nos assinalar que o gato acaba ali e que devemos recomeçar a carícia a partir da cabeça. Se o inchaço do teu gato é por motivos de saúde, tens uma solução muito fácil para o problema. Quando ele estiver inchado, experimenta furá-lo com uma agulha. Pode ser que esvazie como um balão e dê uma série de voltas no ar. À cautela, para evitar que o teu bichano apanhe uma gripe, vai-lhe dando de vez em quando uns conhaquezitos e umas migas de leite com bagaço. Verás que não há micróbio que lhe entre, com uma desinfecção deste tipo. É um tipo de receita semelhante à que adoptei relativamente ao paludismo. O médico da Companhia que viemos render aconselhou-me, antes de vir para o Alto Zaza, a tomar, no final de cada refeição, uma tampa de uísque. Já muito pessoal apanhou o paludismo aqui no destacamento. Eu tenho escapado, o que parece provar que a receita dá mesmo resultado. Se dá para o paludismo, pode ser que resulte também para evitar as gripes do teu gato. E até mesmo as tuas. Se tivesses seguido esta receita quando estiveste em Londres, talvez te tivesses livrado da tua gripe aristocrática e londrina. Já chega de disparates! Continua a escrever-me e a desabafar comigo. Será bom para ti, que alivias, e para mim, por me dares azo a uns momentos de descontraída e agradável conversa contigo. Até ao próximo aerograma. Em pelo e osso, só para o mês de Julho, quando tiver um mês de férias para passar aí na Metrópole, na vossa companhia. Beijos para os tios e para a tua irmã. Teu primo amigo, Ulisses de Almeida Ribeiro.
P.S.—Na tua próxima correspondência, deixa sempre uma margem esquerda com dois a três centímetros, para me facilitar o arquivo na pasta da correspondência recebida. |