Despedida e visita de rotina

O dia 10 está quase a chegar ao fim. Foi um domingo bastante preenchido, que não deu tempo para aborrecimentos e, muito menos, para pegar na caneta. É outra vez, no sossego do meu quarto, que retomo a conversa interrompida. Espero não entrar em divagações, mas no relato dos factos.

A meio da manhã, estava eu precisamente a acabar a decifração de uma mensagem, quando chegaram viaturas de um dos destacamentos que dependem de mim. Após um período de pouco mais de um mês, chegou a vez da rendição do grupo do alferes Rosa.

Entradas as viaturas no aquartelamento, o pessoal faz uma pequena pausa, antes de prosseguir viagem, para se despedir e tomar alguma coisa na cantina.

— Bons dias, alferes Ulisses, cá nos encontramos uma vez mais — diz-me o alferes Rosa, entrando comigo para o edifício do comando.

— Chegou, finalmente, o dia da partida! — disse eu.

— É verdade. E, se Deus quiser, espero não voltar mais a estes sítios.

— O que significa que nunca mais voltaremos a encontrar-nos! Foi um curto espaço de tempo em que estivemos ligados pelos mesmos interesses e necessidades, para já não falar na amizade tácita, embora poucas vezes ou quase nenhumas tenhamos estado em contacto directo. Mesmo assim, não podemos separar-nos sem um curto momento de convívio. Vamos tomar umas bebidas.

— Não serei eu a dizer que não. É a segunda vez e talvez a última em que teremos estes instantes de confraternização.

— É verdade! Tirando o dia em que almoçámos juntos, após uma noite nos abrigos, nunca tivemos a oportunidade de conversar e de nos conhecermos melhor. E não será certamente hoje que isso irá verificar-se.

Na companhia dos furriéis, beberam-se uns uísques com «cocacola» e « sevanape». As conversas foram cruzadas e diversos os temas, todos eles sem rumo fixo, mas girando, na sua maioria, à volta da situação comum em que todos nos encontramos.

Instantes depois, que passaram com incrível rapidez, estava todo o grupo nos unimogues a passar o portão da entrada, rumo a um futuro desconhecido.

Estou neste momento a ver na minha frente a cara do alferes, com a barba farta e a pele ruiva, a despedir-se de mim. Foi uma despedida quase sem palavras, em que demos um forte abraço um ao outro, juntamente com um sincero desejo de felicidades para o tempo restante das nossas comissões. Um breve aperto de mão aos furriéis do grupo rendido e ei-los que se afastam, no meio de um rasto de poeira da picada.

A hora da despedida, mesmo de camaradas que conhecemos por um breve período de tempo, é sempre um momento solene e de grande tristeza, partilhado por todos. À excepção do pessoal de serviço, estava praticamente toda a gente do aquartelamento junto ao portão de saída, a ver pela derradeira vez camaradas de infortúnio a caminho de um futuro incerto, cuja meta final mais ambicionada é a metrópole.

O desejo pela meta final é tão grande que, na sala comum do edifício de comando, um dos furriéis colocou na parede uma espécie de calendário com o total de meses e de dias aproximado que deverá durar a comissão de serviço. Por enquanto, este calendário está pela ordem normal do tempo, sendo o dia que chega ao fim riscado com dois traços cruzados. Hoje é o trigésimo quarto dia da nossa permanência em território angolano. Daqui por um ano e tal, quando tivermos uma ideia da data do regresso, o calendário passará a ter uma ordem decrescente, para sabermos quantos dias faltam para o embarque.

A parte da tarde foi ocupada na conversa com os furriéis e a observar os soldados que chutam o tempo a jogar à bola no campo em frente ao edifício do comando.

Cerca das dezasseis horas, mandei reunir uma secção para ir à Cabaca. Fui passar revista ao grupo G.E. 201, dando assim cumprimento à minha palavra. Pela segunda vez, além do fardamento e armamento obrigatório para todo o pessoal, levei a máquina fotográfica a tiracolo. Quando subi para o unimogue, estava à espera de qualquer comentário jocoso de algum soldado. Ou não repararam na máquina, ou já se habituaram a este novo apetrecho do meu equipamento, porque ninguém disse nada.

Poucos minutos depois, entrava na povoação, onde me aguardava o chefe Simão. Assim que descemos da viatura, recebi e retribuí a continência do chefe G.E.

— Verifico que lhe deram o meu recado.

— Sim, meu alféris. Já esperava o meu alféris. Vou mandar reunir os meus homem p’rà revista do meu alféris.

Pouco tempo depois, estava todo o grupo devidamente formado e era-me apresentado, de acordo com as normas militares. Cumpridas as formalidades e com o grupo à vontade, conversei com todos e, uma vez destroçado, efectuei a visita a toda a sanzala, acompanhado pelo chefe Simão e alguns elementos do grupo, que nos quiseram fazer companhia. Conversei com vários homens e mulheres da sanzala, brinquei um pouco com a pequenada, que me acompanhava cheia de curiosidade, e terminei a visita com uma fotografia a uma mulher, vestida com roupas vistosas, de cores garridas, e com uma criança ao colo. Espero que a fotografia fique bem. As condições eram excelentes. O Sol começava a declinar no horizonte e a conferir a tudo, pessoas e cubatas, um tom quente e avermelhado, deixando no chão de terra vermelha longas sombras esguias. Não poderei esquecer-me de mandar fazer uma fotografia a mais para oferecer e retribuir o bom acolhimento que me tem sido dado.

A conversa com o chefe Simão e com as pessoas da sanzala revelou-se bastante interessante, permitindo-me aumentar os conhecimentos etnográficos e linguísticos. Além do Português, falam uma língua local, a que dão o nome de Quicongo. Já aprendi alguns vocábulos e espero, com a ajuda dos nativos, descobrir as estruturas desta língua. Havendo disponibilidade, será vantajoso efectuar, com alguma regularidade, mais visitas à Cabaca. Além de me ajudar a ocupar o tempo, é uma boa maneira de fortalecer a amizade com os nativos e alargar os horizontes culturais.

O relato dos factos mais importantes deste dia está praticamente concluído. Poderia agora finalizar a correspondência com as habituais despedidas e iniciar nova série de aerogramas noutro momento de conversa convosco. Fecharia os aerogramas e juntá-los-ia, para envio para a Metrópole. Mas de que serviria isso? Não iriam recebê-los mais depressa. Não tenho prevista para amanhã a saída de nenhum grupo a Quimbele. Se fechasse agora a correspondência, acabaria por ir para o saco do correio, em que juntamos a escrita de todo o pessoal. Entre estar fechados numa saca e aqui comigo, prontos a receberem mais palavras, prefiro a segunda hipótese. Os aerogramas estão a ser, no fundo, uma extensão da minha agenda, uma espécie de diário de bordo, onde vou registando os factos que vos dou a conhecer. Na agenda, ficam guardados os tópicos, os elementos mais importantes. Nas folhas amarelas desta correspondência, desenvolvo-os e revivo os acontecimentos, enriquecendo-os com pormenores e com as palavras de algumas conversas que o vento, irremediavelmente, vai soprando para longe e apagando das nossas memórias.

Agora, antes de efectuar uma ronda ao aquartelamento e me retirar para o país dos sonhos, vou entreter-me um pouco com o rádio e procurar apanhar algumas emissoras em ondas curtas, para saber como vai o mundo. O aparelho que trouxe da metrópole não é dos melhores para captar as vozes que nos chegam de todas as partes do planeta. Brevemente, quando receber os primeiros vencimentos, comprarei um mais moderno, com todas as frequências e melhor captação e sonoridade.

Aqui, no meio do mato, as curtas são a nossa companhia. As médias e a frequência modulada não dão o menor sinal de vida. O seu alcance é muito limitado. As únicas que dão a volta ao planeta são as ondas curtas. Não são as melhores em termos de qualidade, mas são as que têm um maior alcance. Até as emissoras dos «turras», que nos entretemos a ouvir falar e a dizer mal de nós, são em ondas curtas. É através delas que ouvimos as notícias do mundo, em especial da BBC, cuja captação é bastante razoável, apesar do silvo de fundo que por vezes se ouve. Com o pequeno aparelho que trouxe daí, um dos primeiros transístores que surgiram em Portugal e que o pai me ofereceu quando era miúdo, torna-se difícil sintonizar com precisão as estações, que fogem facilmente e se encavalitam umas nas outras.

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