Correspondência em vésperas de Natal |
Depois de um dia atarefado, que me impediu de viajar mentalmente
até junto de vós, o meu pensativo registador de palavras está já seguro entre os
dedos, para começar a deslizar sobre o asfalto amarelo dos aerogramas. Ontem, não
consegui nem tempo nem disposição para ele. Hoje, dia 12, uma terça-feira calma de
rotineiras tarefas, consegui ocupar uma boa parte da manhã a pôr a escrita em dia. Tinha
alguma correspondência já em urgente atraso, para não dizer urgentíssimo. O Natal
está a treze dias de distância. As boas festas devem chegar atempadamente aos
destinatários. Por isso, escrevi a várias pessoas: primos, amigos e antigos professores.
Dessas cartas receberão os duplicados a químico. Aqui, apenas efectuo as transcrições
das passagens mais significativas, para que nesta colecção fiquem devidamente registados
estes meus farrapos de vida passada em Angola.
Primos, amigos e antigos professores. Três categorias que constituem a ordenação lógica dos meus ficheiros mentais. Três secções importantes que carinhosa e afectivamente deveremos conservar actualizadas. Relativamente à primeira secção, deveria ter o rótulo de «familiares». Esta seria uma designação mais ampla. Mas como o nosso núcleo familiar mais chegado está bastante reduzido, o rótulo acaba por ser o mais correcto. Do lado da mãe, a família é numerosa. A raiz mais longínqua de que ouvi falar partiu de um padre de Almeida, que acabou por casar com a governanta, a quem fez uma data de filhos. Se a memória me não atraiçoa, penso que ouvi falar em onze filhos, uma boa colecção de rapazes e raparigas. Os masculinos, formou-os todos em advocacia; a elas, em donas de casa. Na altura, segundo parece, as mulheres não seguiam estudos superiores, para não terem de sair de casa. Creio que o nome da família Almeida Ribeiro, que a mãe conserva no seu extenso nome, provém do facto desse fértil padre ser ou ter estado em Almeida, tendo-se, mais tarde, trasladado a família para Celorico. A família do lado da mãe é de facto numerosa. Mas, tirando a irmã da mãe e algumas suas tias velhotas, que ainda conheci em Celorico, nos meus tempos de infância feliz, em que ali passava férias de Julho a Setembro, e dois primos de Águeda, nunca cheguei a conhecer mais ninguém. Melhor dizendo, estou agora a lembrar-me de um primo seu, também advogado, que casou na Covilhã com a filha de um grande industrial de fazendas e que serviu de inspiração e modelo ao nosso grande escritor que andou pela selva brasileira, e que eu tanto aprecio no Malhadinhas. É uma família «desnaturada», numerosa e pouco unida, dispersa pelo país, sobretudo pela capital, onde tem ocupado altos cargos da magistratura. Estou agora a recordar-me de uma série de nomes masculinos do lado da mãe: Adolfo, Ângelo, Francisco... Não consigo descobrir onde é que foram buscar o nome de Ulisses, com que me baptizaram. Não terá a mãe sofrido influências da leitura dos poemas homéricos, de que me lembro existir um exemplar na rica biblioteca que conheci em casa do avô? E não me terem posto o nome de Telémaco, Andrómaco ou outro similar foi uma sorte! Do mal o menos! Ulisses ainda foi uma figura ligada ao nosso país, por onde terá andado em tempos remotos, a acreditar nas origens do nome da nossa capital, de onde partiram mais tarde os navegadores que, pela primeira vez, chegaram ao território onde agora me encontro. Infelizmente, do lado do pai, filho único de filhos igualmente únicos, a árvore apresenta poucos ramos e folhas. Guardo apenas uma vaga ideia de nomes referidos pelo pai, um dos quais é figura muito conhecida da canção portuguesa. Filho de Aveiro, como o pai, tem vivido sempre em Lisboa ou no Estoril e, como tal, nunca tive o prazer de o conhecer. Lembro-me que, quando era miúdo, a mãe se referia a ele, quando na rádio tocavam músicas muito conhecidas da sua autoria. E agora, reflectindo um pouco, estou mesmo a ver a ligação genética entre ele e o pai. Não é por acaso que o pai, na juventude, era um bom tocador de violino e fazia parte de uma orquestra sinfónica, outrora existente em Aveiro. Há um gene musical na família do seu lado. E agora também estou a perceber a razão da minha paixão pela música, apesar do meu desgosto por nunca me terem dado a possibilidade de aprender uma nota de música. Estou também a perceber a razão da minha grande facilidade em tocar qualquer instrumento, ao fim de alguns minutos de paciente pesquisa e fixação da respectiva escala musical. Aqui está a razão de, em pequeno, durante o meu período de estudante do liceu, ter massacrado o pai até me comprar uma boa harmónica numa casa de instrumentos do Porto. É curioso: estou agora a rever uma série de imagens das minhas viagens de regresso a casa, após as aulas. As imagens são tão nítidas, que as lágrimas de saudade quase conseguem vencer a minha resistência. Vejo-me, a meio da viagem entre o Porto e Espinho, juntamente com um companheiro de escola, que morava em Esmoriz. Os dois, ao despique, enchíamos a carruagem de cantigas populares, para agrado dos nossos companheiros de viagem. E como as viagens passavam depressa! Acompanhados pelos ritmo cadenciado da passagem das rodas pelas junções dos carris, as árias das nossas harmónicas como que pareciam fazer parte de uma orquestra. E não era só o barulho das rodas. O som cadenciado da locomotiva a vapor ajudava-nos também a marcar o ritmo. É pena já não possuir aquela magnífica harmónica com duas escalas. Aqui, no meio da selva, poderia ser um bom meio de nos ajudar a passar o tempo. Na falta de melhor, teremos de nos contentar com o som roufenho e crepitante dos rádios, cujas notícias e música nos chegam no meio de silvos e de altos e baixos, tão característicos das ondas curtas. Até mesmo as estações mais próximas, em que ouvimos os «turras» a falarem de nós, têm uma péssima qualidade. A segunda rubrica do meu ficheiro mental diz respeito aos amigos. É também uma secção importante, esta, a dos amigos. Se eles são mesmo verdadeiros, não daqueles das horas felizes, mas dos que se mantêm nos piores momentos da vida, então há que os saber acarinhar e não deixar que a poeira do tempo os faça cair no esquecimento. Dos amigos de infância, daqueles que me acompanharam nos bancos da escola e nas brincadeiras em liberdade pelas ruas de Espinho, apenas recordo algumas caras, alguns nomes e, sobretudo, os bons momentos de brincadeira feliz, sem as responsabilidades da vida, que nos começam a assaltar a partir do momento que crescemos e assumimos o nosso papel na sociedade. Dos mais próximos no tempo, guardo a recordação dos companheiros de infortúnio, que me acompanharam durante o período da recruta e da especialidade em Mafra e, mais particularmente, daqueles que estiveram comigo em Tomar e foram parar a Moçambique e à Guiné . De alguns, já vocês tomaram conhecimento através das transcrições da correspondência. Estou agora a lembrar-me daqueles que estão na Guiné e a quem há pouco escrevi. Dos antigos professores, conservo no meu arquivo mental muitas recordações, subdivididas por diferentes categorias, de acordo com a distância no tempo: os mais remotos, do tempo dos bancos da escola primária; os do período do Colégio de S. Luís, em Espinho, que apenas ocupa os dois primeiros anos do curso liceal; os do liceu Alexandre Herculano, no Porto, e D. João III, em Coimbra; e os da fase final, do período universitário. Curiosamente, os que estão mais bem ancorados na memória são precisamente os professores da escola primária. Guardo uma perfeita recordação de todos os professores, dois dos quais já não presentes no nosso mundo. Tirando o pai, que foi, sem dúvida, o melhor e mais evoluído professor que conheci em toda a minha vida escolar (e isto não é para o lisonjear, mas pura e simplesmente o resultado da análise e confronto de todos os professores que conheci!), guardo com prazer a recordação dos dois professores que tiveram a paciência de nos preparar para o exame de admissão ao liceu, os professores Castelejo e Costa Ferreira. É interessante constatar que, tirando algumas raras excepções, quase não consigo lembrar-me dos nomes dos professores do meu tempo do liceu e da universidade. Mas os nomes dos professores primários, mesmo de alguns que conheci e nunca foram meus professores, continuam bem presentes na memória. E se quisesse utilizar os dados que conservo relativamente ao pai, enquanto meu professor, teria de escrever um livro de muitas páginas, que tocariam os mais diversos aspectos de carácter didáctico-pedagógico. Além de um companheiro mais velho de todos os miúdos que estavam na sala de aula para aprender a ler e a escrever, a contar e a descobrir o mundo, o pai conseguia verdadeiramente prender-nos e cativar-nos. Lembra-se quando introduziu aquele gravador de som na aula, que construiu, durante algumas semanas, com as peças que mandou vir da Alemanha? Além de ser uma máquina praticamente desconhecida na época, era para nós qualquer coisa de mágico e de fantástico, que nos deixava verdadeiramente desconcertados, quando ouvíamos as nossas próprias vozes e os erros de leitura, que antes teimosamente negávamos ter cometido. Mas lá estava a asneira que nós não queríamos aceitar... e bem pronunciada, pelas nossas vozes claras de criança. E ouvir as nossas próprias vozes, mesmo a denunciar-nos o erro que não queríamos aceitar, era qualquer coisa de fantástico e de mágico. E o mais estranho é que, enquanto as vozes dos nossos companheiros eram bem as deles e facilmente as identificávamos, o facto de nunca antes nos termos ouvido produzia em nós uma sensação esquisita, como se a nossa própria fosse a voz de um desconhecido. Estou há um bom pedaço longe da guerra, refugiado no tempo, a recordar alguns momentos de uma infância feliz já um pouco distante. Voltemos ao momento presente. Como atrás referi, a manhã do dia 12 de Dezembro foi ocupada a pôr correspondência em dia. Logo pelas nove horas, depois de um excelente pequeno almoço, em que eu e os furriéis nos consolámos com o delicioso queijo mandado pela mãe, escrevi um aerograma de boas festas aos tios e primas. Como vão receber o duplicado a químico, vou agora limitar-me à transcrição de dois ou três excertos mais interessantes. Depois de uma introdução em que localizo a zona de Angola onde a minha Companhia se encontra, faço referência ao meu destacamento e às responsabilidades que me são inerentes. E passo a transcrever: « ... Mas tudo o que descrevi (no parágrafo anterior) seria ainda o menos, se não tivesse dependente de mim uma série de povoações indígenas, a quem tenho de prestar assistência médico-sanitária e social...» Depois de algumas considerações, passo a referir alguns casos pessoais, em que recordo algumas peripécias ainda não relatadas: « ... Felizmente, embora ainda não me sinta totalmente recuperado do braço, que continua a dar sinal e a impedir-me de fazer força, tirando alguns sustos, tudo tem corrido bem até ao momento. Apesar de tudo, logo na minha primeira saída, dei um valente trambolhão, que me obrigou a ligar o pulso durante alguns dias. Isto foi mais um pequeno contratempo, que me impede, por exemplo, de transportar a espingarda segurando-a normalmente e pronta a entrar em acção, quando nos deslocamos na picada. Com a trepidação da viatura e a oscilação, o peso da espingarda provoca algumas dores. A solução foi passar a transportá-la apoiada no braço ou, mais frequentemente, sobre os joelhos, de maneira a manter-se sempre em posição de uma rápida actuação, em caso de surpresas desagradáveis. Quanto a andar a pé , ninguém me apanhará nos próximos dias na picada ou nos trilhos, no meio do mato. Tentei há pouco fazer uma patrulha na área do quartel, para um melhor conhecimento da zona envolvente, e fiquei com pouca vontade de repetir a proeza. Cheguei a um ponto que não sabia como transportar a arma, pois o seu peso, apesar de reduzido, parecia ter aumentado de maneira insuportável...» Recordo mais algumas peripécias ocorridas, mas sem grande interesse para aqui figurarem. Pelas 9,30 tinha terminado o aerograma e iniciado outros dois, de idêntico teor, para desejar as boas festas a dois professores do meu tempo de Coimbra: o primeiro, foi para o meu professor de Linguística Portuguesa, graças a quem fiquei a dever o conhecimento da grande riqueza de variedades e falares de Portugal Continental, que me orientou na pesquisa linguística pela metade norte do país e na elaboração da dissertação de licenciatura; o segundo, foi para o meu professor de Latim, no Liceu D. João III, de quem conservo os livros e as gramáticas de Latim e Português. Tenho pena de não estar agora em Coimbra. Como gostaria de me poder transformar em ave, para viajar até essa cidade. Se me pudesse transformar num raio de luz, iria agora direitinho ao Café Santa Cruz, só para ter o prazer de me encontrar e conversar um pouco com o Dr. Nunes de Figueiredo. O facto de aqui ter registado o nome deste professor trouxe-me instantaneamente um outro que há muito julgava ter esquecido: o do Dr. Pechincha. E a razão é fácil d explicar: está ligada ao facto de ter passado uma série de peripécias invulgares com este professor, cujas consequências poderiam ter sido nefastas se não fosse a intervenção oportuna do Dr. Nunes de Figueiredo. Será que o pai ainda se lembra destes episódios que quase iam marcando negativamente a minha vida académica, se não fosse a intervenção sensata do professor de Latim? Se o pai já não se recorda, então passo a avivar-lhe a memória. Neste momento a carga negativa deixou de se fazer sentir. Não constitui agora mais do que um episódio caricato, cuja evocação me irá ajudar a afastar a cortina da noite. |